03 novembro, 2006

A BELA ADORMECIDA

Reparo agora que o aparato crítico da edição alemã anota várias vezes citações incorrectas, falsa indicação de fontes, no original de ORIGEM DO DRAMA TRÁGICO ALEMÃO. As correcções feitas ao filósofo – às suas distracções em matéria filológica –, levadas a cabo pelos responsáveis da edição alemã, perdidas no meio de muito «small print» tipicamente germânico, deixam-nos um tanto perplexos, chocam o leitor fascinado e desprevenido.


Manuscrito de Walter Benjamin

Benjamin, de resto tão minucioso, enganou-se assim tanto? Talvez – quem sabe? – tenham sido estas miudezas que levaram os sisudos e obsoletos professores de Frankfurt a rejeitar o livro-tese. Ou então foi a incapacidade ou indisponibilidade para ler esta prosa única na época, e mais ainda na universidade, misto de jargon hegeliano, esoterismo gramatical de raiz judaica, ou hamanniana, e alguma pompa de construção frásica, filha do próprio drama barroco de que se ocupa o livro. Poderia dizer-se que o próprio objecto contaminou a análise.


Ex-libris de Perico Pastor

Seja como for, as imperfeições humanizam o peso esmagador do texto e do pensamento que o produziu, e aclaram a névoa mítica que envolve a figura. Fragilizando-a, aproximam-na mais da sua dimensão verdadeiramente humana. Que é também mais a da maior parte dos textos – ensaios, fragmentos, notas, citações, esboços de reflexão, lampejos de experiência, até registos de sonhos e estados de êxtase – produzidos um tanto caoticamente, depois desta dissertação recusada.


Retrato do filósofo quando jovem

O primeiro deles terá porventura sido a célebre fábula da Bela Adormecida, recontada por Benjamin para uso e lição de todos os júris académicos, e que constitui a sua resposta – e bofetada – ao conclave que o chumbou. O autor via nela, com uma boa dose de ironia, «uma das suas peças mais conseguidas». Reza assim:

(Dornröschen)

«Quero contar pela segunda vez a história da Bela Adormecida.
Dorme na sua sebe espinhosa e um dia, ao fim de muitos anos, acorda. Mas não com o beijo de um príncipe feliz. Foi o cozinheiro que a despertou, ao dar ao aprendiz aquela bofetada que, com a força acumulada ao cabo de tantos anos, ressoou pelo palácio inteiro.
Uma bela moça dorme atrás da sebe espinhosa das páginas que se seguem [as de «Origem do Drama Trágico Alemão].
Que nenhum afortunado príncipe, vestindo a esplendorosa armadura da ciência, ouse aproximar-se! Porque ao beijo do noivo ela responde mordendo.
Para a despertar, o Autor reservou-se o direito de assumir o papel do chefe de cozinha. Há muito tempo que alguém devia ter dado a bofetada que há-de ecoar pelos salões da ciência.
Nessa altura, despertará também a pobre verdade aqui contida, que um dia se picou na antiquada roca de fiar, quando, sem autorização para isso, quis tecer para si própria, numa arrecadação cheia de tralha velha, uma beca professoral.
Frankfurt a. M., Julho de 1925»

(Sleeping Beauty)

A data é fictícia, a história nunca chegou a ser enviada ao júri de Frankfurt, nem a figurar como prefácio à malograda tese, que haveria, como o «Tractatus» de Wittgenstein pouco antes, de tornar-se um dos livros do século.

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