26 outubro, 2007

DA BELEZA




Entre os anos setenta e oitenta fiz com alguma regularidade crónicas e outras intervenções na rádio. Como tantas vezes me vem acontecendo, ao procurar uma coisa encontro outra. Hoje foi um caderninho com anotações para alguns desses programas, em que descubro estas, sobre um livro de poesia de Joaquim Manuel Magalhães, com pinturas de Ilda David': Alguns Antecedentes Mitológicos (Assírio & Alvim, 1984. A capa é de Manuel Rosa).
Chamei a essa crónica "Os mitos que fomos, os mitos que somos, ou: Da beleza". E reparo que, diante do estendal de mau gosto que enche as bancas das livrarias, face ao «modo funcionário de viver» que se apoderou de tanto fazedor de livros, o que os ouvintes da RDP escutaram em 26 de Abril de 1985 faz mais sentido do que nunca. Entre outras coisas, foi mais ou menos assim:

Gostaria de me servir, sem embaraços, de um conceito ainda embaraçoso para muita gente: o de beleza. Nos anos trinta, um autor como Brecht diz que «ainda havemos de chegar à conclusão de que não podemos prescindir do conceito de beleza». Isto, apesar de nessa fase histórica, em que «uma conversa sobre árvores era quase um crime», ele próprio não se sentir muito à vontade ao usá-lo. Em 1984, um editor de Berlim afirma: «Espanta-me que muitos colegas considerem secundários os tipos e os corpos tipográficos de um livro, e acessórios aspectos como os do formato e do papel, e vejam o preço de capa como um pormenor irritante. É com certeza um resultado da industrialização da produção do livro, mas não tem nada a ver com a profissão/vocação de um editor. Há, ou deve haver, uma convergência do interesse substancial pelo livro com os aspectos técnicos, e um editor terá sempre de colocar a si próprio três objectivos maiores: fazer um livro belo, certo no momento e o mais barato possível.» (...)


Quanto a Alguns Antecedentes Mitológicos, trata-se certamente de um livro belo: pelo grafismo, pela sensação ao toque, pelas imagens: há qualquer coisa de uma qualquer perfeição na aparente simplicidade de tudo isto. E é um belo livro, e um livro certo: porque nele nos encontramos, nos seus poemas e nos seus desenhos, porque é um livro que nos vem dizer que somos hoje os mitos que fomos ontem – num plano profundo, e não de mera superficialidade.
Os poemas de Joaquim Magalhães articulam, numa forma classicamente solta, o fundo de significação de uma situação humana, dado pelo mito ou pela figura antiga, com um momento nosso, simultaneamente subjectivo e universal. Os desenhos são de uma delicadeza dissonante, revelam um saber de traços e de cores, tão antigo nos tons de terra como os mitos mediterrânicos de que falam: Orfeu, Eco e Narciso, Eros e Psique, Leda e Andrómeda, Endimião, o amante da Lua — uma beleza!

Se me perguntam hoje por que razão venho lembrar um livro com mais de vinte anos, só poderei responder: pela beleza, pela justeza intemporal. Por exemplo do primeiro poema do livro:


A águia sublevou Ganimedes. Um corpo
pode ser um tiro uma casa incendiada
na submissa ferocidade do amor.
Nunca soube donde vinha. Vinha. Tocava
à porta, tomávamos um café. Saía.
O que tentamos para amarem o que somos.
Na selva de interditos o longe de dentro
tem a medo sossegos sem nenhum lugar.

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