UMA INQUIETA CERTEZA...(9)
A NATUREZA E A PAISAGEM
A POESIA, A FOTOGRAFIA E A PINTURA
(Um tema impossível, com cal e sombras,
pedras e Rothko em fundo)
A NATUREZA E A PAISAGEM
A POESIA, A FOTOGRAFIA E A PINTURA
(Um tema impossível, com cal e sombras,
pedras e Rothko em fundo)
Da natura naturans à natura naturata
Ou seja:
a) de poetas nos quais a natureza é uma presença activa que se manifesta em focos de grande intensidade (o corpo, o pó, os elementos em Casimiro de Brito), como centro de uma sabedoria que se funde, no Tempo, com a do Homem e da Arte numa espécie de religião da Natureza (António Osório), ou como objecto de uma consciência ecológica e nostálgica que constrói toda uma teia de motivos poéticos a partir das naturalia (Francisco Duarte Mangas)...
b) até outros nos quais a natureza se ausentou, e surge só como Natureza morta e sob formas de segunda natureza: na ecfrase (sobre naturezas mortas — Pedro Tamen — ou «vivas» no quadro — Graça Moura), na poesia urbana e na metapoesia, que a si própria se toma como natureza.
c) Por fim, há poetas nos quais estas distinções fazem pouco sentido: são aqueles (Herberto Helder e algum Ramos Rosa) nos quais a poesia aspira à fusão total de tudo em tudo, e por isso é atravessada por uma energia visionária e vital, por um sentido da Natureza enquanto força que tudo informa, incluindo a linguagem...
Peso do mundo
A poesia não é, nunca foi
uma enumeração ou composto
de exuberância, bondade,
atitude, nem arado
ou dádiva sobre chão
prenhe de mortos.
Nem o arrependimento
de Deus por ter criado o homem
com o rosto da sua memória,
ao lado dos seus vermes.
Tão-pouco fôlego dos que amam
abrindo a porta límpida
do corpo e chovendo sobre a terra,
ou carregam como tartarugas
o peso do mundo.
Nem reverência por um tigre,
pela leveza maligna de todas as patas,
pela sonolência junto à estirpe
aprisionada também
na dureza de ser tigre.
É o milagre de uma arma
total, de uma só palavra
reduzindo o átomo à completa inocência.
[Ignorância da Morte, 1978]
A Natureza de Osório é a da Terra, de uma terra já moldada pela mão humana e pelo Tempo (o que é a mesma coisa) e livro em que Deus está inscrito. Panteísmo? — cf.«Onde o limite?»; ou o topos do livro como mundo («legendas da película da terra»), em «Aparições no poço» —, espelho de uma sabedoria ancestral («Candeio»).
Onde o limite?
A cobra cascavel
rojando-se
e tomilho, louro,
segurelha, os princípios
solúveis
das ervas aromáticas;
o rebento
da silva, sua páscoa,
e as árvores
que são parasitas
suspensos de outras árvores;
as lancinhas
de um centeal
e o sangue por Cristo
suado (Deus sofrendo de terror):
tudo imbricado como telhas,
e persistente, adventício, sem perdão.
[Décima Aurora, 1982]
Aparições no poço
Quando chegam as primeiras nêsperas
ao lado florescem as cilindras
e as folhas dos bambus amarelecem.
O mirto aguarda, entre laranjeiras
elevam-se famílias daninhas.
Há quem chame Deus às legendas
que acompanham a película da terra.
Dentro (isso é certo) nas entranhas
de tudo existe um cronómetro sádico.
Candeio
Candeio de olivedo
na paz de rochas,
e faval junto,
limpa, pelo estrume,
a terra, caracóis
imutáveis, coelhos
escavando
sua perigosa pátria.
Revolvidos séculos,
nascentes cachos de azeitona.
Sabedoria de crescer,
dar, cair varejados.
[Ignorância da Morte, 1978]
Tudo isso — do infinitamente pequeno ao infinitamente grande, num eco da grande «cadeia do Ser» — tem «Um sentido» (contra a poesia do desespero ou do desencanto, as certezas do eterno retorno e do seu «cronómetro sádico»): como a Arte, que a natureza aqui não rejeita ser (vd. os «Aforismos do Cavalo» em Aforismos Mágicos), como me escrevia uma amiga bela e inteligente, num tempo nada distante em que se escreviam cartas, depois de eu lhe recomendar a leitura de António Osório: «Aquilo cheira muito bem a Siena e Florença... tem a vantagem de abafar o enjoativo apelo do mar, que é a única natureza que teimamos em conhecer» (Llansol dar-lhe-ia razão, tem-lhe dado razão com a sua «estética hidrofóbica», desde Da Sebe ao Ser, até O Senhor de Herbais).
