12 outubro, 2007

CRÓNICA DA CASA FUTURANTE
O plano do mundo à imagem das palavras

(VI)


A fotografia de família



O tom sépia e a indumentária dos figurantes reenviam-na para uma época que pode ter sido anterior aos anos da guerra. Indiscutíveis as hierarquias, insofismáveis os pequenos sinais do espírito dos Lares que presidiam aos destinos familiares e deixavam marcas nas fisionomias que, em dias de festa, se prestavam a longas e hieráticas exposições (no duplo sentido da palavra).

O jardim, hibridado de horta, traz-me à lembrança, por contraste, o bem mais modesto quintal da minha avó, que recordo como uma espécie de jardim do Éden nos anos da primeira infância e ainda nos verões da adolescência. Era um rectângulo fundo com canteiro alto ao meio, onde todas as primaveras desabrochavam brincos-de-rainha, malmequeres, alecrim e rosas e certamente outras cores que a memória fez desbotar. À esquerda o poço, à direita o galinheiro, e ao fundo o muro branco, alto, e a grande figueira do vizinho a oferecer figos lampos, escuros e doces, para comer com pão logo pela manhã. Do lado da casa, a latada com as grandes uvas de cepa americana, rijas e avermelhadas.
A minha avó tinha quintal, os Valverde teriam jardim. As palavras dizem a diferença. Na alameda estreita entre o canteiro e o poço passava eu, nas férias grandes, tardes a desenhar a tinta-da-china e a pintar a guache. Andava nos primeiros anos do liceu, já em Lisboa, as técnicas eram novas, mas tudo o que eu fazia era copiar à vista fotografias e retratos, ou inventar combinações para formas geométricas. Pouco ou nada me ficou desses ensaios numa arte para a qual, ainda durante anos, me haveriam de considerar dotado. Eu, nem por isso. Tinha a noção de que esse gosto pelo desenho era puro amadorismo, e pouco mais que cópia.
Do quintal ao jardim ia (reconhece-o hoje um olhar mais atento à paisagem social do que à pura forma das coisas) ia a distância que separava o mestre artesão e uma convencional existência nos limites estreitos de uma vila do engenheiro proprietário rural que se movia, em negócios e safras, conversas e aventuras, entre a casa que baptizei de futurante, o monte e as saídas às espanholas ou para as boîtes de Lisboa – para regressar sempre e, uma vez que outra, se colocar em pose de chefe para a fotografia de família.
Roland Barthes e a sua Camara Clara ajudam-me a olhar para esta. O punctum, neste caso duplo, descubro-o em duas das suas figuras. Vou ter de decompor o painel, de desmembrar o clã.

O primeiro desses focos vibrantes de sentido (para o meu olhar de hoje, é claro) é o trabalhador (criado) no limite esquerdo, de fato domingueiro e chapéu de aba larga, que se prepara para abandonar o cenário. Leio-o como um gesto deliberado e provocatório: volta costas ao grupo dominante, enquanto a mulher, mais prudente e acomodada às exigências da encenação fotográfica, pousa de regador na mão ao lado do rapazinho que, tal como ela e todo o resto do grupo, olham de frente para o olho da máquina de um fotógrafo escondido debaixo do pano preto na outra ponta da horta-jardim.

No grupo dominante, e dominado pelo homem, solene no seu fato e gravata, com a matriarca fazendo pendant à direita e o clã e a prole entre os dois, descubro o segundo punctum, igualmente carregado de sentido, se não explicitamente político, pelo menos psicossocial: a mulher e dona da casa, visivelmente mais nova do que o homem, e pouco à vontade na situação, deixando transparecer uma certa timidez, talvez amargura, que uma certa beleza atenua. A expressão desta mulher ainda jovem condensa toda uma história do seu sexo e da sua condição sem voz. Sentada à frente — e abaixo — do marido, de saia rica e blusa fina com gola de renda, é peça de exposição (social) e objecto de uso (doméstico e de alcova). Aquele rosto é um destino que ignora que há nele mundos que não se podem reduzir ao seu silêncio, mas que reclama talvez, em surdina, um nome e a saída da foto de família para uma vida própria.

Com os seus diversos elementos — a casa, o jardim-horta, a latada para os calores de verão, o chefe-de-família, a esposa nova, a matriarca austera que já foi esposa nova —, a composição é espelho, liso e transparente, de uma ordem social. E, para usar uma expressão de Walter Benjamin em «Pequena história da fotografia», uma «parábola da vida». Benjamin compara, ainda nesse ensaio, os fotógrafos dos primórdios — de quem este não anda muito longe — aos áugures e arúspices antigos: a sua função é a de revelar (também aqui no duplo sentido da palavra) uma «culpa» presente nas suas fotografias. O termo é forte, mas está lá, em todos os registos de uma classe ascendente e já minada de contradições no século XIX, e entende-se bem mais tarde, com particular evidência, na galeria social de figuras reunida nas fotografias de August Sander, entre os anos vinte e trinta.

Há também qualquer coisa de culpa no inconsciente desta inocente e vulgar fotografia de família que um dia encontrei, sob o pó dos anos, na mesa da sala de jantar da casa futurante. Ao limpar esse pó para a fixar numa outra fotografia, profanei uma memória, ainda por cima alheia. Mas o móbil do meu gesto, e desta escrita, foi tão-somente o de ler alguns sinais do tempo nas fisionomias e nas poses. Como quem lê uma inscrição na pedra. Escreve-se também história arrancando às fisionomias o que nelas fala e pede para ser lido.

Sem comentários: