UMA INQUIETA CERTEZA...(10)
A NATUREZA E A PAISAGEM
A POESIA, A PINTURA E A FOTOGRAFIA
(Um tema impossível, com Morandi e Cruz Filipe,
Daniel Blaufuks e Jorge Molder em fundo)
A NATUREZA E A PAISAGEM
A POESIA, A PINTURA E A FOTOGRAFIA
(Um tema impossível, com Morandi e Cruz Filipe,
Daniel Blaufuks e Jorge Molder em fundo)
B) Naturezas mortas
Ecfrase: Pedro Tamen e Vasco Graça Moura
Onde está a Natureza aqui? Na pretensão ou na nostalgia de a arte ser natureza: em Tamen, o que já é natureza morta no quadro de Morandi potencia-se numa outra, que pretende no poema mostrar como a primeira (aliás, segunda!) é «verdade»! É (diria o velho Pessoa) um «terraço de um terraço de um terraço que dá sobre uma coisa que, ela sim, será linda»? Será! Mas será ela «verdadeira»? A «natureza» aqui — jarras, pichéis, almotolias — é em si já morta: a arte é que a torna viva (cf. verso 7).
Morandi, Giorgio
Jarras, pichéis, almotolias,
fugazes flores na fuga da atenção;
quase nada em verdade,
salvo a luz de um tempo bem atrás
do tempo do pincel
no tempo deste olhar.
A natureza morta e mais que viva,
varanda resistente ali plantada
sobre o vazio aceso, intenso,
e tanto que o não é:
quase nada e verdade.
(Depois de Ver, Quetzal 1995)
Em Graça Moura dá-se o cruzamento da arte (e reminiscências subtis de outras obras: o dedo sobre o bico do peito é citação!) com uma nostalgia da natureza que não pode ter lugar neste mundo (em Cruz Filipe estamos num universo da ilusão barroca) — a não ser na pele da mulher? Mas até ela é só da pintura/da cultura/da atmosfera decadente do quadro. Todo o quadro, e os poemas sobre ele, respiram melancolia: melancolia de um universo outro, o de uma Sintra que mal se avista, o de uma natureza mítica de corpos de ninfas e faunos onde esta figura se revê...
O Bildgedicht, o poema que se sobrepõe ao quadro, é o exemplo máximo, e mais refinado, de rarefacção da natureza na poesia de hoje, ou do seu encontro assumido com a arte.
O Bildgedicht, o poema que se sobrepõe ao quadro, é o exemplo máximo, e mais refinado, de rarefacção da natureza na poesia de hoje, ou do seu encontro assumido com a arte.
crónica feminina
1. entre as dobras da seda
entre as dobras da seda a leva cinza
da fieira de pérolas correndo.
as sombras azuladas vão descendo,
sobre a gaveta aberta, a luz desliza
e a mulher ao espelho, a indecisa,
pousou o pente e pensa por momentos
e no bico do peito os sentimentos
com as pontas dos dedos sintoniza.
de sintra mal se avista o promontório
prateado da lua, o lugar onde
entre faunos e ninfas se revê.
e o gesto longo pára merencório,
enquanto ao fim do mar o sol se esconde
e ela sorri mas sem saber porquê.
3. estava nua, só um colar lhe dava
estava nua, só um colar lhe dava
horizontes de incêncio sobre o peito,
a transmutar, num halo insatisfeito,
a rosa de rubis em quente lava.
estava nua e branca num estreito
lençol que o fim do sono desdobrava
e a noite era mais livre e a lua escrava
e o mais breve pretérito imperfeito.
só o tempo verbal lhe fugiria,
no alongar dos gestos e requebros,
junto do espelho quando as aves se vão.
toda a nudez, toda a melancolia,
a dor do mundo, a deslembrança, a febre, os
olhos rasos de água e solidão.
(Sonetos Familiares, Quetzal 1995)
A segunda natureza das cidades:
Joaquim Manuel Magalhães
Uma poesia que, por detrás de uma parede aparentemente prosaica, sem qualquer réstia de emoção ou de «lirismo» (como poderia ser de outro modo, sendo o mundo como é?), é, desde os anos oitenta (Os Dias Pequenos Charcos, 1981), um barómetro que revela uma consciência aguda do processo de desfeamento do mundo à nossa volta — das cidades, dos subúrbios, mesmo dos refúgios «naturais» em que hoje domina a natureza de betão (é esta a dominante nesta poesia). Tudo isto — e o mal-estar derivado deste nosso modo compulsivo de estar (e já de ser) — foi sendo poeticamente descrito em registos que vão do frio e sarcástico (falou-se de «novo realismo») ao melancólico.
