Representação ou apresentação/exposição?
Ainda não é hoje que entrarei nos Ritos de Passagem, o meu Diário para Walter Benjamin. Antes disso, quero deixar aqui os meus argumentos para a tradução de um termo-chave de um dos livros maiores de Benjamin.
Pouco tempo depois da saída da tradução portuguesa do primeiro volume das Obras de Walter Benjamin (WB), que inclui aquele que é porventura o seu mais difícil texto (que traduzi por Origem do Drama Trágico Alemão, na impossiobilidade de dar, sem perífrases explicativas, o original, Ursprung des deutschen Trauerspiels (UdT), geralmente traduzido por Origem do Drama Barroco Alemão), a professora da Universidade de S. Paulo e reconhecida benjaminiana Jeanne Marie Gagnebin (JMG) escrevia um artigo (entretanto saído na revista de Belo Horizonte Kriterion, nº 112, Dezembro 2005) em que contestava a tradução do conceito de Darstellung (que aparece logo na primeira frase do livro) por «representação», propondo e defendendo os termos «apresentação» ou «exposição».
Afinal, o que está em jogo nesta confrontação?
Várias questões, às quais se poderia responder com argumentos de diversa ordem. A crítica de JMG à tradução de Darstellung por «representação» (re- -presentação) faz lembrar as cartas a propósito dos inovadores ensaios sobre Baudelaire, exageradamente críticas e quase destrutivas, que Adorno tem de escrever ao pobre WB na fase do Instituto de Investigação Social na América, por incumbência do «patrão» Horkheimer…
Vejamos alguns tipos de argumentos que poderiam servir para contrapor à proposta de JMG.
1 - Linguísticos:
Darstellung oferece a possibilidade real de ser traduzida por várias palavras em português, e tem-no sido: representação, apresentação, exposição, espectáculo, demonstração, descrição; até estilo ou caracterização… O campo semântico alargado onde esta palavra se situa (para ampliar o que diz JMG) não é apenas o de Ausstellung (exposição de arte), mas também o de outras palavras, bem problemáticas por vezes: Vorstellung, Aufstellung, Unterstellung, Hinstellung…
Na primeira frase de UdT, e no resto do Prólogo, trata-se do método filosófico de WB. Ora, neste contexto o uso de «representação» não remete para o campo de uma estética da representação (imitação, mimese, no campo da arte), mas para um seu uso (filosófico) que reflecte exactamente aquilo que JMG vai destacar como sendo essencial desse método de WB: o lugar da linguagem (conceptual, porque aqui não pode ser outra, sob pena de a filosofia se renegar a si mesma!) como suporte da dupla Verdade-Beleza no «tratado» ou no ensaio filosófico. Penso que «representação», podendo ser questionável, não é errado, nem se pode dizer que Darstellung «não pode nem deve ser traduzido por 'representação'» (vd. 3: Argumentos conceptuais).
2 - Históricos:
Até agora, na tradução de UdT em todas as línguas, Darstellung foi sempre traduzido por «representação». Em alguns casos, como o de Sérgio Paulo Rouanet e, por maioria de razões, da tradução italiana, por parte de tradutores perfeitamente capazes de entender o que está em causa no Prólogo. É caso para perguntar: por que aconteceu isto? É um pouco como aquela história dos relativistas que dizem que a tradução é impossível – mas o facto é que ela se faz!
O que está aqui em causa é também o problema da margem de desfocagem e de flexibilidade que alguns conceitos alemães exigem ao serem transpostos para português (língua, como sabemos, muito menos rigorosa neste domínio), e para que um texto, também filosófico, seja legível como o resultado de um encontro entre verdade e beleza na língua, e não apenas com a preocupação de uma verdade que resulta muitas vezes num jargão filosófico esteticamente irritante (falo do estilo deficiente, não do conceito). Em WB é fundamental preservar a forma do conteúdo, sem o que se lhe desvirtua o estilo e as ideias. Imagino-me (mas não tenho tempo agora para o fazer) a reler o Prólogo com as palavras «apresentação» ou «exposição» (aliás, também elas com essa margem de desfocagem na nossa língua, também elas ambíguas), e vejo o leitor português a tropeçar a toda a hora nesses corpos algo estranhos. É claro que eu sei que a questão aqui não é o ser mais ou menos «estranho», é a do rigor do conceito a usar (vd. 3. Argumentos conceptuais).
