09 junho, 2007



«UMA INQUIETA CERTEZA...» (2)

A NATUREZA E A PAISAGEM
A POESIA E A PINTURA

(Um tema impossível, com Caspar David Friedrich em fundo)


... apenas acontece, meu amor, que a Natureza nunca ninguém a viu...
(Maria Gabriela Llansol, O Jogo da Liberdade da Alma)


O tema impossível acaba então por ser, apesar de tudo, um tema presente. Pode constatar-se que alguns mitos da vivência, da consciência (metafísica), da representação da natureza na poesia (ou na pintura, ou também no cinema) foram mitos românticos (órficos) que o século XX levou ao fim, ironizou, superou conceptualmente, subverteu... e recuperou (em alguma poesia de hoje: Fiama, Osório). Torga e Sophia ainda vivem essa tradição, representam-na de uma forma mais autêntica (na figura de um «Orfeu Rebelde», ou na Natureza como revelação...); depois, o tema torna-se «impossível», porque a ingenuidade/autenticidade é suspeita, e porque a natureza foi recuando, devido à sua dominação pelo «progresso», para horizontes que a ocultam quase completamente. Tudo isto é dado a ver/ler já em Pessoa, com a sua perspectiva negadora e negativista de todas as naturezas: mesmo no Sensacionismo vitalista de Campos, no epicurismo sem metafísica de Caeiro. Reis, esse é já todo arte! E no meio disto há, nos modernistas, a tensão de um espinho — do intelecto — no corpo e na natureza; e a metaforização e a nostalgia da Natureza e do corpo em muitos contemporâneos.

Apesar de ser um tema impossível, verifica-se que a imagética e os motivos da natureza, a sua presença subliminar como desejo, atravessam muita poesia contemporânea — pela negativa, pela presença-ausência (nostalgia), pela ironia mais ou menos desencantada, mesmo pelo sarcasmo... Basta ir lendo a poesia de Joaquim Manuel Magalhães, António Franco Alexandre, Helder Moura Pereira ou esse repositório de paraísos artificiais que é toda a poesia de Manuel de Freitas.

De um ponto de vista diacrónico mais alargado, verifica-se que o lugar da Natureza na arte se altera ao longo dos tempos. Isto pode mostrar melhor como a poesia de hoje parece querer ser em muitos aspectos um regresso, e como ela está atravessada pela mitologia/superstição das origens — como muita da nossa cultura literária e artística de hoje, apesar de toda a sua vontade de ser «actual».


Num momento que se pode designar de arcaico (animista), a arte exorcisa os fenómenos e a natureza na ilusão de dominar o inexplicável (é o seu lado religioso, ritualístico): «dominar» é já aqui, como será sempre na arte, reduzir aos limites de uma forma (esta será a sua dimensão estética). Daí o predomínio, que talvez não se explique apenas por deficiências técnicas, das formas estilizadas e geométricas na arte primitiva e arcaica, até aos Celtas. E também, novamente, nos modernos, como mostraram autores e obras decisivas, como Wilhelm Worringer (Abstraktion und Einfühlung / Abstracção e Empatia, 1908), Kandinsky (Do Espiritual na Arte, 1908) ou Adolf Loos, com Ornamento e Crime, de 1904 (já editado em português pela Cotovia), para quem o ornamento é um acrescento (abusivo) de Natureza à Forma, e por isso «crime».


Um dos autores que melhor terá pensado, há um século, a relação da natureza com a arte e com a paisagem — que é também já o resultado de uma trans-formação — foi Georg Simmel. Perguntando-se o que faz da natureza uma paisagem, Simmel responde: o mesmo que faz da natureza uma obra de arte. A paisagem é um primeiro estádio da segunda natureza que é a obra, porque já é uma primeira síntese, uma primeira tentativa de dar forma (autónoma) a um pedaço de mundo (ein Stück Natur). Mas não faz sentido falar num «pedaço de mundo», porque a natureza é sempre um todo, mais uma força do que um espaço. E aquilo a que chamamos cultura ou arte (e que tem também uma vertente de religiosidade) é a busca de um sentido para esse caos indivisível da vida/natureza.

Num livrinho muito sugestivo para entender esta problemática (O que Falta ao Mundo para Ser Quadro?, 1993), Rosa Alice Branco interroga-se sobre a diferença entre quadro e mundo. E o que é que falta ao mundo (natureza) quando confrontado com o quadro (poema)?: penso que será simplesmente um «princípio de economia». Há no mundo um esbanjamento de energias e de matérias inteiramente supérfluo, e por vezes incompreensível. O quadro/poema retém o essencial e despreza o acessório, é um «modelo reduzido», sugere apenas o sentido, e plasma tudo numa forma: assim, «o quadro faz-nos escapar ao tédio da verdade» (que é como quem diz: ao entediante verismo da natureza).


