08 novembro, 2006

AS CONSPIRAÇÕES DO SILÊNCIO

Segue a escrita dos dias. O Diário para WB espera ainda. Volto lá amanhã ou depois.
Olho em volta e vejo e sinto na pele, dia a dia, como este país que bem podia ser uma região de Espanha vai ficando medíocre, e esta classe média – a dita cultural, a política, a financeira, a mediática – ignorante e impante, endinheirada e pindérica, acomodada e autocomplacente. E despudorada. Também eu decidi, por uma vez, perder o nosso proverbial pudor. Falar pro domo mea, uma vez que seja. Fazer de conta que me levo a sério, como tantos que há por aí na nossa feirazinha de vaidades, e que, como dizia o meu amigo Pedro Tamen há pouco tempo numa entrevista, nem têm razão para isso, mas pavoneiam-se. É de ficar banzado, dizia o Pedro, e com razão...



Eu ainda me pergunto se valerá a pena – se será ético – falar em causa própria. Mas depois penso: e não falamos nós sempre em causa própria também quando falamos (a forma do verbo não engana!) das coisas de outros? E não diz a rapariga do anúncio «Se eu não gostar de mim, quem é que vai gostar?» E concluo: é ético, com certeza, quando o caso não é único e singular, mas sintoma! Sintoma, entre tantos que Alberto Pimenta foi desfiando, em passeio, num impagável e memorável programa de televisão («O Portugal de A. P.»), da pequenez envergonhada, da mediocridade inconsciente, da mesquinhez tacanha, do revanchismo impotente de uma terrinha que pensa que tem algum papel a desempenhar no mundo, quando na verdade tem apenas algumas cabeças melhores que, ou se estrangeiraram, ou fazem a sua vida cá dentro contra o mainstream, por vezes com alguma indiferença.
E agora o meu caso: parece haver, desde há alguns anos (mais exactamente desde 2000), uma conspiração do silêncio em volta da versão portuguesa, a primeira depois da única que tínhamos (já com 126 anos!) do Fausto de Goethe, completo nos seus doze mil cento e onze versos, nem mais num nem menos um. O autor dessa versão, que lhe valeu pela segunda vez o Grande Prémio de Tradução – e pelos vistos muitas invejas declaradas ou disfarçadas –, por acaso, ou não, sou eu. A edição, que saiu no Círculo de Leitores e na Relógio d'Água, continua aí, na versão desta última editora.


Goethe por Andy Warhol


Johann Wolfgang Goethe, Fausto (Relógio d'Água Editores, 1999)

Toda a gente de boa fé e algum discernimento literário e linguístico reconhecerá que a versão anterior, e única, desta «obra da literatura universal», a do diplomata Agostinho de Ornellas (de 1867-1873, revista em 1953 por Paulo Quintela, que, contra alguma ignorância que por vezes por aí grassa sobre esta matéria, nunca fez nenhuma tradução do Fausto) é o que se poderia chamar uma boa versão datada, apesar de irregular e estilisticamente empolada. Para a época, incomparavelmente superior à versão parcial de António Feliciano de Castilho – macaqueamento luso da Primeira Parte e apenas dela – e bem mais honesta.


António Feliciano de Castilho

O meu grande espanto vem de, apesar disso, ser possível testemunhar, desde há sete anos, que esta minha edição, única também devido às belíssimas pinturas de Ilda David' que a acompanham, é sistematicamente silenciada por certos círculos e pessoas que deveriam ser mais responsáveis e menos ignorantes (ou mal-intencionadas).


Pintura de Ilda David' para o Fausto

É claro que este silenciamento pelos medíocres é mais um sintoma daquele complexo de inferioridade que desde sempre atacou os impotentes entre nós (que são mais do que se julga). Tal como a incapacidade de debate frontal de ideias. Como a subserviência. Como a boçalidade que arreganha a tacha. Como o meio-sorriso cobardolas. Como o compadrio provinciano. Como...: vejam-se Alberto Pimenta, A Arte de Ser Português, Fernando Pessoa, «O provincianismo português», Eça e as suas figuras, o Bordalo, claro, ou o «Gato Fedorento» de hoje, etc., etc..



Os «Lopes da Silva» deste país protegem-se, encobrem-se, elogiam mutuamente a mediocridade comum (como já aconteceu no século XIX com os amigos do senhor Visconde de Castilho em relação à sua caricatura do Fausto, justamente desancada por quem, nesse século XIX, melhor o podia fazer). Ficam contentinhos e riem-se. Não percebem, ou fazem que não percebem, que os que têm caminho próprio e porte íntegro não lhes ligam, e continuam a fazer caminho próprio que não se encontra com o deles.
Tudo isto, e a decisão de finalmente abrir a boca para falar em causa própria – coisa que, por princípio, não faço – tem uma causa próxima. Olho para uns Apuntes de historia de la traducción portuguesa (o que é isto de «tradução portuguesa»? que eu saiba, só existe tradução em Portugal ou para o português!), saídos em Espanha, e uma vez mais verifico que a única versão completa do Fausto de Goethe que hoje se pode ler continua a ser ignorantemente ignorada. Remetida ao silêncio. Por quem devia conhecê-la, por quem escreve sobre a chamada «Questão do Fausto» e silencia a versão actual ao enumerar as «traduções portuguesas» da obra de Goethe. E insere a «tradução» francesa de Nerval (uma imitação da Primeira Parte) na entrada que se refere ao volume VI das minhas «Obras Escolhidas» de Goethe, como se eu tivesse traduzido via francês!
Sei que não estou só. Outros, no passado e no presente, foram e são apanhados nestas conspirações surdas. Passa-se o mesmo, hoje, com as novas traduções do teatro de Brecht, de que já temos três volumes, e que o mesmo ilustre estudioso da «tradução portuguesa» despudoradamente ignora...


Brecht, Teatro Completo. Nova edição, Livros Cotovia

E não se pode exterminá-los, como perguntaria o cómico Karl Valentin, brilhantemente levado à cena na Cornucópia dos tempos da parceria Cintra/Silva Melo, em fabulosa versão de palco de Luísa Neto Jorge??

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