08 junho, 2007


«UMA INQUIETA CERTEZA...» (1)
A NATUREZA E A PAISAGEM
A POESIA E A PINTURA


(Um tema impossível, com João Queiroz em fundo)

... uma inquieta certeza da poesia
não admite questões.
Descobre-se ao virar da vinha, quando chegamos
ao tanque e não há ninguém.

(Joaquim Manuel Magalhães, Uma Luz com um Toldo Vermelho)

A história da pintura paisagística ainda está por escrever (Rainer Maria Rilke, Vorpswede)

A tarefa [do filósofo e de quem olha o mundo]: não tanto ver o que nunca ninguém viu, mas antes, naquilo que qualquer um vê, pensar o que ainda não foi pensado [pintar o que ainda não foi pintado, escrever o que ainda não foi escrito] (Schopenhauer, Parerga)

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Regresso uma vez mais a um caderno antigo, para revisitar uma problemática e tentar compreender um fenómeno que não é exclusivo da poesia de hoje – a minha referência maior, nomeadamente a portuguesa, juntamente com alguma pintura que recupera os não-temas da paisagem e da natureza –, mas que pode ainda e sempre colocar-se nos seguintes termos: em que medida a poesia moderna (de que somos herdeiros) é herdeira do Romantismo (tese de Octavio Paz), ou o seu reverso ou mesmo a sua negação (quanto à questão central da sua relação com o mundo enquanto natureza)? Antes do Romantismo, no Barroco, no Neo-classicismo (e hoje também no Pós-moderno), a natureza é uma convenção da Razão. No Romantismo, a natureza é o texto divino, manifestação do Absoluto dotada de corpo e alma. O Modernismo rejeitou a natureza em nome da abstracção, e o pós-modernismo neutralizou-a: parecendo que a aceita - porque aceita tudo! - transfigurou-a, travestizando-a!


Falar de natureza na poesia contemporânea implicaria, à primeira vista, a necessidade de reunir um corpus poético de recorte realista, no sentido de um mimetismo mais ou menos ingénuo, mais ou menos elaborado, coisa cada vez mais difícil de encontrar na poesia de hoje – embora se continuem a confundir os caminhos do poema com os do mundo. De facto, o que se encontra no poema nunca é a representação, nem sequer a apresentação da natureza ou da paisagem, nem mesmo quando o Eu mais ostensivamente dela se retira – é sempre mais a sua reinvenção. Por outro lado, no mundo de hoje, em que a natureza emigrou para a cidade, não existe natureza, a não ser, ainda e sempre, enquanto «lei da morte» (Nuno Júdice).
Outro problema inerente a esta temática é, ainda, o de delimitar no vasto campo da poesia das últimas décadas um conceito como o de «natureza», que não se pode confundir com o de «real» ou de «mundo», que em muito o transcendem, nem também com o de «paisagem», que é um estádio intermédio, já esteticamente autonomizado, a caminho de uma segunda natureza.


Perguntar pelo lugar da natureza (ou da paisagem) na nossa poesia contemporânea equivaleria então a seguir o percurso de um descentramento que vai de uma centralidade simbólica e já extemporânea (Sophia, Torga, David, mesmo Fiama) que mantém viva a tradição romântica/órfica e ocidental (i.é. religiosa, cristã, mesmo no seu aparente paganismo), até às formas (orientalizantes?) de poesia que recorrem à essencialização da experiência e à figuração, sempre problemática, do «elementar» (Casimiro de Brito, António Osório) e às manifestações estetizadas da natureza nos poetas de uma âge de raison em que ela já só é detectável em formas várias de segunda natureza.


Convém pensar um pouco a questão, para lá de simples enumerações ou exemplos, para precaver leituras mais ingénuas ou impressionistas, e porque, de facto, «continuamos a confundir os caminhos do poema com os do mundo» (Fernando Guerreiro, no poema «Retórica da Paisagem», in: Teoria da Literatura, 1997). O espectro de nomes covocáveis na poesia portuguesa do último meio século (se tivéssemos de os convocar todos aqui) poderia causar alguma estranheza, porque vai do mais óbvio até àquilo que aparentemente já não deveria ter lugar num contexto em que se fala de «natureza»: da natureza mais naturalista à sua total ausência em formas várias de segunda (e mesmo de terceira) natureza. Mas a natureza nunca foi «primeira» na poesia: por isso, a entrada neste domínio terá de fazer-se pela porta da estética e da teoria do belo natural. Joaquim M. Magalhães definiu do seguinte modo o lugar da natureza na poesia: «A natureza foi na poesia/ o equivalente do que não mudava» ("Muro", in: A Poeira Levada pelo Vento, 62) – ou seja: um absoluto intocável, ou uma convenção renovável. E hoje? Qual é essse lugar? É o de uma «inquieta certeza da poesia /não admite questões. /Descobre-se ao virar da vinha, quando chegamos/ ao tanque e não há ninguém» (Uma Luz com um Toldo Vermelho, 11).


