19 setembro, 2007

CRÓNICA DA CASA FUTURANTE
O plano do mundo à imagem das palavras


(III)

Dar a cada objecto o lugar que lhe pertence é
uma regra
de justiça imanente.
Escrever é a única arte que o permite
.
(Maria Gabriela Llansol,
Lisboaleipzig 1)


Uma casa, ao ser abandonada, sofre? «A casa que vai ser deixada sofre — está a morrer» (M. G. Llansol). Se os lugares falam, por que não hão-de sofrer? Os objectos que ficaram na casa erma falam (de quem os deixou) e sofrem (a passagem das horas, a ausência da mão que lhes toca). Estão ali à espera de quem os salve. Os objectos da casa vivem em contexto, envolvimento, relação. Isolados, morrem, como se morre de inanição da voz. Não falam, definham. Não é o pó que os cobre que nos diz, lhes diz, que estão mortos, é a ausência dos outros.


O ferro de engomar enferrujado e sozinho numa prateleira da despensa olha-me, e vejo pousar nele a mão da criada que, uma vez por semana, passava a roupa a ferro no quarto dos fundos (quantas vezes já vi/li esta imagem em romances de todo o mundo?). A ausência da mão e do calor das brasas é a sua dor. No dia em que o olhei e lhe dei nova vida numa fotografia, estou certo de que se sentiu vivo.


«Para a memória, é essencial reconhecer os lugares em que os acontecimentos se produziram.» (M. G. Llansol). «Engana-se e priva-se do melhor quem se limitar a fazer o inventário dos achados, e não for capaz de assinalar, no terreno do presente, o lugar exacto em que guarda as coisas do passado.» (Walter Benjamin, «Escavar e recordar»).


Para os lugares e os objectos, se não forem de todo apagados da face da terra, é vital regressarem um dia à vida. Para isso, basta que alguém os olhe de novo, e de algum modo sinta como seu o seu abandono, os deixe falar e lhes fale. E o único modo possível deste diálogo é o da escrita, ou da imagem, em que renascem. Essa é, com a dos olhares, a única linguagem que ainda entendem.

__________________________________

Sem comentários: