15 setembro, 2007

CRÓNICA DA CASA FUTURANTE
O plano do mundo à imagem das palavras


(I)

A vida não deve ser um romance que nos é dado,
mas um romance
que nós próprios construímos.
Do mundo buscamos o plano – e esse plano somos nós próprios.

(Novalis, Fragmentos)



A crónica nasce, como tinha de ser, de uma casa que poderia ter sido lugar de matéria romanesca – foi-o, com certeza, ao menos como cenário de trivial crónica familiar, como todas as casas de gente abastada num lugar pobre de há meio século. Hoje, porém, na revisitação acidental e proibida que aconteceu por um impulso irrefreável de trazer o passado ao corpo do presente, essa casa tornou-se depósito de ícones e índices de uma existência – a minha, metonímia de tantas outras – e de um tempo, meu e da História. Cada um desses ícones, descobertos décadas mais tarde, é um foco de incêndio da memória que me leva para o outro lado da rua de uma infância que, como sempre, só mais tarde podemos interpretar. Não vou apagá-los, vou atiçá-los, para que o fogo arda, lento e sereno como um sonho distante e insusceptível de correcção. O negativo não permite retoques. E «quando se lê como se deve ler [esses índices e ícones], desabrocha dentro de nós um mundo real e verdadeiro, feito à imagem das palavras.» (Novalis). Palavras que podem saltar do abandono de um objecto ou escorrer da música de Mahler que as acompanha hoje (o adagio da segunda sinfonia), ou remanescer, translúcidas, do freudiano «bloco mágico» da memória, não accionado durante mais de meio século, e que agora traça na sua película o arco futurante que aproxima dois pontos distantes no tempo e ligados por linhas quebradas e sinuosas.


Não sei quantas vezes me encostei a estas paredes para apanhar o primeiro sol da Primavera. Não sei quantos golos sofri neste portão-baliza, nem quantas grandes defesas fiz (lembro um único mergulho picado, para apanhar uma pequena bola de borracha – luxo inaudito em tempos de bola de trapos – que alguém, bem maior do que eu, rematou). Não sei já quem morava neste primeiro andar que a minha memória me diz estar sempre desabitado (os ícones e os índices que fui encontrar nas suas ruínas dizem-me que não foi assim). Não foram já meus os dias e os anos que abriram as cicatrizes desta fachada e as coseram com aqueles cabos eléctricos que a desfeiam. Sei que não estavam lá quando eu pisava as pedras da rua, de pés descalços, mal apareciam os primeiros calores.


Sei que a casa futurante é hoje parte de uma memória deste lugar que recordo sem grande emoção, apenas com alguma melancolia que me traz imagens de pai e mãe, tempos felizes, mas duros, histórias de uma guerra que não entendia e me aterrava nas fotografias do Século Ilustrado (mas havia o Cavaleiro Andante para me levar para outras geografias).


Sabia que tudo isso já não era meu, até ao dia em que, furtivamente, pisei as tábuas desse lugar adormecido e coberto pelo pó dos anos. Nesse momento, tudo parecia colar-se de novo à pele.

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