Vejamos alguns momentos:

1. Este espírito da contenção está já presente nos primitivos, nas origens ritualísticas da poesia. As primeiras formas de poesia — que perduram até à Idade Média europeia — são fórmulas mágicas, ladainhas, sentenças, ditados; ou então imitam a natureza (pela onomatopeia, pela exploração do ritmo), porque imitar é dominar (ser «igual»).
Walter Benjamin reflecte em dois pequenos fragmentos («Doutrina das semelhanças» e «Sobre a faculdade mimética») sobre esta necessidade primitiva de imitar, e conclui que a passagem da imitação da natureza/das estrelas (que propicia uma «leitura antes de toda a linguagem», ein Lesen vor aller Sprache) para a inguagem e a escrita, «o mais completo arquivo de semelhanças não-sensíveis», corresponde a uma evolução que tira a magia do mundo: «aquele que imita retira a magia à natureza, ao levá-la até mais próximo da linguagem...»

2. Na poesia popular, a natureza surge em geral como quadro, fundo de afectos, comportamentos, sentimentos humanos (ainda nas cantigas de amigo): a natureza é aí a grande referência analógica.

3. A natureza torna-se convenção e objecto de imitação, desde Aristóteles (que a cultura artística e literária seguiu cegamente entre os séculos XVI e XVIII). Mas esta imitação não é a emulação «primitiva», aproxima-se mais daquilo a que Benjamin chama «semelhança não-sensível». Do Renascimento ao Neoclassicismo a natureza cede à cultura, que ganha ela mesma pretensões de natureza.

4. O Romantismo — e, de modo diferente, as tendências naturalistas do século XIX — opera uma espécie de re-naturalização da natureza (mas não deixa de lhe atribuir uma «alma», uma anima mundi!). Mas é ilusória essa vontade de restituir à natureza a sua força e sublimidade, e também de aproximar dela o sujeito, de o assimilar a ela: é um gesto contraditório, porque o sujeito está sempre fora dela (que é o seu Outro), porque é o único detentor de consciência da natureza (vd. a representação do sujeito — sujeito de contemplação! — na pintura romântica, ao mesmo tempo inserido e quase perdido na natureza, e contemplador da sua grandeza...).


5. A autonomização (moderna) da arte tem consequências irreversíveis para a sua relação com a natureza (já no Idealismo: vd. a Estética de Hegel e sua recusa do belo natural). Com a arte abstracta moderna dá-se a cisão definitiva: a arte é ausência da natureza, segunda natureza que da primeira, «supostamente original» (Adorno) — porque também ela é mero eco do paraíso —, só retém a nostalgia recalcada (a reflexão segunda, sob a forma da arte, relembra o que a racionalidade esqueceu — e não é pouco, nem despiciendo!).
Excelente exemplo disto: o poema «Emersoniana», de António Franco Alexandre, que vale a pena transcrever:

a oeste são os planaltos, a vida selvagem
que um céu de água recolhe,
um horizonte de coisas por dizer, por acontecer
mas a verdade mais abstracta é a mais prática:
let him look at the stars. tão longe
do seu próprio quarto como da multidão.

por isso os selvagens, que não têm mais
que o necessário,
conversam em figuras.
esta dependência imediata da linguagem
esta radical correspondência das coisas visíveis
nunca perde o poder de afectar-nos.

devemos ir sós, vivos e sós. i must
be myself.
tudo quanto Adão teve, o céu a terra a sua casa,
tudo podes e tens.
keep thy state; come not into their confusion.
constrói, sim, o teu reino, o teu mundo: natureza.

(As Moradas, 1987)

6. O pós-modernismo assinala o regresso, ecléctico, indiferenciado, de tudo, inclusivé da ingenuidade consciente (perversa, ou simplesmente descomplexada). A própria natureza já não é natureza: ou é o seu recalcamento (pela cultura, nos «poetas doutos»), ou a sua nostalgia, ou a sua travestização cínica (exemplo: Nuno Júdice, «Receita para fazer o azul», em Meditação sobre Ruínas, 1994). E pode ainda ser a sua transferência para a terceira natureza das cidades, em António Franco Alexandre, Joaquim Manuel Magalhães Manuel de Freitas ou Rui Pires Cabral: aqui, assume-se consequentemente (embora com um travo de melancolia amarga) a cultura e a civilização contra a natureza im-presente (que distingo de não presente, porque traz uma carga de negatividade mais visível).


Na Teoria Estética (a última grande tentativa de formular estas e outras questões com algum sentido de universalidade) Adorno constata que, apesar de tudo, raramente se assume consequentemente a cultura e a civilização contra a natureza, a não ser precisamente em alguns domínios da arte (que sabe que, para ser «autêntica», não pode ser «natural», e que natureza hoje só como... natureza morta!); ou então em certos sectores da indústria do entretenimento ou da pseudo-cultura (que julgam, na sua cegueira deliberada, ser eles a natureza: as televisões ou a Internet).

(continua)