BLANCHOT SOBRE PAUL CELAN:
O ÚLTIMO A FALAR?
(Tradução e comentários de Fernanda Bernardo. Lisboa, Averno, 2016)
Paul Celan
O título deste texto de Blanchot sobre Celan, acompanhando-o a par e
passo através da sua poesia, não podemos tomá-lo à letra. Desde logo em relação
a Blanchot: muitos outros testemunhos vieram antes e depois, nenhum deles o último,
particularmente em França, mas também no espaço alemão, na Filosofia e não só: já
Adorno (o «Judeu grande» do «Diálogo na Montanha») e o seu veredicto da
impossibilidade da poesia depois de Auschwitz (contradito por Celan, o «Judeu
pequeno», e tantos outros), o silêncio de Heidegger, a pergunta de Gadamer
sobre o «Quem sou eu, quem és tu?», a correspondência com Nelly Sachs ou
Ingeborg Bachmann... E muito menos ainda
em relação a mim, que neste preciso momento em que falo seria, aqui e agora, o
último a «dar testemunho» sobre esse poeta do testemunho – esse sim, último, irrefutável,
singular e não prolongável ou repetível – que foi o da poesia de Paul Celan, o
da linguagem, melhor, o da língua reinventada dessa poesia_______ que apaga o
Eu que transparece por detrás dela e se retira, que deixa numa zona indecidível
o Tu a quem permanentemente se dirige, sabendo nunca o alcançar.
O pretexto que aqui nos
reune (no Paralelo W, em Lisboa, na tarde de 4 de Junho) para falarmos de Paul Celan é o da publicação pela Averno deste pequeno e
denso livro de Maurice Blanchot, escrito depois da morte livre do poeta no
Sena, uma escrita que segue de perto, quase em paráfrase, num registo de
proximidade-distância, a poesia e alguns textos de prosa de Celan, para os
prolongar com a sua própria reflexão. Reflexão essa prolongada por sua vez pelas
muitas notas e pelos comentários de quem o traduziu – a profª Fernanda Bernardo,
que nos tem dado a ler textos importantes de e sobre Blanchot, Derrida, Nancy e
outros pensadores actuais do espaço francês. E eu próprio, partindo deste novo
livro escrito sobre e com Paul Celan (e há relativamente pouca escrita sobre
este poeta em português), gostaria também, e sobretudo, de o tomar como
pretexto para prolongar a reflexão que ele propõe. E mais não é possível, nunca
se poderá dar por encerrado o discurso e o discorrer (o «último a falar» nunca
será o último a falar) sobre uma obra como a de Celan, que deixou atrás de si
um tecido feito de restos, que começa como «tecido poroso» que permite entrever
a barbárie do século, e se fecha como uma «peneira» que filtra a luz que dele
chega até nós, luz imprecisa e cheia de enigmas. As imagens vêm-me de uma
anotação num dos cadernos de M. G. Llansol, dos últimos anos, onde ela escreve:
«Há quem não deixe restos nenhuns – há quem deixe muitos e mais restos, a
peneira do fim é o tecido poroso do princípio____» (Cad. 1.74, 69).
No centro do meu desdobramento
do que escreveram Blanchot–Celan–Fernanda Bernardo neste livro está uma questão
essencial, que só por si absorve toda a poesia de Celan, não deixando resto (a
não ser o que passa através dos poros do tecido, da peneira): a questão do testemunho, que Blanchot
introduz desde logo no seu texto-epígrafe, ao lembrar a frase do poeta:
«Ninguém / testemunha pela / testemunha» (do poema Aschenglorie).
À guisa de primeiro
testemunho, ainda possível porque totalmente exterior e acidental, recordo-me
de que o meu encontro com a poesia de Paul Celan, o primeiro com consequências,
ao que me lembro, e certamente decisivo, não anda muito distante, no tempo, do
ensaio de Blanchot (que é de 1972): corria o ano de 1976 e tudo aconteceu num
seminário para germanistas em Göttingen, mais exactamente na conferência de um
professor da Universidade local, Albrecht Schöne (que vinte anos mais tarde
voltaria ao meu encontro como responsável por uma das edições críticas modernas
do Fausto de Goethe). O que ficou
desse primeiro encontro, para mim uma revelação (e também para a Yvette
Centeno, com quem editei o primeiro volume da poesia), foi a decisão de dar Celan a ler em português – um processo longo e
difícil, por vezes doloroso: uma primeira plaquette
com uma dúzia de poemas sairia em 1979, mas a primeira recolha mais alargada de
poemas – Sete Rosas Mais Tarde – só
viria a lume em 1993 (e depois disso mais dois volumes: a Arte Poética e A Morte é uma Flor,
que reune alguns dos poemas póstumos).
