DO ESPLENDOR
Chegam no próximo dia 28 às livrarias os primeiros dois volumes de uma obra única neste país sem tradição bíblica, em edição da Assírio & Alvim, com esplendorosas pinturas de Ilda David': a chamada «Bíblia de Almeida».
Escrevi sobre este acontecimento no «Mil Folhas» do PÚBLICO de hoje, mas deixo aqui o texto completo da apresentação que fiz no CCB em 10 de Outubro.
Desde que S. Jerónimo meteu ombros à empresa de verter os textos da Escritura para o latim da Vulgata (na sequência da tradução grega anterior, chamada «dos Setenta»), as traduções da Bíblia são sem sombra de dúvida o melhor exemplo da força transformadora do acto de traduzir.
Caravaggio, S. Jerónimo
José Tolentino Mendonça di-lo de outro modo na apresentação da Bíblia portuguesa de João Ferreira de Almeida: «uma vez aberto o livro dos livros, o mundo deixou de ser o mesmo». O mundo e, acrescento, os próprios originais do Livro, hebraicos, gregos e aramaicos.
Bíblia Ilustrada. 1º Volume: Génesis – Levítico. 2º Volume: Números - Juízes. Tradução de João Ferreira Annes d'Almeida. Apresentação e fixação do texto: José Tolentino Mendonça. Ilustrações: © Ilda David'. Lisboa, Assírio & Alvim / Círculo de Leitores, 2006
Depois da Vulgata, que atravessa toda a Idade Média pairando sobre a cristandade das alturas do seu latim, para ser definitivamente canonizada para o mundo católico pelo Concílio de Trento (1546), mas sem produzir grandes «efeitos de Bíblia» (como diz Henri Meschonnic) nesse mundo; depois da primeira versão inglesa (1382), estigmatizada com o ferro da heresia do Lollardismo de Wycliffe (luterano antes de Lutero, ainda no século XIV, e que inaugura a grande tradição inglesa do «tradutor invisível» e da fluência vernácula da linguagem na tradução); depois de William Tyndale, autor de uma «version for the layman» (1525) refutada por Thomas More, e queimado em 1536; depois do compromisso conciliatório da chamada «Versão autorizada» do anglicanismo (a «King James Version», de 1611);
Martinho Lutero
depois, é claro, da tradução de Lutero (feita entre 1521 e 1534) para uma língua que, de facto, não existia, um «alemão literário» forjado a partir dos dialectos, mas deixando transparecer toda a força da oralidade e do vernáculo (a linguagem «da mãe na cozinha, das crianças na rua e do homem simples no mercado», linguagem viva dirigida «contra os asnos e os fanáticos da letra», escreve Lutero na célebre Epístola sobre a tradução); depois, enfim, dessa «coisa curiosa» que é, para Fernando Pessoa, esta «Bíblia em português feita para protestantes» (a primeira completa, já tardia – 1681, o Novo Testamento, e 1753 a edição em dois volumes – e com marcas evidentes da matriz luterana), a de João Ferreira d'Almeida, ministro protestante na Batávia holandesa (hoje Jacarta) – depois destes e de tantos outros marcos nesta história de naturalizações, domesticações, instrumentalizações e metamorfoses poéticas, os textos bíblicos nunca mais foram o que terão sido nas origens. Mas não sabemos exactamente o que terão sido nas origens. Sabemos, isso sim, que as suas traduções imprimirão ao sopro e às palavras que os atravessam e os sustentam – multifacetados, aliás, num registo impressionante que vai da oralidade ritmada, traço decisivo em todo o Antigo Testamento, à expressão poética, da sentença ao provérbio, do catálogo à descrição, do preceito à fórmula mágica, da parábola à profecia –, sabemos que as traduções desta Babel de linguagens darão ao texto do Livro múltiplos rostos e lhe atribuirão os mais variados papéis. Abrir o Livro à tradução significou abrir mil portas, desimpedir ou atravancar mil caminhos no longo caminho da cultura ocidental judaico-greco-romano-cristã, nas suas vertentes religiosa, linguística, literária, também político-ideológica, nos seus meandros mais propriamente culturais e em algumas das suas grandes vicissitudes históricas e das suas maiores contradições e provações. Alguns desses caminhos foram revolucionários, mesmo incendiários, outros haveriam de ter uma influência ímpar na formação ou afirmação de uma língua unificada e literária, em particular no espaço inglês e no alemão.
