ENCONTROS E TRAVESSIAS
Um volume de homenagem
Deixo aqui, para além do meu agradecimento, a reconstituição possível do que disse e li ontem, na sessão de homenagem que, por iniciativa de ex-colegas de várias universidades e da APEG-Associação Portuguesa de Estudos Germanísticos, teve lugar no Goethe-Institut, em Lisboa. Na ocasião, depois das intervenções da actual directora do Goethe-Institut, Claudia Hahn-Raabe, e da representante da APEG, foi-me entregue pela Profª Ana Maria Bernardo essa 'Festschrift' com contributos que cobrem um vasto espectro, dos estudos sobre temas germanísticos à teoria da literatura e da tradução, da poesia original a versões de poemas alemães, dos estudos de recepção aos depoimentos mais pessoais, da filosofia ao teatro, tudo isso cabendo no espaço que me é mais próximo e mais caro, o do ensaísmo na acepção mais ampla do termo.
Trouxe, para agradecer esta homenagem, um
poema de Brecht que me diz muito e que me
parece perfeitamente ajustado para esta
ocasião. Antes de vos ler a tradução que dele
fiz há dias, duas ou três notas apenas.
1. O melhor que posso fazer para vos
agradecer é lembrar que o sentido de uma vida
se vislumbra quando percebemos que o mais
importante foi aquilo que demos, as portas que
abrimos quando entramos numa sala de aula,
ou escrevemos num jornal (como gostava de
salientar um grande amigo já desaparecido, o
Eduardo Prado Coelho), também quando traduzimos um grande autor, acrescentaria eu
agora. Enfim, todos aqueles momentos em que
respondemos aos apelos que nos chegam pelas
mais diversas vias.
Faz todo o sentido evocar neste contexto a
escritora de cuja Obra há alguns anos estou
mais próximo, Maria Gabriela Llansol, e o que
ela escreve num dos seus diários: «Perguntar 'quem sou?' é uma pergunta de escravo;
perguntar 'quem me chama?' é uma pergunta
de homem livre.» Levei algum tempo a
compreender esta verdade, que a princípio me
parecia um tanto contraditória. Hoje reco-
nheço que estamos, particularmente neste
nosso momento histórico, demasiado viciados
no culto do eu, e insistir cegamente na primeira pergunta fecha-nos cada vez mais sobre nós
mesmos. Já a segunda, correctamente entendida, significa a disponibilidade, em liberdade,
para atender aos apelos (escolhendo-os,
naturalmente), e entrar no espírito da «troca
verdadeira». Mais tarde, num caderno inédito
do espólio, Llansol deixa a seguinte anotação:
«Escrever é renunciar infinitamente ao que se
crê ser.» E também outro dos meus autores de
eleição, Walter Benjamin, decidiu um dia,
muito cedo, eliminar a palavra Eu da sua
escrita.
2. O tipo de volume que acabo de receber, em
cuja capa se lê que se trata de uma «Homenagem a...», tem em alemão (uma língua mais
plástica, visual, directa, do que o português)
um nome que me serve também agora:
Festschrift. Os dois elementos que o compõem,
Fest+Schrift, dizem-nos que se trata da escrita
como uma festa, de uma festa da escrita.
Também essa festa se faz com a escrita dos
outros, a que nos alimentou e iluminou; e só
depois com a própria, que dela nasce e com ela
se funde no diálogo do pensamento que ganha
corpo de escrita, e também no métier (que é o
de alguns de nós) da travessia arriscada da re-escrita do outro pela tradução.
Em qualquer dos casos, é sempre uma festa: das ideias, dos sentidos, da descoberta, da mão que escreve, e também – é essa a nossa esperança – a de quem nos lê. Não há festa sem outros, os que connosco con-vivem, nos chamam e por quem chamamos! Entrar nessa festa, ainda no sentido da frase de Llansol, é partilhar um espírito de «liberdade livre» (como um dia disse um poeta nosso).
3. No texto de Brecht que trouxe – o poema, da fase da emigração (escrito em Svendborg, na Dinamarca, em 1937/38), Legende von der Entstehung des Buches Taoteking auf dem Weg des Laotse in die Emigration – vários são os momentos em que me revejo: os que falam do estado do mundo, o gosto de corresponder aos apelos (que são sempre muitos), o velho ditado da «água mole em pedra dura...», a ideia de ensinar como quem respira, sem segredos, o gosto de escrever sete dias a fio, enfim, a vontade ou a necessidade da «emigração».
Em qualquer dos casos, é sempre uma festa: das ideias, dos sentidos, da descoberta, da mão que escreve, e também – é essa a nossa esperança – a de quem nos lê. Não há festa sem outros, os que connosco con-vivem, nos chamam e por quem chamamos! Entrar nessa festa, ainda no sentido da frase de Llansol, é partilhar um espírito de «liberdade livre» (como um dia disse um poeta nosso).
