09 novembro, 2006

A CEBOLA DE GÜNTER GRASS

O Nobel da Literatura Günter Grass passou por Lisboa, leu o primeiro capítulo da sua autobiografia que a imprensa transformou em objecto de polémica, expôs gravuras e aguarelas (de que não gosto) e algumas pequenas esculturas (que me dizem mais). Conheço Grass desde 1976, estive o ano passado uma semana inteira com ele em Gdansk, na Polónia, vou traduzir-lhe de novo – para o cinquentenário da primeira edição, em 1959 – o primeiro romance, que saiu cá há quarenta anos com o título O Tambor, traduzido do francês (quando o traduzir de novo, dar-lhe-ei o título original: O Tambor de Lata. Não é o que se chama um dos meus autores, mas por dever de ofício fui-o lendo e escrevendo sobre alguns dos seus livros que sairam por cá (Grass é, de facto, um dos romancistas alemães do pós-guerra que melhor reflecte o processo histórico do seu país entre o nazismo e a actualidade).
Apresentei-o na sessão de leitura e debate no Goethe-Institut de Lisboa, em 3 de Novembro, e voltei a este novo livro, que deve sair em português na Primavera de 2007, com o texto que se segue, e que procura dar uma perspectiva muito pessoal, a partir da minha própria relação com a obra e o homem desde os anos sessenta.


A edição alemã da autobiografia, saída em Agosto

Falou-se muito, talvez de mais, deste último livro de Günter Grass. Falou-se sobretudo – na imprensa e na linguagem da imprensa, muito pouco na da literatura – de duas páginas deste fragmento autobiográfico que conta quase quinhentas; as hoje tristemente famosas páginas 126-127, em que o autor conta como foi incorporado numa divisão das SS, já nos últimos meses da Guerra. Não é delas que vou falar. O que tinha a dizer sobre esse episódio menor, quando comparado com tantos outros destinos ominosos de escritores e artistas da história trágica do nosso século XX, disse-o numa entrevista ao Público de 27 de Agosto passado.


Hoje prefiro dar testemunho, também para aqueles que, nesta sala, conheçam menos o seu percurso e a sua obra, da história da minha própria relação com o escritor e o homem político Günter Grass, com o homem tout court. Talvez isso ajude a enquadrar e entender melhor este novo livro na sua globalidade e no contexto de uma vida e de uma obra.
É a obra de um autor que um dia, sem que disso precisasse, mas porque «isto e também aquilo tem de ser recuperado» e «eu quero ter a última palavra», decidiu pôr no papel o que as névoas da memória preservaram dos anos da infância e da juventude. Aqueles anos em que «aquele rapazinho que, ao que parece, era eu» foi apanhado nas malhas largas da História alemã e europeia do século passado, e nas mais estreitas, a que eu chamo da «tirania do sangue» e da origem que nos cabe em sorte, da atmosfera acanhada de uma casa alugada e de uma pequena loja de mercearias no Labesweg do bairro de Langfuhr.


Labesweg, 13: Aqui nasceu Grass em 1927

Num daqueles recantos do Reich marcados pela ambivalência e pelas oscilações históricas, desde que a Ordem Teutónica deu início a uma odisseia que vem do século XIV até hoje, e que, além de Grass, um poeta esquecido fixou como ninguém: Johannes Bobrowski e o seu tema de sempre, «os alemães e o Leste europeu» (de Bobrowski pode ainda ler-se a antologia de poesia que dele fiz há anos. Como Um Respirar, Cotovia, 1991).

Johannes Bobrowski

Para Grass, esses anos da cidade livre de Gdansk/Danzig, depois cidade do Reich, são os anos, até 1952, que precedem «o nascimento do escritor no espírito da Olivetti-lettera», aquela «musa mecânica» e portátil, prometedora e duradoura prenda de casamento «que haveria de fazer de mim, se não imediatamente, pelo menos com o correr do tempo, um escritor» – lê-se no último capítulo de Descascando a Cebola. Nos capítulos anteriores, o leitor fica a saber como um rapazinho de doze anos deixou para trás a meninice, como o ainda adolescente saiu para o mundo para aprender o medo e, no fim da Guerra, conviver com a fome no meio dos escombros, mas também como o homem, ainda novo, descobriu a arte (a do desenho, da escultura e da escrita, mas também a do mercado negro) e conheceu o amor.
Vão caindo uma a uma as cascas da cebola de uma vida ainda a germinar, histórias filtradas pelos véus da memória e nas quais «tudo se passa de forma mais real do que na própria vida». A história que eu próprio teria para vos contar, que em vários momentos junta a minha com a do escritor e homem político Günter Grass, é também uma cebola com múltiplas cascas – mas terei necessariamente de a descascar nuns minutos.

As primeiras imagens de uma relação com a obra de Günter Grass (mas não ainda com o homem, que só mais tarde conheci) que acorrem à minha memória levam-me de volta aos anos sessenta do século passado, para um momento em que, num ambiente de grande efervescência de ideias em torno das propostas de uma Nova Esquerda nascida de uma constelação histórica em que, na Alemanha do pós-guerra, convergem o clima restauracionista das primeiras duas décadas de «democracia», a petrificação progressiva dos partidos comunistas e o aburguesamento da socialdemocracia – nesse ambiente em que eu próprio vivi na segunda metade da década de sessenta, comecei por ler a poesia e o teatro de Grass, e depois o primeiro grande romance, O Tambor. Era a época em que o SPD e Willy Brandt – talvez mais este do que aquele – representavam para o Grass político a evidência da política como arte do possível e dos pequenos passos, e a socialdemocracia (talvez vista, nostalgicamente, à imagem dos seus começos heróicos no século XIX) a única via entre os resquícios do nazismo (de mistura com os partidos da direita na RFA e o socialismo real da RDA) e o idealismo das revoluções já feitas que enchiam os sonhos da nova esquerda radical estudantil, com a qual Grass nunca se encontra. Nesses anos, entre 1965 e 1969, em que eu próprio, vindo da cinzentez do Portugal salazarista, acompanhava em Hamburgo com grande interesse o admirável mundo novo da «oposição extraparlamentar» e o percurso periclitante de um SPD um pouco à deriva e obrigado a entrar, a contragosto e sob fogo cerrado da esquerda, na grande coligação com a CDU, o grande partido da direita fundado por Adenauer – durante todos esses anos nunca vi Grass numa manifestação ou num comício estudantil. A sua posição era, de facto, outra: desconfiava da nova esquerda e do seu «radicalismo inoperante», preferindo empenhar-se, com a sua voz e a sua escrita, num trabalho de «miudezas democráticas» no dia a dia político das campanhas eleitorais ao lado de Willy Brandt, das cartas abertas a políticos e intelectuais, dos discursos sem microfone, do trabalho sindical. É uma longa marcha que parece não ter terminado ainda (Grass voltou a empenhar-se na última campanha, pelo «Projecto Verde-Vermelho», em 2005), feita a passo pouco mais acelerado do que o do caracol e de constantes e conscientes revisões de posições sempre frontais. Também Descascando a Cebola é mais uma re-visão, porque, hoje como ontem, «o revisionista vive da dúvida produtiva».


Grass em Lisboa, Junho de 1976. Suplemento «7Ponto7», do Diário de Lisboa de então

Nesses anos, tal como hoje, Grass alia um sentido realista e pragmático das situações a um empenho sempre apaixonado nas causas em que acredita, e deita abaixo todas as barreiras entre o literário e o político: é este o princípio mais evidente em toda a sua obra romanesca. A crítica alemã nunca compreendeu nem lhe perdoou esta osmose entre o político e o literário, que para um autor como Grass é visceral – e talvez seja precisamente esta coabitação conseguida o fundamento da sua grande aceitação e repercussão internacionais.
Mas a marcha lenta da luta política a caminho do progresso, como Grass a imaginava nos anos sessenta e setenta, desembocou a certa altura em algum desencanto. Liberto do pesadelo da «era Adenauer» pela ascensão de Willy Brandt, Grass vê essa âge de raison brandtiana – que haveria de dar frutos na Realpolitik, no desanuviamento Leste-Oeste, nas relações com a Polónia e com Israel –, esse estilo de política que quer também ser uma moral, serem bruscamente submersos pela «era Helmut Schmidt», de tendência acentuadamente regressiva. A longo prazo, tudo isso acabaria por preparar a «era Kohl», que aproveitou o esboroamento do regime da RDA para levar a cabo uma unificação que Grass, novamente muito interventivo entre 1989 e 1993, verá como fácil «anexação» de «uma pechincha chamada RDA».



Se antes era um céptico por princípio, torna-se agora um desiludido pela força das evidências. A primeira grande desilusão fora a da «doença infantil» do movimento estudantil de 1967-68 (que ganhou forma literária na peça e no romance com o título Anestesia Local); a segunda terá sido a constatação de que a política não se faz só com pessoas (ainda que se chamem Willy Brandt) nem com iniciativas individuais, e que a socialdemocracia alemã enveredou a certa altura por um caminho – aparentemente irreversível – que não era o seu. Os escritos políticos desses anos (Sobre as Evidências, 1968; Do Diário de Um Caracol, 1972; O Cidadão e a sua Voz, 1974) dão conta de uma evolução que se manterá até hoje, entre fases de euforia e acção e outras de resignação e reflexão. Mas sem nunca deixar de se fazer ouvir nos momentos cruciais da história alemã desde o fim da guerra (a última vez em Maio de 2005, assinalando os sessenta anos do fim dessa guerra, com um discurso vigoroso e lúcido sobre as novas formas de controlo das liberdades individuais no mundo globalizado, a que deu o título «Liberdade à medida das Bolsas». O texto original pode ler-se aqui, e o discurso gravado está disponível em ficheiro audio aqui).
Afinal, mais do que um desencantado, Grass revela sempre ser muito mais um autor sem ilusões e um espírito de convicções fortes. E um escritor que não perde de vista as precipitações da História no tempo de Agora.



