10 novembro, 2006

UM «OBJECTO ESQUIVO»



Ocorrem-me alguns autores que falam de Benjamin como se o tivessem conhecido. Falam do homem, não do pensador. Fazem retratos de um «objecto esquivo» (Derrida), arrolam atributos de um «homem sem qualidades», procuram entender a vida de alguém que fracassa perante a obsessão da morte. Hans Mayer, germanista e grande ensaísta judeu, vê-o como alguém que vem de uma geração de «fracassados» (em Der Zeitgenosse Walter Benjamin / W. B. nosso contemporâneo). «Tomar decisões não era o seu forte», descrê de si e os amigos mais próximos descrêm dele, provavelmente porque ficam perplexos com os caminhos que segue. Gershom (Gerhard) Scholem ou Max Rychner espantam-se com a «viragem» para o marxismo.


Ex-libris de Mariano Rubio e Oriol Diví

O primeiro lamenta que ele se tenha deixado ofuscar pelo «sol de Brecht», e o último pergunta-lhe um dia, numa carta: Dic, cur hic?, assim mesmo em latim, querendo dizer: «Que buscas tu aí?». Não podia prever que esse «aí», o campo materialista que Benjamin julgou ter de atravessar, teria uma longa e controversa história, até às discussões com Adorno, já a salvo do outro lado do Atlântico, a propósito dos ensaios sobre Baudelaire e «A obra de arte na época da sua possibilidade de reprodução mecânica».













Brecht, por seu lado, não lhe suporta o «misticismo», de fundo messiânico. Benjamin será sempre um enigma, «impenetrável para todos eles» (H. Mayer).




Ex-libris de Subirachs e Martin Glass

Parece programar o fracasso, fazendo seu o lema de Segismundo no fragmento dramático de Hofmannsthal Der Turm (A Torre), inspirado em La vida es sueño, de Calderón: «Sinto-me bem de mais para poder ter esperança!» E afinal Benjamin pertence tão-somente a uma estirpe de pensadores e criadores alemães, do Romantismo a Hans-Jürgen Syberberg, passando por Nietzsche e Ernst Bloch, que cruzam, de maneiras diversas, o mito e a razão. «Teólogos, naturalmente», diria ainda o marxista sui generis Hans Mayer.
O ensaísta espanhol José Maria Valverde falará, curiosamente, de Benjamin como «um herói do nosso tempo». Suprema ironia: um herói deste tempo – e «este tempo», se for o de Benjamin, terá de ser ainda o século XX de Kafka e do holocausto – só pode ser... um fracassado, um anti-herói, um herói sem causa (como o próprio Kafka, ou esse cultor do apagamento de si que foi Robert Walser).


Monumento ao holocausto, em Berlim,
do arquitecto Egon Eiermann



Robert Walser

Ou então será um «herói» com tantas causas que se perde no seu labirinto, caso de Pessoa ou Borges. Mas este culto do fracasso é uma reacção activa num mundo da acção, dos valores burgueses e das «tempestades de aço» (Enrst Jünger) que ecoaram em duas guerras mundiais. E, como forma de afirmação radical que era, só podia culminar num acto igualmente radical – o suicídio. Isto, se de suicídio se tratou naquela noite de 26 de Setembro de 1940 em Port Bou. David Mauas, realizador judeu argentino, questiona esta tese num documentário que poderemos ver em 24 de Fevereiro de 2007 na Culturgest.
Benjamin, lembra Valverde, é um caso «inclassificável». Em Port Bou, na lápide do cemitério, alguém gravou: «filósofo alemão». A inscrição diz muito, e muito pouco. Mais e melhor diz o memorial de Dani Karavan implantado nesse lugar (ver post de 3 de Novembro). As pedras e o túnel falam de um destino judeu e de um pensamento suspenso, múltiplo, instável, estilhaçado. O destino de judeu levaria inclusivamente este materialista messiânico a sentir o seu marxismo como uma interpretação judaica da história



O retrato de Derrida, feito a partir de um outro, do pintor italiano Valerio Adami, vê Benjamin, à imagem do seu século, como «transversal, diagonal, ambíguo», um «objecto esquivo», uma figura inassimilável: «crítico, assumindo posições críticas, nos limites, um homem da fronteira». E Giorgio Agamben [acaba de sair mais um livro seu, imperdível: Profanações, nos Livros Cotovia], esse preferirá definitivamente a figura do enigma: para ele, Benjamin é o filósofo enigmático, um pensador de enigmas, um ensaísta da forma enigmática.

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