3. No texto de Brecht que trouxe – o poema, da fase da emigração (escrito em Svendborg, na Dinamarca, em 1937/38), Legende von der Entstehung des Buches Taoteking auf dem Weg des Laotse in die Emigration – vários são os momentos em que me revejo: os que falam do estado do mundo, o gosto de corresponder aos apelos (que são sempre muitos), o velho ditado da «água mole em pedra dura...», a ideia de ensinar como quem respira, sem segredos, o gosto de escrever sete dias a fio, enfim, a vontade ou a necessidade da «emigração».
Também eu fiz uma dupla emigração, primeiro
real, quando resolvi sair deste país, na altura
cinzento e salazarento, e fui dar a Hamburgo,
decidindo com isso o meu futuro percurso; e,
desde há algum tempo, também uma «innere
Emigration», uma emigração interior que me
tem levado a retirar-me progressivamente do
espaço público, sem com isso desistir de fazer
o que me parece ter sentido para que alguns,
eventualmente, se encontrem a si próprios
neste mundo – sem lhe darem excessiva
importância.
Só uma palavrinha no poema me não assenta bem, mas não pude evitá-la na tradução: o sábio. Certíssima para Lao Tse, völlig fehl am Platz, totalmente desajustada para mim – e para este nosso tempo, que desaprendeu toda a sabedoria, e muito menos sabe o que é a sageza. Como no caso de Brecht, poderíamos dizer que das Wissen (und noch mehr das Besserwissen) blüht, die Weisheit ist schwächlich, deutlich im Kurs gefallen. Para cruzar Benjamin com Brecht: o 'saber' impera (e ainda mais o querer saber melhor que os outros, o 'chico-espertismo', hoje globalizado!), a sabedoria e a 'experiência' (como lembra Benjamin nos mesmos anos do poema de Brecht) andam muito por baixo, e a sua cotação é fraca!
Só uma palavrinha no poema me não assenta bem, mas não pude evitá-la na tradução: o sábio. Certíssima para Lao Tse, völlig fehl am Platz, totalmente desajustada para mim – e para este nosso tempo, que desaprendeu toda a sabedoria, e muito menos sabe o que é a sageza. Como no caso de Brecht, poderíamos dizer que das Wissen (und noch mehr das Besserwissen) blüht, die Weisheit ist schwächlich, deutlich im Kurs gefallen. Para cruzar Benjamin com Brecht: o 'saber' impera (e ainda mais o querer saber melhor que os outros, o 'chico-espertismo', hoje globalizado!), a sabedoria e a 'experiência' (como lembra Benjamin nos mesmos anos do poema de Brecht) andam muito por baixo, e a sua cotação é fraca!
Antes da Lenda de Brecht, apenas três
pequenos poemas de um outro dos meus
autores, esses sim, fruto de muita sabedoria:
os do Goethe das Zahme Xenien (Xénias
Mansas), poemas irónicos, por vezes atravessados já por uma certa melancolia, de uma
fase adiantada da vida, que traduzi em tempos
para a edição que fiz também da sua poesia:
Que levo quando me for?
Nunca fui escravo de Ismos,
Fui sempre o eterno amador.
*
«Tão calado e pensativo!
Tens algum problema? Qual?»
Eu estou satisfeito, amigo,
Mas assim sinto-me mal!
*
Como irei eu partilhar
A vida entre fora e dentro,
Se a todos tudo quero dar
Para viver sob um só tecto?
Toda a vida tenho escrito
E assim, meus caros, me divido,
Sou sempre um só, e não minto.
E agora, finalmente, Brecht:
Bertolt Brecht
LENDA DA ORIGEM DO LIVRO DO TAOTEKING
INDO LAO TSE A CAMINHO DA EMIGRAÇÃO
[Svendborg, 1937/38]
1
Ao entrar nos setenta, a carcaça cansada,
Precisava de descanso o professor –
No país, para variar, a bondade era nada
E a maldade, é claro, voltava a prosperar.
Atou os sapatos, pronto para desandar.
2
Meteu no saco tudo o que precisava:
Pouco. Mas ainda assim alguma coisa havia.
O cachimbo que à noite sempre fumava
E o livrinho que há muito tempo lia.
E pão de trigo a olho, para o dia a dia.
Sou sempre um só, e não minto.
E agora, finalmente, Brecht:
Bertolt Brecht
LENDA DA ORIGEM DO LIVRO DO TAOTEKING
INDO LAO TSE A CAMINHO DA EMIGRAÇÃO
[Svendborg, 1937/38]
1
Ao entrar nos setenta, a carcaça cansada,
Precisava de descanso o professor –
No país, para variar, a bondade era nada
E a maldade, é claro, voltava a prosperar.
Atou os sapatos, pronto para desandar.
2
Meteu no saco tudo o que precisava:
Pouco. Mas ainda assim alguma coisa havia.
O cachimbo que à noite sempre fumava
E o livrinho que há muito tempo lia.
E pão de trigo a olho, para o dia a dia.
3
Uma vez mais o vale o fez feliz, logo o
esqueceu
Ao entrar na montanha, que subia.
E o boi, feliz também, erva fresca comeu
Ruminando, e com o velho no lombo, lá ia_____
Que este, se tinha pressa, não se via.