Por isso a Natureza é um não-tema, ou um tema impossível na poesia do século XX:
1) Porque a certa altura se tornou metapoesia, e passou a olhar para o seu próprio umbigo, em vez de olhar para o mundo;
2) Porque se tornou poesia urbana (uma quase tautologia, desde Baudelaire e o seu «O Cisne», a patinhar num charco meio seco e a sonhar com campos, Áfricas e belezas negras em plena Paris moderna):
3) Porque a poesia também se quis moral e empenhada, e aí a natureza é vista como mero escapismo. Ou então é humanizada, historizada, ideologizada, caso do neo-realismo. Mas, nascendo dele e superando-o, há também o percurso de libertação da poesia desses constrangimentos em Carlos de Oliveira – até ao ponto, nas últimas obras, de a natureza se transformar, ela própria, em grande metáfora da poesia e da História.


Tema impossível? Porque a poesia da natureza se ausentou do século XX? E o belo natural da arte moderna?
A explicação poderá estar no próprio processo histórico da arte, depois do «terror do idealismo», da sua «sombra tenebrosa» (Adorno) que significou o fim da estética do belo natural depois de Kant, de Rousseau, dos Românticos, que ainda acreditam na fórmula «belo natural = belo moral». Mas o belo natural é já aí transcendentalizado: a natureza grandiosa é, em si mesma, aterradora, em nós, ou com a nossa participação activa, é «sublime», e a natureza da pintura de género deixou de interessar. Isto leva à autonomia progressiva do estético, contra a heteronomia da (primeira) Natureza (e à grande e antiga nostalgia da arte, a de ser natureza, a de substituir-se a ela, que perdurará até aos modernos: veja-se o caso de Magritte, e em particular um quadro como «La trahison des images»). Mais tarde, no Fim-de-Século, a arte, arrogando-se o papel de preencher o vazio ético e religioso instalado depois da «morte de Deus» – e da natureza –, pretender-se-á completamente alheada de qualquer vínculo à natureza, em universos decadentes, de penumbas e veludos, de sombras e memórias, em Huysmans ou Proust, em Bernardo Soares ou Gustave Moreau. De permeio, entre Romantismo e Fim-de-Século, o regresso da arte naturalista no século XIX fora uma (re)aproximação apenas falaciosa da natureza: porque, tal como a indústria (a transformadora, e a do turismo!), ela reduz a natureza a matéria-prima e a cenário, destituindo-a da sua força, primordial e quando muito arcaica, de fonte viva de energia.


Hoje, no entanto, numa fase (dita pós-moderna) de nostalgia pacificadora, sem a agressividade e a violência dos Modernismos, a arte parece ter-se reconciliado, por indiferença ecléctica, mais do que por convicção, com as suas raízes, parece ter-se dado uma viragem. Embora não seja possível falar de uma poesia da natureza, a «natureza» volta a estar mais presente: como ruína (a forma por excelência da paisagem que não renuncia à natureza, mas já é sobretudo tempo, i. é. história e cultura: vd. o ensaio de Georg Simmel sobre a Ruína, ou alguma poesia de Nuno Júdice), como nostalgia (das origens, claro!), como anti-natureza (urbana). Adorno sugere (Teoria Estética, p. 81) que na nossa época - cada vez mais afastada da natureza - a natureza como tal deixa de estar «presente» na arte, porque a civilização (material e moral) domina e se impõe à própria arte em termos de «material», de temática; mas é subsumida pela arte sob a forma de nostalgia ou Ersatz: «Quanto menos esta experiência [do belo natural] se pode fazer serenamente, mais a arte se torna sua condição» (p. 81) (pode ler-se também um prolongamento desta ideia em Nuno Júdice: «Acerca da Natureza», in: A Fonte da Vida, 1997). Isto é: num tempo em que a natureza está totalmente domesticada e é burocraticamente gerida (a natureza está à venda: no condomínio de luxo, no turismo em geral e no rural em particular, na luta política eleitoral, na publicidade!) - mesmo nos movimentos ecológicos, porque de outro modo seriam ineficazes num mundo hipercontrolado pela economia -, a experiência (mediatizada) da natureza voltou a emigrar para o interior da obra de arte (tal como o mito), onde, no entanto, mais não pode ser do que:

a) desejo (de ser a natureza, de regresso a qualquer «origem». A arte já não é imitação, quer ser «salto»: Ursprung ist das Ziel (A origem é o objectivo), dizia Karl Kraus em 1900. A arte é, na verdade, o único lugar onde natureza e mito ainda são acessíveis, como aquilo que a racionalidade esqueceu);
b) profissão de fé idealista (por exemplo em Ruy Cinatti, com as suas visões de Timor; em Sophia: o mar «Como um rumor» e uma promessa; em Torga: a Terra (da Ibéria), com as suas fragas e cicatrizes, que o mar não pode ter);
c) um «frémito salutar», como diz Adorno do verso de Verlaine «La mer est plus belle que les cathédrales», num «ambiente» quase todo ele já virtual, em que vivem e mal respiram os leitores de poesia hoje.

Em todos estes casos, a arte substituiu-se à natureza, eliminando-a, mas querendo manter o que ela promete (é a sua grande ilusão, mas também o seu paradoxo produtivo).

(continua)