Levítico XXI
Mas é também o caso desta Bíblia de Almeida, que ocupa um lugar sem paralelo na modesta tradição portuguesa de tradução do texto sagrado. No que à sua qualidade estética diz respeito, não seria ousadia dizer que ela assume – ressalvadas as distâncias devidas ao estádio da língua e ao hiato entre os padrões literários classicizantes do século XVII e os do nosso tempo – um carácter próximo do de alguns ensaios parciais realizados por poetas como Herberto Helder, Fiama ou José Tolentino Mendonça sobre textos do Antigo Testamento, com destaque para o Cântico Maior (ou até por uma judia alemã como Else Lasker-Schüler nas recriações livres de figuras bíblicas nas suas Baladas Hebraicas, editadas pela Assírio & Alvim em 2002).
O Cântico Maior na versão de Fiama e
as Baladas Hebraicas de Else Lasker-Schüler,
versão de J. B.
O que os move a todos é essencialmente a vibração rítmica e a força das imagens, que suscitam caminhos de tradução também vibráteis ou quase erotizantes, em que a palavra é literalmente posta a arder, com resultados poeticamente belíssimos, num trabalho que, como acentua José Tolentino Mendonça para a sua versão do Cântico dos Cânticos (Livros Cotovia, 1997), busca não só «o sentido escondido das palavras da Escritura, mas também o do espaço em branco que existe entre elas».
O Cântico dos Cânticos
na versão de José Tolentino Mendonça
Traduz-se então – como também exige esse leitor-tradutor radical do Antigo Testamento que é Henri Meschonnic – pela escuta: escuta dos acentos do hebraico, traduzidos em vários graus dos brancos, escuta dos paralelismos e repetições que modulam o ritmo, escuta do sopro da oralidade. Neutralizam-se as oposições ocidentais entre prosa e poesia, letra e sentido, e caminha-se por aquela via que Walter Benjamin, no tão citado ensaio sobre «A tarefa do tradutor», pedia à tradução (em especial dos textos sagrados): uma versão «interlinear» ao mesmo tempo literal e livre, em que se conjuguem «a língua e a revelação».
É óbvio que a maior parte das traduções correntes da Bíblia, feitas a partir da Vulgata e ajustadas ao longo de séculos a necessidades e interesses confessionais ou pedagógicos, não corresponde a nenhuma destas exigências: aclaram o que, por natureza e pela acção da distância temporal, é obscuro, tendem a colmatar, sem brechas, os brancos da respiração do hebraico, a «naturalizar» e a «domesticar» o que é estranho e alheio. A isto foge a Bíblia de João Ferreira d'Almeida, no texto agora fixado por J. Tolentino Mendonça (que diverge do das versões mais correntes, ditas «revista e corrigida» ou «revista e actualizada»).
Levítico I
Não sendo uma tradução com pretensões meramente poéticas – longe disso, o seu autor é um ministro protestante que tem atrás de si um século e meio de debate teológico (e ideológico) em torno da tradução da Bíblia –, é uma versão na qual corre a seiva viva do vocábulo justo e se sente uma elegância literária que deixa transparecer, para além do gosto classi-cizante apurado da língua, a lição de Lutero, nomeadamente nas três regras que este avança para a tradução da Bíblia, num pequeno opúsculo intitulado «Sumários sobre os Salmos e as causas da tradução» (1532), contemporâneo do seu próprio trabalho de trazer a casa o Antigo Testamento:
1. Respeita a natureza divina da Palavra das Escrituras (onde, como já havia dito S. Jerónimo na Carta a Pamáquio, «até a estrutura da frase é mistério»);
2. Usa a língua viva, seguindo a «natureza da nossa língua-mãe»;
3. Dá atenção à gramática (aqui, no sentido antigo, e ainda Renascentista de: o estilo e a forma da frase).
Dois exemplos de livros que integram este primeiro volume (Génesis e Êxodo) bastarão para evidenciar algumas das diferenças mais assinaláveis do texto da Bíblia de Almeida em relação a versões mais correntes (e, uma vez mais, a sua filiação na de Lutero). Escolho os primeiros versículos do Génesis (Gen I, 1-7) e a passagem da sarça e da definição do nome de Deus (Ex III, 13-14).