De permeio, a presença de
Celan seria, no entanto, mais ou menos constante (e inquietante) em aulas e
seminários sobre a poesia alemã contemporânea, onde a sua entrava sempre, por
vezes abrindo as aulas com a sua voz:
a mais impressionante forma de testemunho que se pode imaginar. E que por isso
quero dar a ouvir também hoje, no fim, acompanhada das pinturas daquele que
melhor soube traduzir visualmente esse universo onde convergem, num aparente
paradoxo, a «majestade do absurdo», o
indizível na poesia de que falava Adorno depois da Guerra, e a escolha do caminho da luz que dá a ver o inaudito:
esse pintor é Anselm Kiefer.
Pinturas de Anselm Kiefer
Sprich
auch du
/ Fala também tu: assim começa o
poema de onde Blanchot retirou o seu título, e que suscita parte da sua
reflexão. Fala também tu, isto é, dá
testemunho também tu. O meu destaque vai aqui, não apenas para o tema e
motor de toda a poesia de Paul Celan (dar testemunho), mas igualmente, e com a
mesma relevância, para o também (tu).
Haverá dois modos de dar
testemunho, que na poesia de Celan alternam e se fundem e confundem: pela voz (o dizer, o falar, o
pronunciar(-se), o tomar posição, naturalmente o escrever) e pelo teste-munho
mudo do silêncio (entendido como presença também ela falante – Hölderlin
chamou-lhe «beredtes Schweigen / silêncio loquaz»), que só o não-dito da poesia
pode dar, porque não há «narrativa», récit,
relato que lhe sirva.
Temos então no centro e no
cerne (que é a própria língua) o
testemunho, e nas margens, no espaço do fora e do depois, o desejo de ser último, de haver um último momento, uma
última palavra – que, tal como a leio no poema-chave de Celan, na linha «Sag
deinen Spruch» (Diz, pronuncia a tua
sentença, o teu veredicto), é palavra inequívoca derivada de um apelo
imperativo, e não mero eco ou resposta – é a palavra que tem de ser dita quando
estão em causa as coisas últimas. Como quem desejasse encerrar, com uma simples
mas poderosa palavra, o que ainda mal começou: o caminho persistente e
resistente de uma poesia e de uma poética que, elas também, têm no seu centro o
desejo último de dar testemunho (como destaca também o comentário inicial de
Fernanda Bernardo, p. 54). Mas não de si, do corpo próprio, antes do que está
para além disso, e é da ordem do tempo, dos tempos, da História, da barbárie do
século – do projecto inacabado do humano, diria aqui Llansol, que não sabia
exactamente o que é o «humano», mas nunca deu por terminada a sua busca,
sabendo, isso sim, que «nada ainda modificou o mundo».
No caso de Celan, dar
testemunho passa essencialmente por uma vontade de resgatar, numa poesia da dor
indescritível, do inefável que pede para ser dito, a língua que é também a dos
assassinos, profanada e violentada, mas escolhida e «salva» por uma poesia
nos limites do dizer que não abdica de dizer (a sua verdade), que faz renascer
essa língua da sombra e na sombra, íntegra e renovada (e por isso muitas vezes
de difícil leitura), transparente nas trevas que tem de nomear, num exorcismo
total, sem verso e reverso, sem Sim e Não. Por meio de uma contra-palavra – Gegenwort – que, na dupla leitura permitida pelo alemão e pedida
por Celan, é também palavra do encontro.
Esta palavra dá voz ao que está para lá
da História e da própria poesia (se ela for apenas confessional ou «empenhada»).
Mas perguntamo-nos: esse para lá de
aponta para que horizonte? Qual é, se ele existe, o lugar e o sentido de uma teleologia em Paul Celan? Podemos falar
nestes termos depois de Auschwitz? Talvez sim, contra Adorno, se pensarmos
precisamente nesta Gegenwort como
aquele «resto cantável» de que fala Celan. Cantável mas não «contável», diria
um outro Blanchot, o de La folie du jour,
com o seu «pas de récit, plus jamais!» O que é extremamente importante para a
questão do testemunho: este não é um relato nem uma ficção, é o que resta, em
permanência, o «Ainda-e-sempre» do poema absoluto, da experiência da História,
e que a poesia ainda pode cantar/dizer. O telos
último em Celan seria então provavelmente o da assimilação mútua de língua e
História (também isto não é novo: é a velha utopia estética de Schiller e
Hölderlin, para Celan certamente mais a de Hölderlin, quando este escreve
linhas como «Pois onde há perigo cresce também a salvação...»).
