07 novembro, 2006

FRAGMENTO E TOTALIDADE

O «Prólogo epistemológico-crítico» a Origem do Drama Trágico Alemão sempre foi visto como um testemunho central do método de Walter Benjamin, e como um dos seus textos mais «herméticos». De facto, não é propriamente hermético; é antes um texto programático, chave de um método de orientação essencialista, e escrito numa linguagem que só é enredada na construção sintáctica. O pensamento tem um fundo claro e uma orientação frontal. Talvez por isso tenha chocado o júri de Frankfurt. E – ironia das ironias – a linguagem mais complexa e elaborada talvez tenha sido escolhida por Benjamin precisamente para corresponder às exigências de uma tese académica. No fundo, o que o Prólogo pretende é expor um método que integre a filosofia na análise filológica e histórica. Recusando o historicismo, o estudo superficial das fontes e um nominalismo esquematizante e oco, dominantes na história da arte e na filologia do seu tempo, opera uma recuperação do tão vilipendiado estilo barroco, reconduzindo-o aos seus próprios pressupostos, em vez de o ler, negativamente, à luz dos modelos neoclássicos todo-poderosos, ainda no século XIX, ou de uma metafísica totalmente desmaterializada, como era a do Romantismo, para lá das suas afinidades, mais aparentes que reais, com a mundividência e a «vontade de estilo» barrocas.



Sem talvez se aperceber ainda das consequências que isso iria ter na sua obra posterior, o que Benjamin faz já aqui é qualquer coisa como uma quadratura do círculo: encontrar o corpo da ideia, materializar a metafísica. A sua proposta é simples: para chegar ao âmago da arte barroca é preciso deixar para trás a visão historicista e os preconceitos ideológico-estéticos que tinham deixado o Barroco num limbo cinzento, para não dizer num vácuo da história da arte, e lançar-se decididamente pela via de uma «crítica filosófica» cujo fundamento é o de uma doutrina das ideias de matriz platónica e de inspiração goethiana.
Um dos momentos em que esse método se torna mais evidente é aquele em que o Prólogo se ocupa da relação entre fragmento e totalidade, para destacar a importância da coisa, do objecto concreto, do adereço cénico, das ruínas espalhadas pelo palco, para a compreensão da ideia do drama trágico barroco – porque, como se diz, o drama trágico é uma «ideia». A certa altura, lemos:

Podemos ver já aqui in nuce a estrutura da alegoria barroca e moderna, e a sua demarcação em relação ao símbolo clássico-romântico. A importância do fragmento para a interpretação (alegórica) vem-lhe da sua radical materialidade (e também da sua disponibilidade para significar, enigmaticamente). Essa condição material e sensível não é absoluta, mas – como em Goethe, quando fala da relação entre fenómeno e ideia – está aberta a uma elevação, potenciação ou «salvação». Na ideia, e não no conceito, que não serve à representação estética. A ideia é a morada do conteúdo de verdade da obra, tal como o fragmento concreto sustenta o seu conteúdo material objectivo. O conceito apaga o fulgor do fenómeno; a ideia, lugar da «essência», mantém-no em suspensão, pairante («a ideia é uma mónada», i.e. uma circunferência perfurada por vários raios que a abrem para o exterior, para as coisas). Benjamin: «A relação entre a elaboração micrológica e a escala do todo, de um ponto de vista plástico e mental, demonstra que o conteúdo de verdade se deixa apreender apenas através da mais exacta descida ao nível dos pormenores de um conteúdo material...»
À «verdade» não se chega por um qualquer esforço conceptual abstracto (a verdade é «sem intenção» – e, podemos acrescentar, sem lugar de destino fixo), mas por uma espécie de destilação do concreto, feita pela análise «micrológica» que propicia intuições de uma «escala do todo»:
«A verdade é um ser inintencional, formado por ideias [...] A estrutura da verdade aproxima-se do modo de ser simples das coisas... [...] A verdade é a morte da intenção. É isto que parece querer dizer a história da imagem velada de Saïs [Que imagem é esta? É a daquela deusa cuja contemplação significaria a morte, isto é, a percepção da última e fatídica verdade, da descida ao poço do conhecimento absoluto de nós mesmos. A sua história é contada, entre outros, por Novalis em Os Discípulos de Saïs. Numa das anotações a esta parábola, Novalis escreve: «Houve um que conseguiu... Levantou o véu da deusa de Saïs... E que viu ele? Milagre dos milagres: viu-se a si próprio.» Pode ler uma versão espanhola aqui] »
A única limitação do método de Benjamin talvez seja a do seu incondicional e unilateral platonismo – que, no entanto, haveria de ser, a partir de agora, temperado por outras inspirações e outros caminhos: o materialismo, o judaísmo, a teologia negativa descoberta na arte moderna e na história.

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