Desde Os Dias Pequenos Charcos, J. M. Magalhães cultiva um regresso perverso a uma imagética e aos motivos da Natureza e da sua poesia mais ou menos feliz (vd. os «Idílios»), transmutando-os em visões quase apocalípticas dominadas pelo «baldio dos afectos», o betão, o logro e a morte, «a poeira levada pelo vento». Negativiza todo um instrumentário da tradição e dos seus clichés, vira do avesso todos os «idílios« (vd. «Sloten»), com uma ironia cortante ou melancòlica, e a certreza de não poder fugir à segunda natureza que se apossou de toda a vida (sub)urbana nos charcos dos dias. Desfaz amargamente todas as ilusões de qualquer sentido apaziguador ou reconciliador de Natureza: no plano dos corpos/afectos e no das coisas naturais, campos, céus (vd. «Idílios»; «O cimento...»).
Desde Os Dias Pequenos Charcos, J. M. Magalhães cultiva um regresso perverso a uma imagética e aos motivos da Natureza e da sua poesia mais ou menos feliz (vd. os «Idílios»), transmutando-os em visões quase apocalípticas dominadas pelo «baldio dos afectos», o betão, o logro e a morte, «a poeira levada pelo vento». Negativiza todo um instrumentário da tradição e dos seus clichés, vira do avesso todos os «idílios« (vd. «Sloten»), com uma ironia cortante ou melancòlica, e a certreza de não poder fugir à segunda natureza que se apossou de toda a vida (sub)urbana nos charcos dos dias. Desfaz amargamente todas as ilusões de qualquer sentido apaziguador ou reconciliador de Natureza: no plano dos corpos/afectos e no das coisas naturais, campos, céus (vd. «Idílios»; «O cimento...»).
Idílios
Dois
Lavou as mãos na água cinzenta.
Povoado de presságios o olhar
não abre já para nenhuma chama.
Davam-lhe a beber esses venenos.
Era flor e morte e sobre o mar
o esfaimado tigre da tristeza.
O fictício aparelho da razão
guiava um rebanho enfeitiçado.
Uma espécie de vento imperfeito
voltou a soprar. Os dedos
reabrem essas caixas misteriosas
donde antes tiravam as agulhas,
os rebuçados, os botões, a fita grená.
Quatro
Vamos dar-nos ao culto das estrelas
sanções e mais sanções e o absoluto
bem preso dentro da camisa.
O sedutor. Diziam que eras tu, os enganados.
Balas de sombra atiradas sobre corpos
separados doutros corpos vai o meu
correndo de ti por furnas de betão.
Versos e versos para dizer isto, o amor.
Os meus braços iam com os teus.
Desse nó grassou a peste que nos campos
chamam os granizos as geadas.
Posso chamar-lhes o espírito
coberto de tintas, o rubor do ferro,
o anil dos figos, o ocre da testa dos bezerros,
o cobalto minado do amanhecer.
A perversão dos versos conduz-me.
Sedutor exposto ao frio
da casa erguida por seus erros
dou-te uma luz de azeite para te perderes.
Os detritos da vida invadem esta vida.
Cinco
O lance do olhar entre fetos e troncos
corta como as frechas da ternura.
Canas, miosótis, multicores
os pássaros rompem dos refugos.
Vi-os nas fotografias, por serras de cartão,
os cactos e as folhas podres
juncando-lhes os pés.
Faias de cetim no cerro dos telhados,
a mesa com a folha de cerdeira,
as cortinas vermelhas apanhadas
pelo garço gorgorão onde balança
o basalto de teus olhos.
A sombra azul chamada o céu.
(Os Dias Pequenos Charcos, Presença 1981)
O cimento antes de secar
Estou a tentar abrir uma porta.
Não sei para que lado a chave vai quebrar
nem sei como chegou à minha tentativa
o interdito com que de novo procuro.
Alguma coisa está a ser calcada
no interstício dos gonzos, na dobradiça
cercada de estrelas mortas a fulgir.
Atravessou entre pinheiros.
O vento levantava areia,
enterrava-se no côncavo da represa.
Faltava a esse amor a ilusão
do amor. O céu mordente.
Esse rastilho quase animal.
Toda a explosão do mundo.
De golpe incendiaram-se as plantas,
as que de mês a mês vemos crescer
até às flores as que dão flor,
a novos ramos as que só dão folhas.
Mês a mês, ramo a ramo, flor a flor,
a mentira bate na lagoa e dança
no tecto com as venezianas corridas.
Ficámos a falar por muito tempo.
Tinha o corpo de betão.
Mostrei-lhe livros, discos, labaredas
que falham quando procuramos
as palavras que já os olhos disseram.
E há umsilêncio entre gestos cegos.
O mármore pulsa com os pontos cardeais.
Parece o coração. Bátegas
de encontro ao fechamento, obscuras.
Escuta, continua a escutar, a treva
solta-se da terra inacessível
onde os diamantes prefiguram
a nossa petrificação.