Muitos dos romances e «novelas» (estas de escopo mais modesto, mas de concepção e escrita idênticas), como, mais recentemente, Mau Agoiro, A Passo de Caranguejo ou o romance-mamute Uma Longa História, são ajustes de contas com a grande História e o modo como ela é por vezes contada, ou, talvez melhor, reajustamentos da História oficial ou oficiosa da Alemanha e da Europa. Com isso, Grass assume muitas vezes o incómodo papel de Cassandra literária – coisa que poucos arriscam hoje fazer – e de pregador no deserto de consciência histórica que é este nosso tempo sem memória – papel que também poucos querem desempenhar. Grass, que escreve no espírito do «Trotz alledem!» («Apesar de tudo!») dos movimentos contestatários desde meados do século XIX, sabe que «Cassandra nunca ganhou uma eleição», mas também que «para um escritor, uma perda é sempre um ganho» (como afirmou num discurso em Halle, em Março de 1998). No fundo, trata-se – no papel de caracol, de «revisionista» céptico, de Sísifo paciente, às vezes de Cassandra – de manter desperta a dialéctica, de explorar as contradições do real e o peso do passado por meio de uma linguagem viva como poucas, e que respira a força das raízes. Trata-se, afinal, de nunca perder a lucidez nem renunciar ao porte íntegro. De «ser solidário e não ter medo», como escreveu um dia Christa Wolf numa carta a Grass (que, em 1999, sugeriu ao Comité Nobel a partilha, com esta autora emblemática da literatura alemã de hoje, do Prémio que acabara de receber – e viu recusada a proposta). Trata-se, enfim, nas próprias palavras deste inveterado optimista crítico, que diz sim à vida e não à arbitrariedade e à barbárie, de «preferir continuar a ser céptico do que tornar-se cínico». Um lema que continua presente em Descascando a Cebola.
A última vez que estive com Günter Grass foi no Verão de 2005, em Gdansk.


Com Grass em Gdansk, Junho de 2005

Durante uma semana discutiu-se e iluminou-se, página a página, o texto de O Tambor de Lata com vista às novas traduções que, no cinquentenário da primeira edição, em 2009, aparecerão por todo o mundo. Grass trabalhava nesse momento nesta autobiografia parcial que é mais um sinal inequívoco da inextricável ligação, em toda a sua obra, entre vida, literatura e história – ou, para lembrar uma outra autobiografia clássica, também ela parcial (a de Goethe), entre «Literatura e Verdade».











Descascando a Cebola volta a dar testemunho do modo como Grass elabora literariamente a sua vida na História – e este é, de facto, um livro literariamente conseguido, coisa que apenas poucos críticos (Fritz J. Raddatz, Adolf Muschg) salientaram. Acompanha a par e passo os acontecimentos, não deixando fugir nenhum facto que a memória ainda possa dominar, não se poupando a si próprio em mais este filme, por vezes desfocado, da grande e da pequena história. Hesita e reflecte muito tempo – como Goethe ao retomar o Fausto – sobre a melhor maneira de dar forma a essa «figura fugidia / que ao turvo olhar se mostrou outrora» e agora se busca de novo: ele próprio (melhor: «aquele rapazinho que, ao que parece, era eu»), adolescente entusiasmado e com sede de saber (o livro é dedicado «a todos aqueles que me ensinaram alguma coisa»), num tempo que julgava precisar de heróis e criou os seus próprios monstros. Estamos perante uma autobiografia tacteante, «um livro que testa a própria memória» (A. Muschg), mas no qual o que nos é dado ler ultrapassa em muito a simples recordação, ou, aqui e ali, algo como a confissão sem confessionário nem confessor (a não ser o da própria consciência) dos gestos imprecisos e das veredas por onde andou e se perdeu uma vida ainda em formação. É um breviário dos anos de aprendizagem e peregrinação. Um livro que, como todos os livros de Grass, tem muito que contar. Trata-se, como sempre, de mais uma tentativa de dominação de um passado – o próprio. Foi sempre assim. Desde O Tambor de Lata, tem sido este o caminho do escritor. E Grass é, em tudo aquilo que faz (talvez mesmo no seu trabalho gráfico e escultórico, com certeza nos seus textos políticos), escritor, com todas as implicações, estéticas, éticas e cívicas, que o termo pode comportar. Cada romance é um acto político, cada discurso político uma obra de arte literária. É esta, como escreveu Fritz J. Raddatz, «a secreta dialéctica da arte» de Günter Grass. Uma arte cada vez mais voltada para a lentidão. Talvez seja este também o segredo desta cebola que alguns lamentaram que fosse tão tardiamente descascada.

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