A NOVA REVISTA DE POESIA «APÓCRIFA»
Apresentação do Nº 5 | Tema: Narciso
Há
anos, pus-me a glosar alguns dos mitos de Ovídio nas Metamorfoses, entre eles também o de Narciso. E lembrei-me de que
uma parte do que escrevi poderia fazer sentido para abrir a apresentação desta
«Apócrifa
Narcísica». Leio-vos apenas o começo, que contém o essencial do que
me interessa agora:
narciso
quando da ninfa azul,
liríope,
nasceu narciso, perguntaram
a tirésias
se ele viveria muitos anos.
E o cego disse:
«se a si mesmo se não
conhecer!»
quinze anos teria narciso
quando um dia,
depois da caça, descobre a
fonte
de água sem mácula e, ao
beber,
outra sede, que não a de
água, sente:
a daquela imagem que do
lago o chama,
ser de paixão, belo como
uma estátua
de mármore de paros.
nega-lhe o espelho o beijo
de cada vez que se
aproxima,
e uma voz lhe diz: «o que
desejas
não existe, mas veio
contigo,
contigo ficará, se ficares,
e desaparecerá, se dele
conseguires
separar-te.» não se afasta
narciso,
e uma doce loucura desce
sobre os seus olhos...….
A
loucura de Narciso é um ensimesmamento. Nasce de uma ilusão: a que confunde eu
e outro. E de um desejo obsessivo: chegar ao que sempre se retira, ao Outro de
nós. A poesia nasce da loucura ensimes-mada, e assim tem de ser na poesia que
conta, para que o eu se liberte de si e encontre os seus «objectivos
correlativos» (dizia Eliot), «a geometria verdadeira das coisas» (escreve a
Marta Esteves neste número) — a poesia é
um exorcismo do eu através deste meu corpo, porque outro corpo não tem para
exorcisar. A Beatriz de Almeida Rodrigues escreve: «És um corpo de poeira / és
um corpo / és». E quando suspende o
verso ao dizer «és», deixou para trás nome, corpo, atributos. Ficou nua. Pura
existência. É dessa nudez que nasce o poema. Apocrifamente. Como Narciso, que a
si mesmo se não pode conhecer, quer dizer, que não pode enamorar-se do corpo,
do rosto, da identidade de um eu-outro a que nunca chegará, mas que busca
sempre. Muitas vezes, os melhores poetas dão a esse «eu» um nome, que desde
logo o distancia (como o pseudónimo, o acrónimo, o anagrama – não os haverá por
aqui? Há, quase tudo cheira a nomes transfigurados, travestizados, desde o
primeiro número da Apócrifa – et pour
cause!): mas agora falo do nome «Tu», que é ele/ela e o outro, que é Eu e
mundo, que é Narciso na borda do lago e Narciso no espelho – qual deles é o
verdadeiro? Não há verdade em Narciso, Narciso é por excelência vítima da
ilusão de si, criança ingénua que se ficou pela «fase do espelho», diria Lacan,
imaginando-se como Outro – e desconhecendo-se. A «Fotografia de Narciso» do
André Alves é um testemunho da perda de todas essas ilusões: o seu Narciso é um
eu que se retira, em vez de se enamorar de si, um eu para lá de toda a
«Incoerência sazonal / Na urgência solipsista», diz ainda a Marta, num poema
que respira e aspira a um entendimento da «geometria das coisas» muito para lá
de si própria.
