12 dezembro, 2014

ENCONTROS E TRAVESSIAS
Um volume de homenagem


Deixo aqui, para além do meu agradecimento, a reconstituição possível do que disse e li ontem, na sessão de homenagem que, por iniciativa de ex-colegas de várias universidades e da APEG-Associação Portuguesa de Estudos Germanísticos, teve lugar no Goethe-Institut, em Lisboa. Na ocasião, depois das intervenções da actual directora do Goethe-Institut, Claudia Hahn-Raabe, e da representante da APEG, foi-me entregue pela Profª Ana Maria Bernardo essa 'Festschrift' com contributos que cobrem um vasto espectro, dos estudos sobre temas germanísticos à teoria da literatura e da tradução, da poesia original a versões de poemas alemães, dos estudos de recepção aos depoimentos mais pessoais, da filosofia ao teatro, tudo isso cabendo no espaço que me é mais próximo e mais caro, o do ensaísmo na acepção mais ampla do termo.


 
Trouxe, para agradecer esta homenagem, um poema de Brecht que me diz muito e que me parece perfeitamente ajustado para esta ocasião. Antes de vos ler a tradução que dele fiz há dias, duas ou três notas apenas. 

1. O melhor que posso fazer para vos agradecer é lembrar que o sentido de uma vida se vislumbra quando percebemos que o mais importante foi aquilo que demos, as portas que abrimos quando entramos numa sala de aula, ou escrevemos num jornal (como gostava de salientar um grande amigo já desaparecido, o Eduardo Prado Coelho), também quando traduzimos um grande autor, acrescentaria eu agora. Enfim, todos aqueles momentos em que respondemos aos apelos que nos chegam pelas mais diversas vias.
Faz todo o sentido evocar neste contexto a escritora de cuja Obra há alguns anos estou mais próximo, Maria Gabriela Llansol, e o que ela escreve num dos seus diários: «Perguntar 'quem sou?' é uma pergunta de escravo; perguntar 'quem me chama?' é uma pergunta de homem livre.» Levei algum tempo a compreender esta verdade, que a princípio me parecia um tanto contraditória. Hoje reco- nheço que estamos, particularmente neste nosso momento histórico, demasiado viciados no culto do eu, e insistir cegamente na primeira pergunta fecha-nos cada vez mais sobre nós mesmos. Já a segunda, correctamente entendida, significa a disponibilidade, em liberdade, para atender aos apelos (escolhendo-os, naturalmente), e entrar no espírito da «troca verdadeira». Mais tarde, num caderno inédito do espólio, Llansol deixa a seguinte anotação: «Escrever é renunciar infinitamente ao que se crê ser.» E também outro dos meus autores de eleição, Walter Benjamin, decidiu um dia, muito cedo, eliminar a palavra Eu da sua escrita. 
 
2. O tipo de volume que acabo de receber, em cuja capa se lê que se trata de uma «Homenagem a...», tem em alemão (uma língua mais plástica, visual, directa, do que o português) um nome que me serve também agora: Festschrift. Os dois elementos que o compõem, Fest+Schrift, dizem-nos que se trata da escrita como uma festa, de uma festa da escrita.
Também essa festa se faz com a escrita dos outros, a que nos alimentou e iluminou; e só depois com a própria, que dela nasce e com ela se funde no diálogo do pensamento que ganha corpo de escrita, e também no métier (que é o de alguns de nós) da travessia arriscada da re-escrita do outro pela tradução.
Em qualquer dos casos, é sempre uma festa: das ideias, dos sentidos, da descoberta, da mão que escreve, e também – é essa a nossa esperança – a de quem nos lê. Não há festa sem outros, os que connosco con-vivem, nos chamam e por quem chamamos! Entrar nessa festa, ainda no sentido da frase de Llansol, é partilhar um espírito de «liberdade livre» (como um dia disse um poeta nosso). 

3. No texto de Brecht que trouxe – o poema, da fase da emigração (escrito em Svendborg, na Dinamarca, em 1937/38), Legende von der Entstehung des Buches Taoteking auf dem Weg des Laotse in die Emigration – vários são os momentos em que me revejo: os que falam do estado do mundo, o gosto de corresponder aos apelos (que são sempre muitos), o velho ditado da «água mole em pedra dura...», a ideia de ensinar como quem respira, sem segredos, o gosto de escrever sete dias a fio, enfim, a vontade ou a necessidade da «emigração».
Também eu fiz uma dupla emigração, primeiro real, quando resolvi sair deste país, na altura cinzento e salazarento, e fui dar a Hamburgo, decidindo com isso o meu futuro percurso; e, desde há algum tempo, também uma «innere Emigration», uma emigração interior que me tem levado a retirar-me progressivamente do espaço público, sem com isso desistir de fazer o que me parece ter sentido para que alguns, eventualmente, se encontrem a si próprios neste mundo – sem lhe darem excessiva importância.
Só uma palavrinha no poema me não assenta bem, mas não pude evitá-la na tradução: o sábio. Certíssima para Lao Tse, völlig fehl am Platz, totalmente desajustada para mim – e para este nosso tempo, que desaprendeu toda a sabedoria, e muito menos sabe o que é a sageza. Como no caso de Brecht, poderíamos dizer que das Wissen (und noch mehr das Besserwissen) blüht, die Weisheit ist schwächlich, deutlich im Kurs gefallen. Para cruzar Benjamin com Brecht: o 'saber' impera (e ainda mais o querer saber melhor que os outros, o 'chico-espertismo', hoje globalizado!), a sabedoria e a 'experiência' (como lembra Benjamin nos mesmos anos do poema de Brecht) andam muito por baixo, e a sua cotação é fraca!
Antes da Lenda de Brecht, apenas três pequenos poemas de um outro dos meus autores, esses sim, fruto de muita sabedoria: os do Goethe das Zahme Xenien (Xénias Mansas), poemas irónicos, por vezes atravessados já por uma certa melancolia, de uma fase adiantada da vida, que traduzi em tempos para a edição que fiz também da sua poesia: 