3 - Conceptuais:
Estes são os argumentos fundamentais. Começo por perguntar: «re-presentar» não é aquilo que faz o «tratado» ou o ensaio, qualquer texto filosófico que se serve do conceito, um «derivado», linguagem mediatizada, que não é igual, nem semelhante, à da arte? Adorno diz que há uma «aproximação» entre o método do ensaio e o da arte (volto a isto mais adiante). E JMG, referindo-se precisamente a Adorno, diz que em WB se trata de «uma teoria da escrita filosófica» e de «eleborar e defender um certo modo de aproximação contemplativa da verdade». Ora, eu penso que precisamente por isso é que é legítimo falar de re-presentação dessa verdade. Porque a verdade (que aqui é a verdade da Ideia) não se expõe, nua e crua, mas é re(a)presentada no palco do pensamento. Não é metáfora, não: pensar é teatralizar o real, encená-lo, não podemos fazer mais do que isso (Eduardo Lourenço disse uma vez que os meus ensaios têm algo de «dramático», neste sentido). O Prólogo de WB diz mesmo: «didactizá-lo». Não é apresentá-lo num acto de «mostração» impossível (isso é mais o próprio da arte, como já lemos na terceira crítica de Kant, quando fala da «hipotipose» – mas em WB não é de hipotipose que se trata, é de uma forma particular de mediação).
Outros argumentos, não em favor de uma pretensão exclusiva no uso de «representação», mas da sua possibilidade:
JMG lembra a passagem em que WB aproxima a filosofia da teologia e da arte (repare-se que se fala sempre em termos de «aproximação», e não de coincidência ou identidade de métodos), e cita a «passagem sibilina» em que WB coloca a oposição entre Erkenntnis (conhecimnento)e Darstellung (re-presentação / apresentação) na filosofia. A oposição é clara. Mas pergunto: o que impede o uso de «representação» neste contexto? A verdade não se «expõe» na filosofia como na arte (pela imagem, pela hipotipose, colocando «a coisa debaixo dos nossos olhos») ou na teologia (pelo dogma): é mediatizada, em mais alto grau, pela própria linguagem conceptual (uma metalinguagem incontornável), é re-presentada por ela. Chegar à «coisa mesma» pela linguagem é impossível, reconhece JMG, porque ela «sempre lhe escapa». Eu diria: re-presentar corresponde bem a esse segundo momento (da coisa, do objecto) presente no tratado/ensaio, em que a verdade só se mostra numa dobra, não de frente. Porque essa verdade, diz o Prólogo, são as «ideias» (não as platónicas, nisso estamos de acordo, ou pelo menos não apenas elas; quem anda por aqui é mais Goethe do que Platão): e como se podem expôr/apresentar as ideias, mero reflexo da empiria nos conceitos, estrelas distantes e não Sol (diz Benjamin em carta a Rang, 9.12.1923)? Numa presentação de segundo grau, re-presentação, que é a linguagem dos conceitos. Mesmo aqueles conceitos que não estão prédeterminados num sistema, mas resultam da dialéctica entre verdade e beleza, que nasce de cada objecto particular. E aqui temos outro problema: JMG diz: «a filosofia desenha as figuras conceptuais possíveis (!) nas quais a verdade se dá a ver e a entender – como a arte o faz na figuração sensível». Mais uma vez, acho que a aproximação é excessiva, talvez abusiva (eu salvaria o «entender», mas não o «ver»). A dialéctica entre verdade e beleza em WB não permite esta conclusão. Nem ele crê (nem o põe em prática) que o método da filosofia seja igual ao da arte, «figuração sensível» (a filosofia teria de abdicar de si e tornar-se pintura ou literatura: há o «resto» da coisa, que está mais presente numa imagem que a «dá a ver» do que no conceito que lhe arma o cerco). Precisamente neste Prólogo, também ele altamente conceptualizado, não é isso o que acontece. Também Adorno (em «O ensaio como forma»), com quem JMG traça paralelos, é claro nisto: o ensaio não é arte, apesar da unidade, a que aspira, entre o representado e a forma de representação (uma «forma», neste plano da linguagem verbal e conceptual, não será sempre uma representação, uma mostração mediatizada, e nunca uma exposição?). Do ensaio e da sua «verdade» disse Adorno que ela é sempre uma «não-verdade» – e não se pode isto aplicar também à verdade no tratado de WB? Apesar da sua forma de pensar-escrever, como um Bilddenken (pensamento imagético), mas que não pode deixar de ser pensamento, trabalho de re-presentação conceptual? Penso que sim, e que isto pode legitimar o uso de «representação» neste seu texto. Deixando em aberto todas as portas para traduzir Darstellung por «apresentação» ou «exposição». A natureza dos textos determinará os caminhos da sua tradução.
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