Tudo
isto me parece assinalar algo de diferente neste conjunto de poetas
«apócrifos», os sem-nome, sabendo nós afinal os seus nomes. Por isso quero
pensar um pouco convosco o sentido do «apócrifo», que remete para um conjunto
de vozes animadas por uma vontade de anonimato, que se encontram sem se
confundirem. Rilke, o autor desse pequeno mas fascinante escrito chamado Notas sobre a melodia das coisas (das
coisas e não do Eu!), diria que estamos, com este conjunto de poemas, perante
uma grande melodia que nos chega através de vozes singulares. A grande melodia
é o murmúrio do mundo – a que vocês dão ouvidos, mais do que outros —, as vozes
singulares dão-lhe forma de linguagem, como as pedras a transformar-se em
palavras (Beatriz – esta ou a «Alguém»?), como o coleccionador de vozes (Duarte
Harris – será mesmo Harris?), que sabe que «tudo se reconstrói e reorganiza /
com a mesma matéria [essa, a das palavras] / sem novidade», como aquele outro
poema (do Tristan A. Guimet – nome de ecos mitológicos e orientais) em que o
silêncio do mundo se transfere para a palavra e a transforma numa espécie de
lugar do absoluto, «uma casa / para morrer» (e o falarmos aqui de «vozes», e
não de nomes ou poetas, tem muito que se lhe diga, e é exactamnte por aí que
leio a vossa poesia).
Isto
é algo de raro na poesia de hoje (e mais ainda na de ontem), como Manuel Gusmão
também intui, quando confessa que não vos conhece, aos poetas da Apócrifa, nem isso é o que importa. Mas
já o não acompanho no paralelo com o Pessoa da «Auto-psicografia»: porque penso
que não é tanto a consciência do fingimento o que vos distingue – embora aquilo
que em vocês sente acabe também por
servir um pensamento poético. E
também hesitaria em afirmar que os poetas «apócrifos» se distinguem pelo regresso
de «coordenadas líricas» mais ou menos apagadas pelos «poetas sem qualidades»
que vos antecederam e ainda aí estão. Penso antes que as linhas de afinidade e
continuidade (também em relação a outros: ouço por vezes por aqui ecos de Al
Berto) predominam. Bastaria voltar a abrir, por exemplo, o editorial do
primeiro número da Telhados de Vidro
para se perceber que para os «poetas sem qualidades», como para os «apócrifos»,
a poesia continua a ser aquela coisa não solene, não decisiva, não escrita com
maiúsculas, que aposta no efémero, suspendendo qualquer ideia elitista, mas ao
mesmo tempo é a única coisa que verdadeiramente importa para preencher o enorme
bocejo que são (seriam) os nossos dias, neste mundo em que a poesia continua a
fazer-se, porque não temos outro. O Vasco Macedo diz isto, e desemboca na morte,
nas pequenas mortes dos dias, como antes dele Manuel de Freitas, nos «dias,
pequenos charcos», como antes dele Joaquim Manuel Magalhães, no longo poema
«Alguém fez uma incisão na pedra...»; e na abertura da Telhados de Vidro, há uma dúzia de anos (2004), lemos:
«'A poesia
não interessa' – e isso, como tudo, já foi dito. Acreditamos, alguns, no
intervalo entre o dito e o não dito. Depende dos casos.
Estamos
todos sozinhos, mesmo os que nunca leram Rilke, Pessoa ou Larkin [eu
diria: precisamente esses!]. A poesia –
isso que não interessa – é uma forma primária e elaboradíssima de comunicação.
Mas não temos um canal, uma razão suficiente ou sequer um prazo de validade.
[...] A poesia, que não nos interessa rigorosamente nada, move-nos de quando em
quando. Temos de nos distrair da morte, e não sabemos muito bem como. Talvez
assim.
