08 novembro, 2006

AS CRÓNICAS QUE NÃO ESCREVI (I)

Hoje interrompo o fio de comentários escritos a lápis sobre Walter Benjamin. Este não me foge, vou ter de conviver ainda muito tempo com ele (e com outro grande nome, hoje esquecido, da escrita e do pensamento do século passado, Robert Musil; e tantos outros, do passado e de hoje, com quem «converso» diariamente).
Muita ideia vai ficando pelo caminho, muita escrita adiada ou enterrada em anotações que nunca geram texto. Durante alguns anos, quando já tinha uma página regular no defunto suplemento do Público então chamado «Leituras», ia anotando em fichas, margens de jornais, post its, temas possíveis para futuras crónicas.

Um destes dias lembrei-me de voltar a esses papéis, para constatar que grande parte desses temas são hoje inviáveis, anacrónicos ou desinteressantes. Foi quase tudo parar ao cesto dos papéis. Mas algumas notas salvaram-se, e são esses salvados que vou semeando por aqui, até os esgotar. Pode ser que alguns deles acabem ainda por dar crónica a sério...


A roda de leitura


Agostino Ramelli: projecto para uma roda de leitura. Paris 1588

Por vezes sonho o sonho do fim da avalancha de livros que semana a semana me submerge. Sonho com o dia em que pudesse ficar apenas com uma ou duas dúzias de livros, não para me retirar para a conhecida ilha deserta, mas para poder dizer, como o Poeta (aquele que assim trato é Hölderlin): «uma vez / como os deuses terei vivido. E mais não é preciso».
E afinal, ele aqui está, esse leitor feliz e intenso, não o leitor interactivo de hoje, mas o iterativo, moderadamente assediado pela letra impressa na roda de leitura... O eterno retorno dos livros que vale a pena ler. A biblioteca giratória e eternamente igual a si mesma. O panteão dos melhores, com a garantia de que um livro seria lido, relido, absorvido e pensado até à exaustão (coisa que raramente se faz). Exaustão do seu manancial de beleza e pensamento, exaustão de mente e corpo de um leitor-oleiro que passa o tempo a carregar no pedal que faz avançar a roda...


Males, maleitas, defeitos e mau génio... dos génios

No melhor pano cai a nódoa, ou nem tudo o que luz é ouro, ou não há bela sem senão... Assim:
Kant era, como tantos outros, impotente.
Rousseau: um misantropo e misógino que quis libertar as massas pelo Contrato Social e o género humano pelo «regresso à natureza», mas tinha uma péssima relação com as mulheres. Um dia, num bordel de Veneza, Casanova dá-lhe um conselho: «Zanetto, lascia le donne e studia la matematica!»
Goethe seria, diz Thomas Mann num ensaio sobre o olímpico, um alcoólico pelos padrões actuais.
Schiller sentia-se inspirado para escrever com o cheiro de maçãs podres em cima da mesa.
Balzac era um autêntico viciado em café.





Nietzsche era extremamente míope, e comprou... uma máquina de escrever, das primeiras que apareceram.



Igualmente pitosga era Walter Benjamin. Daí o seu estilo, a sua caligrafia e os seus temas, miniaturais, micrológicos (mas a este a miopia salvou-o de entrar na Primeira Guerra Mundial).

Musil era insuportavelmente irascível e autoconvencido.
Heidegger era nazi.
Pessoa era um «mental pairante» (assim o vê Maria Gabriela Llansol), associal, neurótico, alcoólico... e o mais que se sabe.


Habituações

Heinrich Mann (irmão mais velho de Thomas, e ovelha negra socialista da família) escreve em 1928, sobre a relação do cinema com as massas: «É possível habituar todas as grandes massas ao kitsch. E depois é fácil afirmar que elas não entendem nem querem mais nada.»

É assim com as TVs, desde há algum tempo, de facto desde sempre. Dizer que as massas querem ser divertidas e por isso entender que o que as massas querem é lixo, é fácil, e é um sofisma perverso cujas consequências estão hoje escancaradamente à vista.


O cinema dos começos parece ter já fornecido a receita e a lição: estamos a regressar (mas no «fim da história» da arte das imagens) à «animalidade», ao prazer bruto da imagem que alimentou os primeiros anos. O que é diferente são as razões e as circunstâncias que explicam a «animalidade». Ao princípio, era a «principialidade das imagens» (Eduardo Prado Coelho) em movimento; hoje perdeu-se essa força original, e as massas mergulham dia após dia, noite após noite, no ruído indiferenciado e indiferente da imagem pela imagem. Perderam a ligação com a letra, ela própria transformada em imagem. Se já eram iletradas, ficaram definitivamente analfabetas.


Amor e trabalho...

... os grandes temas da literatura da era burguesa, desapareceram hoje da literatura. O amor transformou-se em (im)puro sexo, o trabalho ausentou-se para parte incerta.
Na literatura light, de aviário, ou se está em férias, ou em depressão adquirida (nesta onda literária do nosso tempo nada há de inato, estamos perante a literatura do R.U.T. = realismo urbano total), ou se vai para a cama com alguém ou se anda nas compras com a amiga... Às vezes, atravessa-a uma suave euforia, outras uma ironia aguada, outras ainda uma melancolia à superfície (que é coisa que a doença «atrabiliária», que é como quem diz da bílis negra, se apanhada a sério também não conhece). Nada que um animado lançamento no Lux não faça esquecer, apelando à escrita do próximo romance – também ele suavemente eufórico, aguadamente irónico, superficialmente melancólico...


Juventude podre

No metro, um homenzinho anódino pisa o rapaz guedelhudo e simpático, que responde com um sorriso de complacência. Comentário de outro homenzinho anódino, gordo, porco e feio, para a mulher: «Juventude podre!»

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