18 outubro, 2007

CRÓNICA DA CASA FUTURANTE
O plano do mundo à imagem das palavras

VII

Botões



Não estavam numa caixa, nem numa gaveta, mas espalhados pelo chão, no meio de restos de tecido arrendado. Os botões estão cercados de pano, sua casa natural. Quem ali os deixou armou-lhes o cerco — ou deu-lhes uma cerca protectora? É difícil imaginar quem os terá atirado para ali, ao abandonar a casa. E porquê. Fosse quem fosse, por alguma razão os largou no soalho, soltos e entregues a si, sem função, àqueles que juntavam as partes dos tecidos já puídos dos dias e da casa.

Estão ali representadas todas as classes: há os botões simples, de massa, e os duros, de osso; os mais delicados, de madrepérola, e os pesados e brilhantes, de metal dourado; os forrados, para os tailleurs da senhora, e os de grande diâmetro, a que no jogo do botão chamávamos «chambalhões». E há fivelas várias e de vários feitios, fechos de insuspeitados cintos de castidade, naqueles anos que para mim eram de luz, mas para a mulher da casa futurante deviam ser de chumbo. Alguma coisa mo diz na expressão séria e triste, mas bela, em que a vejo na foto de família.

Este cemitério de botões fala da casa por metonímia. Está aí para representar uma das actividades que, desde a ida para a «mestra», antes da escola, marcavam a vida da mulher nesses tempos tão próximos e tão distantes: a costura (a outra era, naturalmente, a cozinha). A cozinha e a costura ocupavam grande parte dos dias silenciosos da casa, da vila e do país.
Walter Benjamin lembra também, em Infância Berlinense, que até numa cidade como Berlim isso acontecia: «Quanto mais silencioso vai ficando o país [a terra], tanto mais se dignifica esta silenciosa tarefa doméstica.»




Mas não era esse o único destino dos botões nos anos da luz e da cal. Tinham outras vidas, mais lúdicas do que funcionais e utilitárias: eram peças de jogo, numa outra existência mais livre, que os não prendia a casas. O jogo do botão preenchia, com outros (do berlinde e do pião, da pata e da bola, da roda e do eixo) os dias do tempo suspenso, arrastado, da infância. Ao contrário do jogo do berlinde, cujas regras exigiam três covas em linha escavadas no chão de terra, o do botão — pelo menos aquele que me lembro de jogar, e que não era o outro, mais fino, do futebol-de-botões jogado em cima de uma mesa — pedia apenas uma, encostada à parede. Era essa a meca de todos os movimentos, tácticas e estratégias. Os botões de jogar não eram os de pagar (ao adversário, quando se perdia). Eram escolhidos a dedo para dar os melhores resultados na jogada, e na avaliação entravam parâmetros de forma, peso, material, acabamento.

Mais tarde, já longe desta casa futurante e da sua rua que era o mundo, haveria de ser outra a utilização lúdica dos botões, em especial daqueles que fechavam (nesses tempos, por vezes a sete chaves) segredos e alimentavam desejos nas blusas das raparigas. Aí, a chegada a casa (expressão também usada no jogo infantil) significava, consoante as situações, o clímax ou o começo da aventura e da descoberta dos trilhos de Eros. Se os pequenos botões de camisa, os pobres da espécie, eram portas fáceis e por vezes de abertura demasiado rápida, já os nobres alamares e os seus grandes botões transversais exigiam tempo e paciência, anunciando adiados mas promissores prazeres. E a espera pela chegada ao último não era o menor deles.



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