               De ideários e idealismos
               Que levo quando me for? 

               Nunca fui escravo de Ismos, 
               Fui sempre o eterno amador. 

                                     *

               «Tão calado e pensativo!
               Tens algum problema? Qual?» 

               Eu estou satisfeito, amigo, 
               Mas assim sinto-me mal! 

                                     *
               Como irei eu partilhar
               A vida entre fora e dentro, 

               Se a todos tudo quero dar 
               Para viver sob um só tecto? 
               Toda a vida tenho escrito
                Como penso, como sinto,
               E assim, meus caros, me divido, 
               Sou sempre um só, e não minto. 


E agora, finalmente, Brecht: 

Bertolt Brecht
LENDA DA ORIGEM DO LIVRO DO TAOTEKING 
INDO LAO TSE A CAMINHO DA EMIGRAÇÃO  
[Svendborg, 1937/38

1
Ao entrar nos setenta, a carcaça cansada, 

Precisava de descanso o professor –
No país, para variar, a bondade era nada 

E a maldade, é claro, voltava a prosperar. 
Atou os sapatos, pronto para desandar. 

2
Meteu no saco tudo o que precisava:
Pouco. Mas ainda assim alguma coisa havia. 

O cachimbo que à noite sempre fumava
E o livrinho que há muito tempo lia.
E pão de trigo a olho, para o dia a dia. 


3
Uma vez mais o vale o fez feliz, logo o esqueceu
Ao entrar na montanha, que subia.
E o boi, feliz também, erva fresca comeu 

Ruminando, e com o velho no lombo, lá ia_____
Que este, se tinha pressa, não se via. 


4
Ao quarto dia, porém, entre penedos,
Um guarda aduaneiro os fez parar:
«Valores a declarar?» – «Não tenho segredos!» 

E o rapaz-guia do boi: «Mais não fez que ensinar!»
E tanto bastou para se explicar. 

5
Mas o homem, entre excitado e atento,
Ainda perguntou: «E a que conclusões chegou?»
Diz o rapaz: «Que a água mole em movimento 

Com o tempo a pedra dura dominou.
Estás a ver: o que era poderoso cedeu.» 


6
Para não perderem o sol derradeiro
O rapaz espicaçou o boi e
O grupo dos três dava a volta ao pinheiro 

Quando o nosso homem acorda, e mesmo ali 
Grita: «Alto lá! Pára aí! 

7
Que história é essa, velho, da água vencedora?»
O velho parou: «Queres saber?»
E o homem: «Eu sou um simples guarda,
mas agora
Esta de quem vence quem dá que pensar. 
Se sabes a resposta, terás de ma dar! 

8
Escreve o que sabes! Dita-o aqui ao rapaz! 

Coisas dessas não se levam deste mundo. 
Temos papel e tinta, e muito me apraz 
Dar-te ceia. Eu moro ali ao fundo.
E então? É pedir muito?» 


9
Por sobre o ombro, o velho olhou
Para o homem: casaco remendado, sapatos
nenhum.
Testa cheia de rugas. E pensou:
Não, não era um vencedor, aquele ali, meio nu. 

E murmurou: «É só mais um!» 

10
Era velho de mais, o velho, para dizer
Não a um pedido tão cortês.
E disse alto e bom som: «Temos de responder 

Aos que perguntam.» E o rapaz: «A noite cai, esfria, como vês.»
«Então paramos aqui, mais esta vez.» 

11
Já do seu boi o sábio se apeava
E durante sete dias a dois escreveram.
E o guarda trazia a comida (e em voz baixa
praguejava
Com os contrabandistas enquanto ali estiveram).
Até que um dia terminaram. 

12
E uma bela manhã o rapaz entregou
Ao guarda as sábias sentenças – oitenta e uma.

E agradecendo a merenda que levou
Foi-se o sábio, e passou o pinheiro na bruma. 
Dizei: haverá maior bondade, em suma? 

13
Mas não louvemos só o sábio que um dia 

Viu o seu nome na capa do livrinho!
Há que arrancar ao sábio a sua sabedoria. 

Louve-se o guarda que encontrou esse caminho –
Sem ele, o saber ficaria sozinho! 

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