Para Celan, no entanto, a
contra-palavra da poesia está inquinada à partida, como não estava no idealismo
de Hölderlin. Agora ela é «palavra de Judeu», daquele que atravessa a montanha
para um encontro que nunca se deu, e encontra ______o Nada. A sua contra-palavra
só pode ser a de uma linguagem radicalmente outra, linguagem das origens,
originária e originante: «Nada é antes dela», escreve Celan. E o dizer «nada» pode
significar que antes dela é o vazio, ou também que nesse vazio habita a
matéria-prima de toda a renovação e salvação: o Nada (como no Zen, ou nos místicos renanos, em particular Mestre Eckhart).
Mas Gegenwort é também palavra do encontro:
não tanto o encontro entre eu e tu, entre tu e tu, também presente na poesia de
Celan, e seu pressuposto irrealizável, com um alto grau de mistério e
indeterminação (há aqui ecos de uma ideia de comunidade dos que testemunham, impossível e «inconfessável» tanto
para Blanchot como para Celan: a «Communauté inavouable», a incompletude da
relação). Penso que será mais o encontro com a outridade absoluta,
proporcionado por aquela palavra que leva à estranheza radical, a do «Outro
absoluto» (das ganz Andere). É aí,
nesse lugar do testemunho sem rosto que responde ao testemunho da poesia, que
pode estar a salvação, «a voz pura que lava o mundo». Mas esse outro – e isto é
decisivo – não é um quem, é um quê, um Tu sem sujeito, a voz pura, luz
que não é obra de nenhum Deus, mas se faz, acontece no interior da própria
palavra poética, a do mistério e do silêncio. Por isso Celan escreve com essa contra-palavra do encontro (para juntar
agora os dois sentidos). Por isso ele apela ao outro para que dê testemunho,
claro e inequívoco, o do Spruch, o dizer que contém o dito, como uma necessidade (dirá também Levinas, que propõe esta dualidade). Tal como ele fez
– ele, o único a poder verdadeiramente testemunhar –, dando testemunho sem
quase falar do/sobre o objecto desse testemunho, na linguagem apenas, na
língua e na memória que ela transporta, no silêncio para onde nos leva. O das
últimas coisas.
Mas também as últimas coisas não
são últimas. São precisamente aquelas que nunca acabam, que estão e estarão
sempre presentes. E por isso aqueles que delas falam «em último lugar» nunca
são últimos. Porque aquilo de que falam, de que dão testemunho, não se esgota –
como a verdade a que nunca se chega, a que está para lá do relato dos factos,
da folie du jour que Blanchot define
assim: «A loucura do dia, era assim a verdade: a luz enlouquecia, a claridade
perdia todo o seu bom senso...», os factos pretensamente «objectivos e claros»
tornam-se obscuros e secretos.
Entramos numa segunda
vertente do «dar testemunho». Dar testemunho – como faz Blanchot sobre Celan, e
Celan sobre o mundo que viveu, naquilo que nele é da ordem do excesso – implica
necessa-riamente uma relação, uma resposta/responsabilidade, e uma ética. Este
lado é por mais de uma vez sublinhado nas notas de Fernanda Bernardo. Também eu
já destaquei por mais de uma vez o lado dialógico, relacional, ético, da poesia
de Celan (com a intenção de contrariar as leituras unilateralmente herméticas, que integram o Outro na singularidade do Eu). Isto está dito, em síntese, na
linha do poema em que lemos: «Sou tu quando sou eu».
Por outro lado, como penso
que já ficou claro, há o testemunho próprio
e os que vieram depois, e é para este
terreno que o livro de que falamos nos leva. O primeiro (o «testemunho
irrefutável» que «espera, cristal de sopro», «fundo / na fenda do tempo») é
sobre a exterioridade absoluta do mundo vivido (o da História), e contém em si
o paradoxo de ser indizível e ter de ser dito. Os segundos, que são muitos,
serão sempre testemunhos em segunda mão, sucedâneos impotentes do primeiro, por
mais genuínos que sejam. Há muitos, como disse, nomeadamente em França, onde
Celan foi ao encontro do fim (de Blanchot – este – e Derrida, de Levinas e
Lacoue-Labarthe, de Yves Bonnefoy e André du Bouchet, de Edmons Jabés e Jean
Bollack...). Ora, com o seu gesto final, Celan instituiu uma espécie de
fronteira entre estas duas formas de testemunho. O seu, uma vida inteira, teve
lugar na língua, aquela que teve de
reinventar, na sua fala própria, e não
nessa abstracção a que chamamos linguagem,
que é uma faculdade universal, e não um prolongamento do corpo. Em alemão a
palavra – Sprache – é e não é a
mesma; Heidegger, que não entendeu Celan, sabe que a fala fala, die Sprache
spricht; e essa língua que assim fala com a singularidade do impossível
poema absoluto, é a contra-palavra de
que falei antes, um dizer solitário e
sempre a caminho, e um dito que
constitui o imperativo ético de quem dá testemunho intransmissível. As duas
coisas não se separam, Levinas (para quem este dualismo subentende uma
poética versus uma ética), reconhece
que «o dizer deve implicar um dito, [e que isto] é uma necessidade» (cf. Ética e Infinito). No poema que Blanchot
toma como referência maior estão presentes estas duas vertentes. O «também» do
apelo a um outro («fala também tu»)
implica o primeiro tipo de testemunho, que é anterior, o de uma verdade que não
divide e é dita a partir da luz, com a luz que é a da sombra, palavra-chave
aqui. E esse apelo, na forma do «sag deinen Spruch» (que leio como
«diz/pronuncia a tua sentença/o que tens de dizer», porque a palavra Spruch, com todo o seu peso e tradição,
não permite desvios), exige uma tomada de posição, contém um imperativo. O
dialogismo aberto da ética de Levinas tem os seus limites, e talvez pudéssemos
lembrar um outro Blanchot, o de L'espace
littéraire, por exemplo, onde a certa altura surge uma crítica e uma desconfiança
em relação ao que chama o «logro do diálogo», salientando que o diálogo, no
espaço intercomunicacional, «tende apenas a aumentar a entropia», i.e a
perturbar a relação. E em L'entretien
infini, considerando três tipos de relação Eu-Tu, privilegia e aceita
apenas o terceiro, aquele em que não há confluência e conjunção (do tipo
1+1=1), mas estranheza, sob a forma de «separação infinita» (aqui em O Último a Falar, chama-se-lhe
«movimento sem termo», p. 13). Em Celan, de facto, o poema tem consciência da
distância («vai a caminho»), do desejo que permanece desejo. Cada testemunho é
um testemunho-outro, e nenhum se encontra com o seu Outro. As afirmações,
esparsas, de sentido dialógico em Celan estão cheias da reserva do «talvez», do
«pode ser», do «sem esperança...» (Arte
Poética, 34, 55).
O fracasso relativo do
«dizer» está na impossibilidade do «poema absoluto», para o qual toda a escrita
de Celan caminha, mas que não existe. E isso determina também a impossibilidade
de leituras definitivas dele. A poesia de Paul Celan é um campo aberto,
certamente atravessado por uma constante vontade dialogal, mas em última
análise fechado sobre o silêncio luminoso, mas irredimível, que o envolve.
O testemunho de Maurice
Blanchot em O Último a Falar, e os
ecos recorrentes dele nos comentários de Fernanda Bernardo dão um contributo
até agora único em Portugal para se compreender esta dialéctica entre o aberto
e o fechado, o dizer e o dito, a «verdade da sombra» e a «força
da luz».
E penso que pode ser um momento importante ouvirmos também a voz de Celan a ler a Fuga da Morte (aqui, para um
grupo de pessoas que, na sua maioria, provavelmente não poderão compreendê-lo). Mas a voz é
bastante. Edmond Jabès (o poeta d' A
Obscura Palavra do Deserto), que o conheceu mas não sabia alemão, diz dessa
voz: «A voz de Paul Celan, lendo em minha casa, para mim, alguns dos seus
poemas, não emudeceu». E: «Essa voz está no centro da leitura que faço dos seus
poemas; de facto, só posso ler Celan em tradução; mas, com os meios de que
disponho para abordar os seus textos, com a ajuda da inolvidável voz do poeta,
tenho quase sempre a convicção de não o trair» (Rosa Cúbica, 15/16, p. 42).
Assim, a «consciência« que a
voz é talvez se torne mais sensível, como tão bem diz o Derrida de A Voz e o Fenómeno, ao deixar claro como
a voz é o corpo vivo da palavra: «A escrita é um corpo que só quer dizer algo
quando uma intenção actual a anima e a faz passar do estado de sonoridade
inerte (Körper) ao estado de corpo
animado (Leib)» (p. 97).
Sem comentários:
Enviar um comentário