Um sentido
Porque há um sentido
no lírio, incensar-se;
e no choupo, erguer-se;
e na urze arborescente,
ampliar-se;
e no cobre, primeira cura,
que dou à vinha,
procriar-se.
E outro, pressago,
sentido há na memória,
explodir-se.
E outro, imensurável,
no amor, entregar-se.
E outro, definitivo,
na morte, render-se.
[O Lugar do Amor, 1981]
Poesia simultaneamente simples e classicizante (cf. a sintaxe, o léxico). Mas no essencial quer ser limpa e despojada como a natureza — conhecendo, naturalmente, as «astúcias do poeta»: limpar as palavras da sujidade; simplificar sempre, usar poucos adjectivos; dizer o inominável de uma forma brutal: o máximo de violência num mínimo de retórica, vulcânica orquestração de pianíssimos («Entrevista apócrifa»).
Também como em Ponge, há aqui (e em Osório) um sentido de didactismo e uma ética que a natureza pode ensinar ao Homem. «Natureza» é aqui o animal, a planta, tal como o são o ferrador de António Osório ou os corpos de Casimiro. Marca humanista? De qualquer modo, parece haver nestes três poetas formas diferentes de humanismo, ou de poesia humanizada, contra a corrente dominante, mais fria. Um novo classicismo (como em Ponge)?. Em Francisco Duarte Mangas é também de uma nova forma de poesia de intervenção que se trata, algo nostálgica, por vezes, em relação ao processo de degeneração ou domesticação da natureza (basta inverter um provérbio: «morrer como tordos»), atravessada por uma certa ironia e pela presença de um franciscanismo ecológico (vd. final de «Especiarias»).
Como a pedra na água: cai, marca um centro, desce ao fundo, deixa à superfície linhas ténues, círculos que se vão apagando, dando lugar a outros. Poesia muito consciente dos seus meios (influência do haicai, do imagismo, umas vezes puro — vd. poema 39 —, outras conceptualizado ou metaforizado), em que o branco alastra, à espera da sua apoteose, sob a ameaça sempre latente da palavra («O melhor que escrevo / é quando apago»). E com o Eu, um Eu que se agiganta, sempre à vista — talvez a grande contradição desta poesia de inspiração oriental, que tem alguma dificuldade em não ser egocêntrica. A Natureza: uma filosofia, servida nos exemplos que escolhi entre muitos possíveis por uma cadeia isotópica de palavras-chave inconfundíveis: depuração, o invisível, fundo/caos, silêncio, apagamento/o Nada...
Ou seja:
a) de poetas nos quais a natureza é uma presença activa que se manifesta em focos de grande intensidade (o corpo, o pó, os elementos em Casimiro de Brito), como centro de uma sabedoria que se funde, no Tempo, com a do Homem e da Arte numa espécie de religião da Natureza (António Osório), ou como objecto de uma consciência ecológica e nostálgica que constrói toda uma teia de motivos poéticos a partir das naturalia (Francisco Duarte Mangas)...
b) até outros nos quais a natureza se ausentou, e surge só como Natureza morta e sob formas de segunda natureza: na ecfrase (sobre naturezas mortas — Pedro Tamen — ou «vivas» no quadro — Graça Moura), na poesia urbana e na metapoesia, que a si própria se toma como natureza.
c) Por fim, há poetas nos quais estas distinções fazem pouco sentido: são aqueles (Herberto Helder e algum Ramos Rosa) nos quais a poesia aspira à fusão total de tudo em tudo, e por isso é atravessada por uma energia visionária e vital, por um sentido da Natureza enquanto força que tudo informa, incluindo a linguagem...
A) A natureza viva
Exceptuando o caso de Heraclito e outros pré-socráticos, que podem, hoje, ser lidos como poetas da natureza, o grande modelo da poesia antiga da natureza para o Ocidente foi Lucrécio e o De Natura Rerum. Entre os poetas portugueses de hoje, quem o leu? António Osório parece tê-lo feito (cf. o título Ignorância da Morte, e referências concretas dispersas pela sua poesia): também aqui, é a natureza, e não uma qualquer metafísica abstracta, que constitui, juntamente com o campo dos afectos (cf. o título A Raiz Afectuosa), a referência fundamental desta poesia feliz, e não trágica: como em Lucrécio, ela quer destruir os temores humanos, o medo dos deuses e da morte, provar que a alma é mortal como os átomos do corpo, e apesar disso, ou por isso, está aí à mão e, como diria Espinosa, pode ser «eterna» (veja-se o final do poema «Peso do mundo»):Peso do mundo
A poesia não é, nunca foi
uma enumeração ou composto
de exuberância, bondade,
atitude, nem arado
ou dádiva sobre chão
prenhe de mortos.