4
Ao quarto dia, porém, entre penedos,
Um guarda aduaneiro os fez parar:
«Valores a declarar?» – «Não tenho segredos!»
E o rapaz-guia do boi: «Mais não fez que ensinar!»
E tanto bastou para se explicar.
5
Mas o homem, entre excitado e atento,
Ainda perguntou: «E a que conclusões chegou?»
Diz o rapaz: «Que a água mole em movimento
Com o tempo a pedra dura dominou.
Estás a ver: o que era poderoso cedeu.»
Ao entrar na montanha, que subia.
E o boi, feliz também, erva fresca comeu
Ruminando, e com o velho no lombo, lá ia_____
Que este, se tinha pressa, não se via.
4
Ao quarto dia, porém, entre penedos,
Um guarda aduaneiro os fez parar:
«Valores a declarar?» – «Não tenho segredos!»
E o rapaz-guia do boi: «Mais não fez que ensinar!»
E tanto bastou para se explicar.
5
Mas o homem, entre excitado e atento,
Ainda perguntou: «E a que conclusões chegou?»
Diz o rapaz: «Que a água mole em movimento
Com o tempo a pedra dura dominou.
Estás a ver: o que era poderoso cedeu.»
6
Para não perderem o sol derradeiro
O rapaz espicaçou o boi e
O grupo dos três dava a volta ao pinheiro
Quando o nosso homem acorda, e mesmo ali
Grita: «Alto lá! Pára aí!
7
Que história é essa, velho, da água vencedora?»
O velho parou: «Queres saber?»
E o homem: «Eu sou um simples guarda, mas agora
Esta de quem vence quem dá que pensar.
Se sabes a resposta, terás de ma dar!
8
Escreve o que sabes! Dita-o aqui ao rapaz!
Coisas dessas não se levam deste mundo.
Temos papel e tinta, e muito me apraz
Dar-te ceia. Eu moro ali ao fundo.
E então? É pedir muito?»
9
Por sobre o ombro, o velho olhou
Para o homem: casaco remendado, sapatos nenhum.
Para não perderem o sol derradeiro
O rapaz espicaçou o boi e
O grupo dos três dava a volta ao pinheiro
Quando o nosso homem acorda, e mesmo ali
Grita: «Alto lá! Pára aí!
7
Que história é essa, velho, da água vencedora?»
O velho parou: «Queres saber?»
E o homem: «Eu sou um simples guarda, mas agora
Esta de quem vence quem dá que pensar.
Se sabes a resposta, terás de ma dar!
8
Escreve o que sabes! Dita-o aqui ao rapaz!
Coisas dessas não se levam deste mundo.
Temos papel e tinta, e muito me apraz
Dar-te ceia. Eu moro ali ao fundo.
E então? É pedir muito?»
9
Por sobre o ombro, o velho olhou
Para o homem: casaco remendado, sapatos nenhum.
Testa cheia de rugas. E pensou:
Não, não era um vencedor, aquele ali, meio nu.
E murmurou: «É só mais um!»
10
Era velho de mais, o velho, para dizer
Não a um pedido tão cortês.
E disse alto e bom som: «Temos de responder
Aos que perguntam.» E o rapaz: «A noite cai, esfria, como vês.»
«Então paramos aqui, mais esta vez.»
11
Já do seu boi o sábio se apeava
E durante sete dias a dois escreveram.
E o guarda trazia a comida (e em voz baixa praguejava
Com os contrabandistas enquanto ali estiveram).
Até que um dia terminaram.
12
E uma bela manhã o rapaz entregou
Ao guarda as sábias sentenças – oitenta e uma.
E agradecendo a merenda que levou
Não, não era um vencedor, aquele ali, meio nu.
E murmurou: «É só mais um!»
10
Era velho de mais, o velho, para dizer
Não a um pedido tão cortês.
E disse alto e bom som: «Temos de responder
Aos que perguntam.» E o rapaz: «A noite cai, esfria, como vês.»
«Então paramos aqui, mais esta vez.»
11
Já do seu boi o sábio se apeava
E durante sete dias a dois escreveram.
E o guarda trazia a comida (e em voz baixa praguejava
Com os contrabandistas enquanto ali estiveram).
Até que um dia terminaram.
12
E uma bela manhã o rapaz entregou
Ao guarda as sábias sentenças – oitenta e uma.
E agradecendo a merenda que levou
Foi-se o sábio, e passou o pinheiro na bruma.
Dizei: haverá maior bondade, em suma?
13
Mas não louvemos só o sábio que um dia
Viu o seu nome na capa do livrinho!
Há que arrancar ao sábio a sua sabedoria.
Louve-se o guarda que encontrou esse caminho –
Sem ele, o saber ficaria sozinho!
Dizei: haverá maior bondade, em suma?
13
Mas não louvemos só o sábio que um dia
Viu o seu nome na capa do livrinho!
Há que arrancar ao sábio a sua sabedoria.
Louve-se o guarda que encontrou esse caminho –
Sem ele, o saber ficaria sozinho!
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