Vivíamos no canal de lava da rua,
no último café a fechar,
as solas sobre um vidro em ebulição
e perdíamos.
É muito de manhã. Acorda
a dor humana que me faz companhia.
Estou a sair de tua casa
a caminho de lugar nenhum,
a minha casa, esse vazio
com a música arrumada,
o cinzeiro, o aspirador, a cortina míope,
a gelatina da cama
onde não mais queria voltar.
Sloten
Às vezes acordamos felizes. A casa
está sossegada, o quarto
dá para um ancoradouro com cantarias caídas
e árvores rentes e muretes de socalco.
O burel da cortina antepara o céu
opaco sobre prédios urbanos.
O universo, submisso, parece disposto
para proteger; acolhe na manhã
as fachadas com os andares de três janelas,
de duas, de uma apenas; terminam
em triângulos difusos na neblina.
O aquecimento irradia dos tubos, a chuva
acaricia os barcos parados, um homem com vara
debruça-se para retirar detritos.
Bandos de pássaros, brandos ventos, tudo pousado.
Abro a blindagem do quarto e ouço
os tijolos, a tinta, as escadas, o corrimão
a sangrar.
*
Barcos, velas colhidas na esquina de rua.
E o seu corpo vibrante de placidez
no abandono ordenado da periferia;
os regulares, milimétricos, prensados
blocos de arrabalde da trucidação industrial.
[...]
(A Poeira Levada pelo Vento, Presença 1993)
António Franco Alexandre
O «núcleo urbano» da poesia de A. F. Alexandre é um aspecto do seu universo poético deliberadamente artificial: a natureza não tem lugar aqui, a não ser como em J. M. Magalhães. Mas há um fundo matérico desta poesia que tem a ver com natureza: escreve-se a partir de uma lúcida fenomenologia do impreciso que sustenta um jogo com a qualidade quase matérica da experiência e vive de incisões sobre o pormenor, a única coisa que é poeticamente habitável. Mas toda esta poesia (do Als-Ob, de um «como se» como estratégia poetológica) assenta num grande paradoxo e dele vive: escrevendo ao fio do corpo, não escreve com nenhuma pretensão de autenticidade, mas «como quem mente». A natureza morre, porque aqui se dá ao mundo uma ordem de despejo e se faz o luto da mimese.
A questão urbana
1.
estas cidades, grés animal, as garrafas de sangue nos passeios,
prenunciam devagarmente um acordar translúcido. o que
movimentam no espaço, e aos bandos
os pássaros decifram sobre o musgo e a hera,
é o mesmo ar que na traqueia queima; e o cimento,
translúcido, o mesmo que nos braços percorreu as veias,
que nos olhos foi lava, que nos brilhou na boca
dizendo: estas cidades, grés animal, um acordar sem boca.
2.
movem nos muros, a vagina mineral das mães
adormecidas, entre os apitos trémulos do aço
e lenços verdes onde ocultam a cara. prenunciam, é certo,
algum visível afastamento das madeiras, algum
pensamento violentado, porisso as coisas permanecem sentadas
e compreensíveis, afastadas de súbito pelo vento oco.
3.
arrebanhados, como cães feitos de água, os dentes
entendem, decifram sobre o grés as patadas da terra,
espalham na violência um musgo que prenuncia a
transparência. foram construídas, assinaladas sobre o mapa por
bandos de pássaros, respondem a algum ódio decisivo,
algum afastamento da violência; o grés, os olhos,
e o próprio desenho aéreo das lágrimas, aonde
se perde pé muito de repente e se afundam as asas
como uma lava dividida, um vidro, a soar junto à boca.
4.
separam, mas esse
é o seu rancor exaltado, a madeira onde furam
as gengivas dos cães, e muito depois brilha o calcário dos dentes.
nasceram de um modo diferente de pousar os ossos
contra o peso da tarde, alguma raiva, algum pedal minucioso,
como quando a sombra do pianista oculta um muro baixo
onde está sentada, ausente ao musgo, a mulher que um dia desejámos.
[...]
[Os Objectos Principais, 1979]
**
Emersoniana
a oeste são os planaltos, a vida selvagem
que um céu de água recolhe,
um horizonte de coisas por dizer, por acontecer
mas a verdade mais abstracta é a mais prática:
let him look at the stars. tão longe
do seu próprio quarto como da multidão.
porisso os selvagens, que não têm mais
que o necessário,
conversam em figuras.
esta dependência imediata da linguagem
esta radical correspondência das coisas visíveis
nunca perde o poder de afectar-nos.
devemos ir sós, vivos e sós. i must
be myself.
tudo quanto Adão teve, o céu a terra a sua casa,
tudo podes e tens.
keep thy state; come not into their confusion.
constrói, sim, o teu reino, o teu mundo: natureza.
[As Moradas, 1987]
(Poemas, Assírio & Alvim 1996)
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