18 novembro, 2006


SOTTOMAYOR CARDIA

Vi hoje nos jornais a notícia da morte de Mário Sottomayor Cardia, e subitamente abrem-se na minha memória clareiras várias, que começam nas greves académicas de 1961-62, quando Cardia era – com Jorge Sampaio, Medeiros Ferreira e outros – dirigente estudantil, e eu começava também a ganhar consciência política. Passam por mim imagens dos tempos de Cardia ministro, num ministério difícil e muito contestado, o da Educação, dos decretos que promulgou para pôr alguma ordem no caldeirão de energias a transbordar por todos os lados que eram as Universidades do pós-25 de Abril. Em 1977, por altura da visita a Portugal de um poeta alemão, herdeiro do Surrealismo e empenhado em lutas bem menos vibrantes e inflamadas dos anos setenta alemães, com a chamada Grande Coligação, uma aliança contra natura entre sociais-democratas e conservadores, e os decretos contra os chamados «radicais», levei à Faculdade de Letras de Lisboa esse poeta, Wolfgang Bächler (que se encontrou também com Eugénio de Andraade no Porto e escreveu um poema intitulado «Porto, cidade velha»), que aí leu um dos seus poemas contra o decreto anti-radical alemão. Num golpe de «equivalência dinâmica», como dizem os teóricos a propósito das traduções que ajustam um texto traduzido à situação da língua e da cultura de chegada, a minha tradução transpunha o poema do espaço alemão para a sociedade e a universidade portuguesas de Cardia, e resultava nisto (o original, a tradução e a justificação do golpe encontram-se na p. 40 do meu livro O Poço de Babel, de 2002):

Decreto contra as enguias

Completem-se os decretos à Cardia
com um decreto mais duro contra a enguia!
As malhas têm de ser apertadas.
As enguias têm de ser escorraçadas.

Nas nossas águas terão de ser
pescadas e fervidas,
interrogadas sobre lume brando,
estufadas ou mesmo cozidas,
postas em vinha d'alhos, em pedaços,
e mastigadas para uma boa digestão.
Só então haverá paz
no lusitano chão.


Mais tarde, e durante anos, voltaria a encontrar-me e a falar ocasionalmente com Sottomayor Cardia na Universidade Nova, onde ambos éramos professores. Sempre afável, sempre polido, já a ressentir-se da doença que haveria de o vitimar. Deixo aqui esta última homenagem a um dos muitos, mais ou menos conhecidos ou anónimos, que se empenharam na lenta e difícil transformação deste país num espaço de cidadania, antes e depois de Abril. Passaram mais de trinta anos, e ainda não aprendemos.

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