Nem o arrependimento
de Deus por ter criado o homem
com o rosto da sua memória,
ao lado dos seus vermes.
Tão-pouco fôlego dos que amam
abrindo a porta límpida
do corpo e chovendo sobre a terra,
ou carregam como tartarugas
o peso do mundo.
Nem reverência por um tigre,
pela leveza maligna de todas as patas,
pela sonolência junto à estirpe
aprisionada também
na dureza de ser tigre.
É o milagre de uma arma
total, de uma só palavra
reduzindo o átomo à completa inocência.
[Ignorância da Morte, 1978]
A Natureza de Osório é a da Terra, de uma terra já moldada pela mão humana e pelo Tempo (o que é a mesma coisa) e livro em que Deus está inscrito. Panteísmo? — cf.«Onde o limite?»; ou o topos do livro como mundo («legendas da película da terra»), em «Aparições no poço» —, espelho de uma sabedoria ancestral («Candeio»).
Onde o limite?
A cobra cascavel
rojando-se
e tomilho, louro,
segurelha, os princípios
solúveis
das ervas aromáticas;
o rebento
da silva, sua páscoa,
e as árvores
que são parasitas
suspensos de outras árvores;
as lancinhas
de um centeal
e o sangue por Cristo
suado (Deus sofrendo de terror):
tudo imbricado como telhas,
e persistente, adventício, sem perdão.
[Décima Aurora, 1982]
Aparições no poço
Quando chegam as primeiras nêsperas
ao lado florescem as cilindras
e as folhas dos bambus amarelecem.
O mirto aguarda, entre laranjeiras
elevam-se famílias daninhas.
Há quem chame Deus às legendas
que acompanham a película da terra.
Dentro (isso é certo) nas entranhas
de tudo existe um cronómetro sádico.
Candeio
Candeio de olivedo
na paz de rochas,
e faval junto,
limpa, pelo estrume,
a terra, caracóis
imutáveis, coelhos
escavando
sua perigosa pátria.
Revolvidos séculos,
nascentes cachos de azeitona.
Sabedoria de crescer,
dar, cair varejados.
[Ignorância da Morte, 1978]
Tudo isso — do infinitamente pequeno ao infinitamente grande, num eco da grande «cadeia do Ser» — tem «Um sentido» (contra a poesia do desespero ou do desencanto, as certezas do eterno retorno e do seu «cronómetro sádico»): como a Arte, que a natureza aqui não rejeita ser (vd. os «Aforismos do Cavalo» em Aforismos Mágicos), como me escrevia uma amiga bela e inteligente, num tempo nada distante em que se escreviam cartas, depois de eu lhe recomendar a leitura de António Osório: «Aquilo cheira muito bem a Siena e Florença... tem a vantagem de abafar o enjoativo apelo do mar, que é a única natureza que teimamos em conhecer» (Llansol dar-lhe-ia razão, tem-lhe dado razão com a sua «estética hidrofóbica», desde Da Sebe ao Ser, até O Senhor de Herbais).
Um sentido
Porque há um sentido
no lírio, incensar-se;
e no choupo, erguer-se;
e na urze arborescente,
ampliar-se;
e no cobre, primeira cura,
que dou à vinha,
procriar-se.
E outro, pressago,
sentido há na memória,
explodir-se.
E outro, imensurável,
no amor, entregar-se.
E outro, definitivo,
na morte, render-se.
[O Lugar do Amor, 1981]
Poesia simultaneamente simples e classicizante (cf. a sintaxe, o léxico). Mas no essencial quer ser limpa e despojada como a natureza — conhecendo, naturalmente, as «astúcias do poeta»: limpar as palavras da sujidade; simplificar sempre, usar poucos adjectivos; dizer o inominável de uma forma brutal: o máximo de violência num mínimo de retórica, vulcânica orquestração de pianíssimos («Entrevista apócrifa»).