Vista
deste modo, a poesia não tem propriamente um destino, embora tenha a sua
destinação (a desta, de que falamos hoje e agora, são os nossos ouvidos, os
nossos corpos, as nossas sensibilidades, que sairão daqui com uma disposição
diferente daquela com que entraram – esta é a «razão suficiente» da poesia, que
não é universal, mas local e singular); a palavra do poema – dos vossos poemas
– é «inutilmente exacta» (Gastão Cruz), com uma mínima e leve vocação utópica
que a faz ir adiante, mas não lhe concede quaisquer direitos em relação ao
futuro – o poema é todo presente, embora possa abrir portas que dão para
lugares quase sempre melhores que o seu presente. Para se perceber isto, o
melhor será ler os poemas (e ainda os ouviremos), mas eu estou aqui para falar
deles, dos vossos, esperando que por essa via possa lançar alguma luz, ou uma
luz diferente, sobre eles, como quem dá a volta ao interruptor num quarto
escuro, ou coloca um abat-jour à volta de uma luz demasiado intensa, sabendo de
antemão que não chegarei à fonte de luz que emana do próprio poema. Dele, e
apenas dele. Para isso, pensei que o melhor seria seguir o caminho que mais me
agrada, o da objectivação do poema ignorando-lhe o nome, do olhar
despersonalizado sobre a realidade que o poema capta nas suas linhas de força,
sem identificar rostos, que por vezes se confundem. Neste sentido, o poema
contém em si todas as qualidades, e por trás dele está o poeta sem qualidades.
O ser sem qualidades é em si a maior das qualidades – sei-o por convivência
longa com o arquétipo de todos os «homens sem qualidades», o de Musil.
O
que sinto mais nestes vossos poemas é essa grande qualidade, aparentemente
negativa, da retirada do nome, da rasura do Eu. Lemo-vos e percebemos que vocês
sabem que a assinatura do poema é sempre outra que não a do nome civil, como de
si sabia também Benjamin, que um dia decidiu não usar a palavra «eu» no que escrevia.
E perguntava: «Serei eu aquele que se chama W. B., ou chamo-me simplesmente
assim?» A essência do nome, conclui
Benjamin, é «uma essência de linguagem». Essa essência está na «equação vaga» –
qualquer coisa de enigmático, entre o rigor da matemática e a liberdade do voo
– que é a linguagem do poema (como sugere a Beatriz), não no nome que o assina.
Podia também convocar Maria Gabriela Llansol (que para si mesma inventa a
fórmula, e a prática, do «poema-sem-eu»), ao aconselhar – com grande resistência
do outro lado – Vergílio Ferreira a esquecer o nome, porque «o nome é nada» e
«o nosso verbo é escrever». Mesmo a «Biografia», a do Vasco Macedo neste número
5 da Apócrifa, quando começamos a
lê-la revela-se como outra coisa: é a escrita dos ecos que o mundo provoca
sobre si, o seu corpo e a sua... alma. Llansol diria aqui, uma vez mais, ao seu
«companheiro filosófico»: não existe biografia (pelo menos para a escrita), o
que conta é apenas a «signografia do Há», ou seja um conjunto de sinais – uma
«geografia», diz a Beatriz na sua leitura de si, à distância deste «país
relativo», também aqui por interposta voz de um «tu» –, uma gramática sem
regras de onde nasce essa escrita de sinais – não de vidas – que nos marcam o
corpo e nos vêm dizer que existimos, que estamos aí, disponíveis, seres-para-a-morte,
que a escrita constantemente desafia e mais ou menos sabiamente vai adiando.
Volto
a Narciso, e à sua problemática
ligação com o apócrifo. O choque é
evidente: Narciso enamora-se de si, da sua imagem que é o seu nome, que perdura
na flor em que se transformou; o apócrifo é o sem nome nem origem, o que apaga
ou falseia deliberadamente a imagem que o nome transporta – e o Eu perde-se,
apaga-se, questiona-se. Mas o mais interessante nos apócrifos com nome desta Apócrifa é que tudo isto se situa nos
antípodas das tradições mais comuns da poesia portuguesa (incluindo alguma
nossa contem-porânea), que ou é cegamente subjectiva, presa de um «narcisismo
primário», ou tende a empolar um eu contestatário, rebelde com causas, sim, mas
que se esgota numa irreverência as mais das vezes sem consequências (porque
traz a irreverência a primeiro plano, a qualquer preço?). Nos apócrifos da Apócrifa, porém, o acto poético parece
ter consequências – que mais não seja, a de voltar a mostrar como a palavra
pode amplificar sentidos para lá do eu, como o mundo ganha contornos de coisa
vivida e pensada com o corpo – o meu,
que outro poderia ser? (já Manuel de
Freitas escrevia no seu primeiro livro: «um poema, mesmo que seja insuflável, /
nunca salvou ninguém do seu corpo. / E é do corpo só que se trata»). Mas há
mais consequências sensíveis no vosso trabalho poético: nele, os olhos, os do
leitor, vêem mais do que o corpo e a vida de quem escreve, ouvem na sua voz a voz do ser, mas sem metafísica, o
rosto da negativi-dade que o poema enfrenta e a que responde.
