O LUNAPARQUE DA LITERATURA
visto por Walter Benjamin
Ao cabo de quatro anos de interrupção, devida à mudança da Assírio & Alvim para o grupo Porto Editora, a edição das Obras de Walter Benjamin vai finalmente ser retomada em 2015, na mesma chancela. O próximo volume, o quinto desta edição portuguesa, reune textos conhecidos (como «A tarefa do tradutor» ou «O contador de histórias»), mas também muitos fragmentos raramente divulgados nas traduções de Benjamin, sobre teoria e filosofia da Linguagem, da Tradução e da Literatura (ou da sua crítica).
Um dos conjuntos de fragmentos, sobre teoria e crítica literárias, é de uma flagrante actualidade no que se refere aos caminhos de uma boa parte da literatura e da crítica (nomeadamente da crítica jornalística) nos agitados e decisivos anos entre as duas Guerras do século passado (os tempos pós-modernistas da chamada «Nova objectividade») e nos nossos próprios dias, em que o objecto da literatura e da crítica se desloca tantas vezes para o culto da personalidade, o fait divers mundano ou o puro comércio.
Para assinalar a continuidade da edição, dou a conhecer, em jeito de pré-publicação, alguns desses fragmentos sobre literatura e crítica em que Benjamin não poupa o seu tempo e as suas práticas, nem à esquerda nem à direita, e se revela implacável com uma situação epocal e cultural dominada por essa pretensa «objectividade» sem objectivo (i. é, sem «programa») e por uma voga anti-teórica no jornalismo cultural e na própria literatura dita «política» (i. é, burguesa de esquerda ou marxista), e atravessada por muitas contradições. Não sendo essas contradições as mesmas de hoje, nem estando este nosso tempo consciente das suas, os paralelos tornam-se evidentes quando lemos alguns destes esboços de uma crítica da crítica e de dissecação da literatura por Benjamin. Muitas vezes, mais não será preciso do que introduzir uma ligeira variante: onde se lê «alemão», leia-se «português», onde se lê «a nova objectividade» alemã, leia-se por exemplo «a nova ordem do espaço literário» português, ou mudem-se os nomes dos prémios. Depois, basta ler as secções de crítica (se as encontrarmos), as reportagens e entrevistas dos nossos jornais, para se confirmar como Benjamin, sem o imaginar, estava a falar de nós.
CONSELHO AOS MECENAS (1929)
O
baixo nível a que chegou a crítica literária alemã não é segredo para ninguém.
Mas as razões que o explicam talvez sejam. Entre elas destaca-se a falta de
camaradagem, de espírito de oposição, a falta de uma clareza nas relações dos que escrevem uns com os outros. Daí a
marca espantosamente incaracterística das nossas tendências literárias e dos
seus representantes, e a triste dignidade de uma crítica que mais não é do que
a expressão do horizonte limitado e abafado em que é praticada. O humor precisa
de liberdade de acção e espaço para respirar. Um mecenas inteligente que queira ajudar a literatura alemã terá de desistir de encontrar novos talentos. De
lançar novos laureados com os prémios Kleist ou Schiller. Em vez disso, que
pense bem na seguinte sugestão: construir o lunaparque da literatura alemã. O
terreno não precisa de ser muito grande, mas as suas possibilidades são
ilimitadas...

Depois
da cerimónia inaugural, um coro avança e diz mais ou menos o seguinte: «Nada
que valha a pena.»
PERFIL DA NOVA GERAÇÃO (1930)

A TAREFA DA CRÍTICA (1931)

No
verdadeiro crítico o juízo
propriamente dito é o último a que ele chega, e nunca a base do seu trabalho
crítico. A situação ideal é aquela em que ele se esquece de emitir um juízo.
FALSA CRÍTICA (1930-31)

... A mera objectividade crítica, que, caso a caso e sem segundas intenções, não tem nada a dizer para além do seu juízo particular, acaba sempre por ser desinteressante. Esta «objectividade» mais não é do que o reverso da ausência de perspectivas e de directivas de uma prática de recensão com que o jornalismo aniquilou a crítica.
O que é próprio
desta objectividade, a que se poderia chamar nova, mas também desprovida de
consciência, é que nos seus produtos, em última análise, a bona fides vai sempre dar à reacção «temperamental» da figura
original de um crítico. Esta criatura, cândida e despreconceituada, de que a
crítica burguesa tanto se ufana, na verdade é apenas a expressão do zelo servil com
que o jornalista cultural satisfaz a sua necessidade de figuras marcantes,
temperamentos fortes, génios originais e personalidades. A honestidade desta
estirpe de crítico é puro fogo de artifício; e quando mais fundo for o tom de
convicção, tanto mais fétido é o seu hálito.
Nada diz mais sobre o nosso meio literário do que as suas tentativas de alcançar os
maiores resultados com o menor investimento. O acaso jornalístico veio
substituir a responsabilidade literária. É absurdo o modo como os literatos da
«Nova Objectividade» exigem repercussão política sem investimento pessoal. Este
investimento pode ser prático, e consistir numa actividade político-partidária
disciplinada; e pode ser literário, através da exposição da vida privada, de
uma intervenção polémica generalizada, como acontece com o Surrealismo em
França e com Karl Kraus no espaço alemão. Os literatos de esquerda não fazem
nem uma coisa, nem outra. E temos de desistir de concorrer com eles na luta por
um programa de «literatura política». Porque quem se aproxima do carácter
mediador, e mais ainda do efeito de mediação da escrita burguesa séria, terá de
reconhecer que aí se diluem as diferenças entre a literatura política e a
apolítica. E que aparecem de forma mais nítida as diferenças entre a literatice
oportunista e a radical.
Já é
altura de tomarmos consciência de que o tão afamado recurso aos factos tem, na
verdade, duas frentes. Por um lado, combate a ficção estranha à realidade, as
«belas-letras», e por outro lado insurge-se contra a teoria. É o que nos mostra
a experiência. Nunca, como hoje, uma geração de jovens escritores mostrou tanto
desinteresse pela legitimação teórica do
seu prestígio. Tudo o que vá para além de uma argumentatio ad hominem já está fora dos seus
horizontes. Como poderia ela chegar a um esclarecimento teórico das suas
posições, se essas posições estão voltadas para dentro e excluem em si mesmas
todo e qualquer ponto de vista mais lúcido?
Muito
característico da crítica de hoje: quase nunca compromete mais um autor do que
quando elogia. O que estaria em ordem, se ela não elogiasse precisamente o que
é menos meritório.
Neste território tudo assenta numa certeza: a de que ninguém irá estragar o jogo de ninguém.