17 novembro, 2006
MENOS É MAIS?
ROTHKO | LLANSOL | CELAN
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Um dia, depois de ter lido muito a poesia de Paul Celan (podem ouvir-se alguns poemas, na sua própria voz, aqui) e a prosa de Maria Gabriela Llansol, e de ter liquefeito o olhar nas telas bi- ou tricromáticas de Mark Rothko e aberto o corpo à música de vidro de Morton Feldman, pensei que podia aproximá-los, com a intenção de mostrar, na senda dos místicos e de Kandinsky, que O ABSTRACTO É O ABSOLUTO É O CONCRETO e que a relação do pathos vital com as linguagens abstractas dá como resultado um REALISMO PURO (como aquele que Adorno via na obra de Beckett). E fiz uma montagem, para ser vista tendo como pano de fundo a música de Feldman, de preferência a peça «Rothko Chapel» (mas pode ser outra peça minimal de Feldman, como a que se pode ouvir aqui: Morton Feldman, The King of Denmark).
À primeira vista, estes três — Celan, Llansol e Rothko – representam três universos distintos, aparentemente inconciliáveis. Celan é um poeta trágico, com uma visão histórica (o holocausto) e existencial do mundo (que o leva ao suicídio, como a Mark Rothko): o mundo não existe, existe um mundo, o do poeta e da sua fixação poética.
Maria Gabriela Llansol tem uma visão cósmica e jubilosa do mundo: o mundo é a multiplicidade dos mundos que se podem abrir a cada um.
Rothko (e Feldman) parecem fazer o percurso e chegar à síntese entre um e outro destes dois modos de ver o mundo.
A montagem que se segue, e que irei incluir aqui nos próximos dias nas suas três partes, com títulos derivados do Zen – TAO, ou o Caminho, SATORI, ou a Iluminação, MU, ou o Vazio – pretende mostrar a possibilidade do encontro entre estes três criadores diversos e afins (os fragmentos de texto não identificados provêm todos de poemas de Paul Celan).
Como «funcionam» Rothko na pintura e Llansol e Celan no texto? A resposta, que se aplica a todos, pode estar nesta passagem de O Jogo da Liberdade da Alma, de Llansol edição da Relógio d'Água, 2003):
Há uma intimidade entre a memória do olhar e a memória da consciência____________ quanto mais intimidade uma coisa ou obra tem, quanto mais a imagem que decai se lembra da explosão de luz que deu à consciência
tanto mais age e menos perece e sofre.
É por isso, como se diz num documentário sobre Rothko, a propósito dos grandes e sombrios murais feitos para o edifício Seagram em Nova Iorque: «... podíamos sentar-nos horas em frente deles e... ficar tristes.»
Esta tristeza é uma forma possível de felicidade (falo mais desta pintura, e de mais alguma, em alguns dos textos incluídos no meu próximo livro, a sair brevemente na Assírio & Alvim: A Escala do Meu Mundo).
No percurso destes três, passa-se de formas diversas de um figurativismo a tender para o surreal (que depressa superam) para a apreensão do invisível e para formas de uma certa neutralidade: Llansol na progressão da «geografia de rebeldes» da História para uma «ordem figural do quotidiano», Rothko na passagem de fases cromáticas intensas para o negro (o «Mu/Vazio» do Zen), Celan no evoluir de uma poesia de assumidas influências surrealistas para uma poesia branca, dita «hermética», para uma quase queda no silêncio nos últimos livros. Todos caminham para para formas de música (nua) e de silêncio (loquaz). De Rothko se disse que é um «criador de superfícies melódicas» (Thomas Messer): o que vibra numa tela sua é da ordem da imaterialidade da música. Morton Feldman (que haveria de escrever uma peça intitulada Rothko Chapel, em homenagem às grandes telas quase negras do pintor na capela a que seria dado o seu nome) compõe, por sua vez, «telas musicais».
Rothko Chapel: Obelisco no exterior
Rothko Chapel: visão estroboscópica
A composição é feita de pinceladas monocromáticas e puras, minimais – ouve-se cada nota e cada instrumento separadamente –, sem cromatismo musical, pelo menos de tipo wagneriano, mas talvez com cromatismo dodecafónico («igualdade absoluta dos doze graus da escala, tons ou meios-tons»). Maria Gabriela Llansol escreve em tensão com a música (veja-se o arranque de O Jogo da Liberdade da Alma, ou, antes, a relação com Bach em O Ensaio de Música), e capta para o texto, através da intuição da imagem – que pode dançar, cantar ou dar-se a ver – a essência musical do mundo.
Tudo isto tem que ver com um caminho para a pobreza e para a interioridade em todos estes criadores. Carlos Couto S. C. escreve: «A pintura de Rothko excede-se na privação e quase se anula na mítica figura do Excesso, ou esvazia-se como pura Presença» (intensidade). Num quadro de Rothko, na música de Feldman, em Llansol e Celan convergem «serenidade e violência», silêncio e repetição desesperantes (em Llansol nem tanto: os acordes dominantes são mais da ordem de uma transparência jubilosa). Entre uma «tópica da Paixão [os vermelhos] e a luz negra da origem», o silêncio de Rothko (o traço ou a imagem nua de Llansol) é um «pensar mais» (leia-se o grande exemplo disto posto em linguagem, o último livro de Llansol, Amigo e Amiga. Curso de Silêncio de 2004, da Assírio & Alvim).
Em tudo isto há alguma herança dos místicos (ocidentais: Eckhart, João da Cruz, e sufis: Ibn Arabi, All Halladj) e do abstraccionismo espiritualista das vanguardas, em especial de Kandinsky (em O Espiritual na Arte, de 1908). Interioridade e abstracção são uma espécie de baixo contínuo de algumas vanguardas históricas, o que resulta facilmente numa certa musicalização das obras de pintura ou literatura: o ser material da obra implica um «olvido do mundo» (Nietzsche) e o ritmo, a que Kandinsky chama «som interior» (innerer Klang), torna-se uma categoria-chave. Também Kandinsky bebe nos místicos, em Eckhart e no seu pensamento analógico, estabelecendo pontes entre microcosmo (obra), macrocosmo (universo), fenómenos (mundo sensível) e ideia-arquétipo (formas abstractas). Pela mesma altura andava Wittgenstein às voltas com o Tratado Lógico-Filosófico (1918-1921), tentando captar a essência do místico e definir os limites da linguagem: «o místico não é o como do mundo, é o ele ser», e «a visão mística do mundo é a sua visão como totalidade delimitada» (Tract., 6.45).
Rothko, Llansol e Celan realizam uma simbiose, por vezes difícil de seguir e apreender, entre o «orgânico» e o abstracto. Kandinsky havia já visto que a tendência da arte moderna era para uma aproximação, e mesmo identificação, de realismo e abstracção, para uma arte da objectivação e da construção escondida: uma aparente ausência externa de articulação entre formas/partes, mas uma presença interior que se impõe.
Daqui podemos concluir: o ABSTRACTO é o ABSOLUTO é o CONCRETO (é este o sentido da obra totalmente «objectiva» de um modernista radical holandês como Theo van Doesburg). Ou, noutros termos: o minimal gera excesso (pela intensidade e redundância), o neutro (o negro) produz o intenso (pela presença obsessiva do Vazio=Pleno).
O que se seguirá nos próximos dias é a tentativa de visualizar e dizer... o que está dito atrás. As imagens e os textos falarão por si.
[continua...]
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