Génesis I
Bíblia Sagrada
do Centro Bíblico Católico,
segundo a versão dos Monges de Maredsous
1. No princípio, Deus criou os céus e a terra.
2. A terra estava informe e vazia: as trevas cobriam o abismo e o Espírito de Deus pairava sobre as águas.
3. Deus disse: «Faça-se a luz!» E a luz foi feita.
4. Deus viu que a luz era boa, e separou a luz das trevas.
5. Deus chamou à luz DIA, e às trevas NOITE. Sobreveio a tarde e depois a manhã: foi o primeiro dia.
6. Deus disse: «Faça-se um firmamento entre as águas, e separe ele umas das outras.»
7. Deus fez o firmamento e separou as águas que estão debaixo do firmamento daquelas que estão por cima. [8] E assim se fez.
A Bíblia
de João Ferreira de Almeida.
fixação do texto por JoséTolentino Mendonça
1. No princípio criou Deus o céu e a terra.
2. E a terra estava vasta e vazia, e havia trevas sobre a face do abismo: e o Espírito de Deus se movia sobre a face das águas.
3. E disse Deus: Haja luz. E houve luz.
4. E viu Deus que a luz era boa: e fez Deus separação entre a luz, e entre as trevas.
5. E Deus chamou a luz dia, e as trevas chamou noite: e foi a tarde e a manhã, o dia primeiro.
6. E disse Deus: Haja um estendimento no meio das águas, e faça separação entre águas e águas.
7. E fez Deus um estendimento, e fez separação entre as águas que estão debaixo do estendimento, e entre as águas que estão sobre o estendimento: e foi assim.
As diferenças da Bíblia de Almeida, evidentes a uma simples leitura, são essencialmente as seguintes:
- A diferença entre o «ser assim» e o «fazer-se», acentuando o mistério ontológico da origem como origo (fonte e fundamento), mistério impessoal, despersonalizando o acto da criação e o Deus-demiurgo: o que aqui age é mais o sopro (Voz, ruah) do que a mão. Talvez por isso, a primeira imagem de Ilda David' para o Génesis é uma nuvem pairando sobre o negrume do caos original (só quando nos aproximamos vemos que há uma pequena figura humana dentro dela), enquanto a xilogravura correspondente da Bíblia de Lutero é dominada pela figura antropomorfizada de Deus-Pai e por uma representação circular do mundo, uma quase-mandala.
- Na mesma linha, a diferença entre o «Faça-se luz» (Fiat lux) e o «Haja luz» (Es werde Licht, em Lutero): a Criação é um acontecer sucessivo, um espaço-tempo impessoal originante, e não um fazer personalizado.
- A diferença entre a ritmização pela repetição e o paralelismo (restos da oralidade), em vez do alisamento conceptual da frase; entre a substancialização («fez a sepa-ração») e a abstractização (uso directo do verbo: «[e Deus] separou»).
- A diferença na ordem sintáctica: a ênfase no acto e não no actor/criador («No prin-cípio criou Deus…» / «No princípio Deus criou…»; «o dia primeiro» / «o primeiro dia»).
- A diferença na escolha vocabular («o seco» / «o árido»; «estendimento» / «firma-mento»), que transparece nos versículos 6-7, que contêm também, in nuce, todas as outras.
Êxodo I
O segundo exemplo é porventura ainda mais esclarecedor da orientação, neste caso mais teológica do que estilística, seguida por João Ferreira de Almeida, aqui claramente na esteira do texto hebraico e da sua tradução por Lutero (por vezes diametralmente opostos à da Vulgata), mas indo ainda mais longe do que o reformador alemão. Eis o texto de Ex III, 13-14:
Êxodo III
Bíblia corrente:
«13. Moisés disse a Deus: 'Quando eu for para junto dos Israelitas e lhes disser que o Deus de seus pais me enviou a eles, que lhes responderei se me perguntarem qual é o seu nome?'
14. Deus respondeu a Moisés: 'EU SOU AQUELE QUE SOU' [Vulgata: Ego sum qui sum] E ajuntou: 'Eis como responderás aos Israelitas: (Aquele que se chama) EU SOU envia-me junto de vós.'»
Bíblia de Almeida:
«13. Então disse Moisés a Deus: Eis que vindo eu aos filhos de Israel, e dizendo-lhes: o Deus de vossos pais me enviou a vós; e eles me disserem: qual é seu nome? Que lhes direi?
14. E disse Deus a Moisés: Serei o que Serei [Lutero: Ich werde sein, der ich sein werde]. Mais disse: assim dirás aos filhos de Israel: Serei me enviou a vós.»