Francisco Duarte Mangas
Um autor que não perseverou, hoje já esquecido. O mais lucreciano destes poetas? Como o Ponge de Le Parti Pris des Choses, mas num registo mais poetizado e menos descritivo ( e também sem o trabalho sobre as palavras e seus jogos). Poesia epigramática (como a de Casimiro de Brito, e alguma de A. Osório) feita com as coisas da natureza animal e vegetal, e contendo, como o epigrama em geral, o seu toque «moral» (ecológico). É talvez o único caso de uma poesia ecológica (ecopoesia) em Portugal, com paralelos talvez apenas na de Cinatti sobre Timor. Também como em Ponge, há aqui (e em Osório) um sentido de didactismo e uma ética que a natureza pode ensinar ao Homem. «Natureza» é aqui o animal, a planta, tal como o são o ferrador de António Osório ou os corpos de Casimiro. Marca humanista? De qualquer modo, parece haver nestes três poetas formas diferentes de humanismo, ou de poesia humanizada, contra a corrente dominante, mais fria. Um novo classicismo (como em Ponge)?. Em Francisco Duarte Mangas é também de uma nova forma de poesia de intervenção que se trata, algo nostálgica, por vezes, em relação ao processo de degeneração ou domesticação da natureza (basta inverter um provérbio: «morrer como tordos»), atravessada por uma certa ironia e pela presença de um franciscanismo ecológico (vd. final de «Especiarias»).
Espécies
Os tordos voam
em bando
morrem um a
um
**
O lince
tem os olhos em extinção
**
O furão
viola a última
privacidade possível
o caçador seduziu-o
para esse fim
**
Paraíso pintado de fresco
A morte é o único bem
que se possui
no paraíso branco
tudo o resto é gratuito
Especiarias
Deve existir uma outra
noite
onde caibamos todos
inocentemente felizes
a comer laranjas
e a discutir problemas de aromas
de flores
(O Pequeno Livro da Terra, Teorema 1996)
Os tordos voam
em bando
morrem um a
um
**
O lince
tem os olhos em extinção
**
O furão
viola a última
privacidade possível
o caçador seduziu-o
para esse fim
**
Paraíso pintado de fresco
A morte é o único bem
que se possui
no paraíso branco
tudo o resto é gratuito
Especiarias
Deve existir uma outra
noite
onde caibamos todos
inocentemente felizes
a comer laranjas
e a discutir problemas de aromas
de flores
(O Pequeno Livro da Terra, Teorema 1996)
Casimiro de Brito
O caminho de Casimiro de Brito é de há muito o de uma poesia de experiências (quase sempre do corpo, dos sentidos, da morte tida como natural), depuradas e amplificadas a dimensões últimas, explorando pouco mais que o instante pleno/vazio, intensidades, fulgurações (respira-se a lição do Zen, como também em António Osório, e o quietismo do Tao).Como a pedra na água: cai, marca um centro, desce ao fundo, deixa à superfície linhas ténues, círculos que se vão apagando, dando lugar a outros. Poesia muito consciente dos seus meios (influência do haicai, do imagismo, umas vezes puro — vd. poema 39 —, outras conceptualizado ou metaforizado), em que o branco alastra, à espera da sua apoteose, sob a ameaça sempre latente da palavra («O melhor que escrevo / é quando apago»). E com o Eu, um Eu que se agiganta, sempre à vista — talvez a grande contradição desta poesia de inspiração oriental, que tem alguma dificuldade em não ser egocêntrica. A Natureza: uma filosofia, servida nos exemplos que escolhi entre muitos possíveis por uma cadeia isotópica de palavras-chave inconfundíveis: depuração, o invisível, fundo/caos, silêncio, apagamento/o Nada...
Intensidades
4.
Afago a taça de chá
como se fosse uma laranja
de sangue. O teu seio. Concha
depurada por mil gerações.
11.
Amor flui onde parece
não haver amor apenas
água que se respira
invisível.
13.
Leio as cicatrizes
da água — papiro crispado
como convém à arte
que vem do fundo.
25.
Sofro não sei de quê
mas sei o que amo — este
momento — o prazer contaminado
pela nostalgia do caos.
39.
Manhã de outono: a sombra
do ramo de flores
na parede branca.
51.
De canto em canto
vou caindo
no charco do silêncio.
69.
Não me pisem,
já não danço —
o melhor que faço
é quando descanso.
Não me louvem, estou cansado —
o melhor que escrevo
é quando apago.
(Intensidades, Limiar 1995)
4.
Afago a taça de chá
como se fosse uma laranja
de sangue. O teu seio. Concha
depurada por mil gerações.
11.
Amor flui onde parece
não haver amor apenas
água que se respira
invisível.
13.
Leio as cicatrizes
da água — papiro crispado
como convém à arte
que vem do fundo.
25.
Sofro não sei de quê
mas sei o que amo — este
momento — o prazer contaminado
pela nostalgia do caos.
39.
Manhã de outono: a sombra
do ramo de flores
na parede branca.
51.
De canto em canto
vou caindo
no charco do silêncio.
69.
Não me pisem,
já não danço —
o melhor que faço
é quando descanso.
Não me louvem, estou cansado —
o melhor que escrevo
é quando apago.
(Intensidades, Limiar 1995)
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