07 junho, 2007


O LIVRO DAS TRANSPARÊNCIAS

Llansol e o Grande Prémio de Romance e Novela


Vem aí um ensaio longo que escrevi sobre o livro de Maria Gabriela Llansol vencedor do prémio da APE, inserido num caderno do Espaço Llansol, com o título O Livro das Transparências, que também conta com textos de Hélia Correia, Pedro Eiras e Maria de Lourdes Soares. No dia da entrega desse prémio (7 de Julho, na Fundação Gulbenkian) estarão disponíveis este e mais quatro cadernos da série "Jade-Cadernos Llansolianos". Antecipo aqui alguns fragmentos desse ensaio sobre o livro de Llansol.


Amigo e Amiga é o livro de uma perda e de uma ressuscitação, do desespero e do reencontro de um dos braços de um «ambo», e confirmação do motivo llansoliano do «eterno retorno do mútuo» num processo de metamorfose que, no texto e pela escrita, e com recurso ao mundo sempre disponível para o trabalho da matéria figural, supera o próprio «mistério do desaparecimento». A forma de escrita e a configuração estrutural encontrada é, desta vez, a do fragmento (como já, de forma implícita, em quase todos os livros de Llansol, e de forma mais explícita em O Começo de Um Livro É Precioso, Assírio & Alvim, 2003). O processo de articulação destes estilhaços de experiência posta em texto (em número de cento e oitenta e um, seguidos de uma «adenda») é a de «fragmentos sem elo lógico», de um «salva-vidas dos fragmentos»… (…) uma tecelagem de intensidades que se processa simultaneamente a vários níveis.


O que no próprio livro (objecto de leitura) se lê são sinais de uma perda, que deixou marcas no corpo e no mundo envolvente (no «ambiente» de quem escreve); o que aí se escreve é o caminho para a luz e a transparência reencontrada, num trabalho de luto desencadeado pela escrita e por ela sustentado, da noite obscura para a «noite azul». E não se pergunte pela «simbologia» do azul, porque este está para além da cor, é de ordem já «figural» e energética, e não apenas imagética e cromática: «o azul não tem origem» e «ninguém pede ao miosótis que seja mais azul do que o azul do miosótis» (p. 227). Um processo de ressuscitação e metamorfose, comum a tanta figura deste texto, e que agora o Eu que escreve chama a si e em si próprio segue, aprendendo o silêncio no (per)curso estruturado pelas quatro partes que compõem o livro.


Tal como houve, desde sempre, neste texto uma capacidade de «sobre-impressão», de inscrição de um «mais» sobre as coisas, as paisagens e a beleza do mundo, assim também em Amigo e Amiga essa capacidade põe a descoberto, ao longo de um processo de luto e de aprendizagem, os modos da sobre-vivência. Esses modos apresentam-se aqui, com frequência, sob duas formas: em primeiro lugar, a da interrogação permanente de um Eu «experimental» (…) E depois da interrogação vem a escuta: mais do que noutros livros, acumulam-se nos dias deste Eu sinais de vibração, ritmos, música e, claro, silêncio…


Criando figuras que são uma espécie de «mensageiros secundários», como os da biologia, sinais de reenvio para outras zonas do real, o texto deixa de ser mero «projecto» (filosófico ou romanesco, fechado em si, com o intuito de oferecer respostas) para se transformar em «projéctil», caminhante e aberto. Nele não há conceito, ou, a existir, não será o conceito concebido do sistema, mas o conceito concebente que gera o devir da metamorfose e da conjectura do possível.


A resposta do texto ao silêncio é musical e imagética. Em toda a primeira parte actua a força física das imagens nuas (a «realidade absoluta», p. 22), imagens visuais e sonoras, emanadas da «coroa solar de Parasceve» revisitado, «a árvore do silêncio que não era… o reverso da árvore da vida», centro a partir do qual irradiava, «afinal, uma única melodia [que] respondia ao silêncio» (p. 15). Despejando o presente do lastro obscuro da memória, o trabalho das imagens, espelho de uma alma que prescinde da psicologia para insistentemente colocar à vista uma psique em mutação, irá progressivamente anulando os efeitos da prisão do tempo, re-nomeando a perda…


Quem conhece o (não-) lugar da morte em toda a obra de Maria Gabriela Llansol, começará por dizer que este é o primeiro livro em que a morte muda de estatuto e a relação com ela se altera. Nesta espécie de diário sem datas, de breviário da deslocação progressiva de uma figura interlocutora de uma «conversação espiritual» e de um combate intelectivo e afectivo, a morte, que antes era mero estádio, lugar de passagem na metamorfose das figuras, transforma-se agora em mistério.


A própria morte se submete à lei da causa amante da metamorfose, e é agora uma «imagem inflorescente» composta por várias imagens, e fonte de um «devir maior» (p. 159). (Chegam-nos ecos de um poeta maior da morte, e também da sua transfiguração, Paul Celan, e do poema do espólio em que escreve: «A morte é uma flor que só abre uma vez. / Mas quando abre, nada se abre com ela. / Abre sempre que quer, e fora de estação. // E vem, grande mariposa, adornando caules ondulantes. / Deixa-me ser o caule forte da sua alegria.»).

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