09 outubro, 2007

CRÓNICA DA CASA FUTURANTE
O plano do mundo à imagem das palavras

(V)

O sapato de cetim


Encontrei-o sozinho, sem par, numa gaveta da casa futurante. Certamente deixado pela senhora da casa. Quem era? Uma Valverde, diz-me a velhinha que encontro na rua e a quem pergunto pelo destino e pelos senhores daquela casa. O Engenheiro, sempre por fora, deixou-a ir morrendo. Como o engenheiro do Jaguar n' O Delfim de Cardoso Pires, penso. Latifundiários representantes de uma estirpe em decadência, estourando o dinheiro herdado entre Lisboas e Espanhas. Aquela plutocracia rural nunca soube como fazer crescer o dinheiro pela iniciativa. «Empresa» era uma palavra que não existia.


O sapato sabia de coisas que eu, criança quando ele também era novo, não podia imaginar. Que teria ele ouvido nos dias áureos de quem o calçou? Onde teria ido parar o seu par? O sapato de cetim fala-me de serões iguais a todos os serões de uma família mais ou menos rica numa vila alentejana em tempos sem telenovela. Falava-se de quê, lá em cima, enquanto eu dormia na casa em frente, cá em baixo? Homens de um lado, mulheres do outro, entre jogos e conversas. Hoje, só consigo imaginar os homens a beber uísque — nome desconhecido no meu universo —, uma vez mais como o Engenheiro d' O Delfim. E a Maria das Mercês (aliás, Valverde) que calçou este sapato? Talvez tomasse capilé no verão, chá no inverno, enquanto conversava com talvez invejadas e odiadas amigas sobre criadas e vestidos, histórias da terra e idas a Lisboa.

O sapato ausente, desviado não se sabe para onde, talvez me falasse das fantasias secretas, dos desejos e segredos íntimos da dona. Nada que acrescente alguma coisa ao meu propósito de, olhando para os objectos que me falam de um tempo, ler neles alguma «projecção histórica da experiência» (como fez Walter Benjamin com as suas recordações de infância em Berlim).
A própria fisionomia do sapato encontrado, restante, único testemunho de uma mulher que imagino infeliz, pouco me conta. Alguém, ela própria ou alguma criada, lhe deu esta última morada na hora do abandono da casa. Uma gaveta meio aberta o recebeu no silêncio que havia de ser o seu durante décadas, até ao dia em que eu, sem pensar ainda em ir atrás de restos e rastos da história, invadi a casa em ruínas, máquina digital em punho, e o despertei.
E então ele falou — como falam os adereços dispersos no meio das ruínas. E no entanto, destituídos da sua função original e conservados para outras significações, os objectos desta casa futurante permitem-me ir reconstituindo a alegoria de uma história biográfica e social. São, como diria ainda Benjamin, imagens do meu «desassossego petrificado».

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