O
título genérico (Apócrifa), que, quer
se queira quer não, transporta consigo um programa, abafa o tema deste nº 5 (Narciso), o que pode querer dizer que
nem o nome que assina sabe da fonte de onde nasce o poema, que de facto não há
nome por detrás dele (apenas à superfície da convenção editorial). Aqui,
Narciso agitou as águas e o seu perfil esfumou-se, desapareceu no torvelinho
das palavras. Não sinto aqui enamoramento
(do Eu), ouço o estranhamento (do mundo). E o instrumento deste modo leve
de mudar que é o vosso é o de uma palavra poética que voltou a cair em si,
esfriou, ma non troppo, congelou a
euforia do Eu. E no entanto ela move-se, é ela que faz mover o eu, o que vive e
o que escreve – e por isso é que não é apenas ele aquilo que se nos oferece no
poema, mas sobretudo ela, a linguagem, e a sua capacidade de dizer e de
mostrar, de se vestir com o que no mundo cai, acontece e nos afecta. E di-lo de
uma certa distância, imprescindível para desfazer a ilusão de que eu e
linguagem se confundem no poema. O fim dessa ilusão, que desponta nos textos
desta Apócrifa, é o sinal de uma
poesia que chegou à maioridade. Comparando-o com os anteriores (que li
parcialmente online), há neste nº 5
uma clara inflexão e um curioso paradoxo. A inflexão
vai no sentido de deixar para trás tiques mais pessoais e jocosos, que faziam
parte de uma estratégia de irrisão e desconstrução, entre o «bêbado alegre e
meigo» e o «lúcido triste e feroz», diria – disse – o Vasco; o paradoxo é este, e já ficou no ar no que
eu disse antes: sendo agora o tema «Narciso», os poemas começam a ser muito
menos narcisistas, põem o eu mais à distância, numa expressividade mais serena
que contrasta com a febre de si, mais
própria de Narciso. Parece-me ser um caminho a continuar. Um PLEC-Projecto Literário em Curso que, por ser
projecto, ainda dará mais frutos. Que nasceu apócrifo e foragido, como «colectivo pré-contemporâneo», mas sem
nenhuma intenção de voltar atrás ou de renegar uma contemporaneidade a que não
pode fugir. Também nisto há um gesto de saudável recusa que não é niilista, mas
sabe que não há presente sem passados – sejam eles os dos mitos a reinterpretar
ou a abater, ou os dos poetas a lembrar,
a assimilar, a continuar: Prometeu, Fausto e Narciso, ou Cesariny e Orpheu, Herberto e Adília...
Uma
palavra ainda sobre os desenhos da
Adriana Santos (de aqui se vêem alguns originais): o campo em que eles se movem, e nos movem, é o da vulva, do
ventre, do útero, do seio... Do germinar e do nascer. E há ainda o olho – o
olho de Narciso, órgão da sua perdição? Ou a semente de onde tudo nasce? Alguma
coisa, escondida, está sempre à espera de nascer (para morrer sem morte, como
Narciso metamorfoseado). O olhar (e o pensamento que ele activa) é a parteira. É
o que leio nos desenhos, entre o naïf-infantil
e o elaborado e provocatório, da Adriana.
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