(Sublinhados meus).
Aqui, a diferença está, não apenas no nome, mas também na substância. No original, aliás, o nome é substância e a substância é nome que não é linguagem – por isso é impronunciável, e sendo impronunciável não é do aqui e agora, mas talvez apenas de um futuro sempre postergado. Lutero usa o futuro que indica uma presença irrealizada, ainda na forma pessoal; Meschonnic propõe, em francês: Je serai____ que je serai, substituindo pelo branco o pronome de ligação; Almeida encontra uma solução que parece ideal, pela ambiguidade introduzida pelo «o», que pode ser impessoal/pessoal (Serei aquilo/ aquele que serei).
A grande diferença é entre a tradução pelo presente personalizado da Vulgata e das Bíblias católicas correntes (Eu sou aquele) e o futuro impessoal (em Almeida mais impessoal do que em Lutero!) que marca o diferimento (infinito?) de Deus e a sua relação com o messianismo. O nome de Deus (hebraico) não é, afinal, um nome, mas um verbo (Serei) – uma promessa irrealizada.
Irrealizada estava também, há muito tempo, a tarefa de fazer sair da sombra um nome que, apesar deste seu texto circular em milhões de exemplares, era um desconhecido, como lembra José Tolentino Mendonça na apresentação desta edição da Bíblia protestante de Ferreira d'Almeida, que dá ao nome de quem a escreveu, finalmente, a visibilidade merecida. E não apenas ao seu nome, mas ao seu texto, renovado e acrescentado. Acrescentado de forma sublime pelas pinturas de Ilda David' que acompanharão todos os oito volumes da edição.
O Livro dos livros, traduzido em linguagem e traduzido em imagem. Foi muitas vezes assim, aliás, desde os quadros vivos dos autos medievais sobre cenas bíblicas nas ruas ou no adro das igrejas, às primeiras versões impressas (e, antes, manuscritas e iluminadas). Dois casos exemplares desta união acompanham, entre muitos outros até aos nossos dias, as origens da própria arte do livro: a Bíblia alemã de Lutero (1534, ed. de última mão 1545), com as suas muitas dezenas de xilogravuras, e a latina de Gutenberg, impressa em Göttingen (em 1454) com caracteres móveis, mas ainda iluminada.
Bíblia de Gutenberg
Tal como estas pinturas de Ilda David', as xilogravuras da Bíblia de Lutero são também uma prodigiosa tradução imagética do texto, e um universo paralelo em si mesmas, de uma imaginação sem limites e de grande profusão de pormenores, testemunho de uma época de guerras, de terrores, de conflitos confessionais, mas também de conhecimento (fantasioso e grotesco) de novos mundos.
Xilogravuras da Bíblia de Lutero
As imagens de Ilda David' para esta versão da Bíblia são de natureza estritamente poética, como sempre leituras pessoais, pela pintora, de momentos escolhidos do texto, ao mesmo tempo iluminante e iluminado, numa galeria imensa e belíssima, que reconstitui uma «teologia visual» (J. Tolentino Mendonça) muito própria. Um turbilhão de formas, cores, surpresas espreitando de fundos indistintos ou da elaborada trama do risco. Só posso repetir – mais intensamente ainda, porque são mais intensos aqui as figuras, as cores, os ritmos, os mistérios – um fragmento do que escrevi a propósito da exposição Incubus, que reuniu em 2000 as imagens feitas por Ilda David' para a edição do Fausto de Goethe (Círculo de Leitores / Relógio d'Água, 1999):
Êxodo VII
«… de uma história mil vezes repetida
(do céu para a terra e desta para o inferno)
cresce a secreta aspiração aos rios e às fontes da vida.
tece-se o manto de mistério no tear vibrante do quadro. […]
que segredos sustentam no seu âmago
este brotar de linhas, cicatrizes,
filhas de um saber do risco e da cor,
antigo, como velhos são os tons da terra,
as transparências do céu,
os mitos sem tempo? […]
silhuetas, promessas apenas entrevistas
em espelhos de ilusão, livros de sete selos
que um dia se abriram ao olhar puro, desvelador
de uma qualquer perfeição do imperfeito […]
alma do traço a negativo.»
Génesis XXXIV
IMAGENS DO SEGUNDO VOLUME:
Números IX + XIV
Números XVII + XXV
Deuteronómio IX + Josué VI
Josué XVII + Juízes XVI
Juízes XIX
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