O MÉTODO : LABIRINTO E TRANSPARÊNCIA
Todos os dias se me impõe alguma questão de fundo, das muitas que atravessam uma Obra refractária a esta noção de escrita acabada que entrou em crise funda com a modernidade (nisto, Benjamin é bem um contemporâneo de Dada, apesar de desconfiar de todas as vanguardas). Uma dessas questões é a do método. Para Walter Benjamin, e ainda que se trate de objectos não rigorosa ou tecnicamente «filosóficos» – e isso acontece com o grosso da sua obra, que se ocupa predominantemente de objectos literários, do Barroco ao século XX –, esse método é o da «crítica (ou da hermenêutica) filosófica». O que isso significa, deixou-o claro em textos-chave como o Prólogo a Origem do Drama Trágico Alemão ou no ensaio sobre As Afinidades Electivas de Goethe.
Penso que o «perigo» que um tal método pode comportar – uma benesse, quando comparado com tanto laxismo impressionista e tanta filologia aguada que grassam ainda nos «estudos literários» – é largamente compensado pela «salvação» que esse método propicia do que há de mais essencial nos textos. O que, naturalmente, me faz imediatamente pensar, não só na dialéctica benjaminiana de «redenção e destruição» (Rettung und Destruktion), mas também na abertura e no fecho do hino de Hölderlin com o título «Patmos», que contém in nuce, o método de Benjamin. Ouçamos Hölderlin:
Perto está
e difícil de apreender, o deus.
Mas onde existe perigo, cresce
também aquilo que salva.
[...]
Mas ao pai, àquele
que sobre todos reina,
apraz acima de tudo que cultivemos
a sólida letra e que
interpretemos bem
aquilo que é [...]
O método de Benjamin persegue um objectivo (busca um «deus por vir», que é um deus profano): descobrir o mais distante pela observação incansável e implacável do mais próximo. O perigo de nos perdermos na floresta do texto (o risco de todo o acto hermenêutico, e o seu desafio, presentes também, sob forma potenciada, em cada momento de tradução do texto de Benjamin) desaparece perante o milagre operado por esse mesmo texto – texto da linguagem, da história ou também do inefável –, lugar de salvação de sentidos e de «origens» várias, no próprio acto da sua apropriação (para um) presente. Seja o intérprete sensível à «sólida letra» que funda toda a atribuição de sentido(s), e o texto abrir-se-á à revelação dos seus mais profundos «conteúdos de verdade» (na tradução, o vidro fosco do original pode ganhar uma transparência que a mera leitura nem sempre dá – mas também pode embaciar-se mais).
Uma vez aqui chegado, o «crítico filosófico» Walter Benjamin transforma-se no mais radical e exigente filólogo. Foi este o método revolucionário que iniciou com a análise do teatro barroco alemão, mais exactamente do seu «drama lutuoso» (Trauerspiel).
DAS COISAS
Por um acaso, naturalmente não calculado, terminei a tradução de Origem do Drama Trágico Alemão no dia do aniversário de Benjamin, em 15 de Julho de 2003.
Retrato do filósofo em menino
O filósofo faria nesse dia 111 anos. O número não é redondo, mas é perfeito. Nesse dia, a tradução suspendeu-se numa passagem em que – na sequência de outras, anteriores, e fechando a discussão do tema, quase no fim do livro – Benjamin define, em síntese, o lugar da coisa no pensamento e na contemplação alegórico-melancólicos. A frase, lapidar, diz: «Tudo o que a sua mão de Midas [a do alegorista melancólico] toca, transforma-se em coisa significante».
A coisa situa-se, para Benjamin e neste livro, nos antípodas do lugar das coisas num poeta (e «pensador» malgré lui) como Alberto Caeiro, seu contemporâneo.
Aquilo que neste confronto se esboça é a oposição entre o alegórico e o elementar, entre a disponibilidade (da coisa) para a significação – toda e qualquer, aquela que o olhar alegórico lhe queira impor – e a recusa de significar por parte da coisa que é porque simplesmente está aí (ou então por decisão daquele que, fora dela, lhe atribui essa condição elementar de ser, sem mais e sem metafísica). Poderíamos dizer que Caeiro é «antigo e oriental», e que o drama barroco de que se ocupa Benjamin é uma das mais típicas manifestações do espírito «moderno ocidental» (leia-se: do primeiro momento da alegoria moderna, entre a medieval e a de Baudelaire). Por alguma razão este modo alegórico atravessa várias «modernidades», desde o Barroco (para Benjamin um momento fundamental da disjunção, do desmembramento e da fragmentação da visão classicista totalizante do Renascimento), passando pelo Romantismo e pelas fantasmagorias urbanas da grande cidade do século XIX, cujo arquétipo é a Paris de Baudelaire, até aos movimentos modernos e mais ainda aos pós-modernos, no século XX.
Kitaj, Autumn of central Paris
Hoje, estamos em condições de constatar como na pós-modernidade – contra Caeiro e todos os purismos modernistas – as coisas perderam definitivamente a sua inocência.
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