17 setembro, 2007

CRÓNICA DA CASA FUTURANTE
O Plano do mundo à imagem das palavras


(II)

As palavras e as imagens dão-me hoje a ver uma rua que o tempo fez minguar, mas que naqueles anos era o mundo revestido a paralelepípedos, frios no sol coado da Primavera, implacáveis quando a bola de trapos fugia e a «topada» era inevitável.


Os rostos ameaçadores e os capacetes de aço de soldados nazis saltavam das páginas das revistas e invadiam os sonhos dos meus quatro, cinco anos, enquanto lá fora, no campo, se sobrevivia roubando azeitona e trocando as voltas à Guarda. O fim do dia trazia o ritual do banho sumário no quintal, para onde espreitava a figueira do vizinho. Nunca vi um Judas pendurado nela, era sempre só a cor do sol nos grandes figos maduros, com leves revérberos de culpa quando a tentação de puxar a pernada era mais forte.


Do outro lado da rua, mesmo em frente, por baixo da futurante, era a casa de fumo e terra batida, escura e funda, mas sem fantasmas nem medos, das duas mulheres – irmãs? – a quem nunca vi homem a não ser o filho de uma delas, gigante meio idiota, mas pacífico e sempre esfomeado. Ao lado, uma porta estreita e uma pequena escada íngreme davam acesso ao meu Jardim das Delícias, quintal-pomar de família destacada da vila, com maçanicas, romãs e dióspiros.


No piso superior da grande casa, as bandeiras das janelas, de vidros coloridos, eram a fronteira do mistério. Nunca uma janela se abria (ou era eu que não olhava para cima?), a não ser talvez para deixar pender as colchas quando passava alguma procissão, talvez a de um Senhor dos Passos roxo e ensanguentado, aterrador, figura de um outro inferno onde os olhos do menino o viam conviver com o padre odiado.


A riqueza da burguesia rural mostrava-se pouco nesses dias. Eu via a casa como um poço de silêncio, ou um lugar que me era indiferente, porque inacessível e incompreensível. O lugar mais exposto do poder do dinheiro era talvez a igreja ao domingo de manhã (a de Santo António, hoje fechada, enquanto o convento deu lugar a um belo hotel). Os seus ícones mais visíveis: a chegada, de automóvel ou charrete, dos senhores e senhoras, poucos, ao adro onde brincávamos sem cuidar de rezas; as almofadas de família, em veludo vermelho, na primeira fila de bancos, ou a pose grave do gordo Caldeira ajoelhado no confessionário a desfiar pecados com que eu não sonhava.



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