«UMA INQUIETA CERTEZA...» (4)
A NATUREZA E A PAISAGEM
A POESIA E A PINTURA
(Um tema impossível, com Ilda David' — Tábuas de pedra — e Turner em fundo)
Paisagens do mundo e da alma
Lembro alguma poesia focalizada no mundo, dado sob a forma das suas paisagens (imagens culturalizadas da natureza) e dos seus lugares (projecções ou manifestações da «alma» de um Eu que os habita). Em todos, a natureza é metonimicamente dada.
Em Torga, por exemplo, pela Terra (mais concretamente: terra da Ibéria, do Douro, da Galafura...). Aparentemente, também pelo Mar: mas o mar é o Outro da Terra, o espinho ibérico de Torga.
Em Sophia, pelo Mar, arquétipo do ser inteiro (Grécia/Mediterrâneo); ou símbolo civilizacional de um «projecto» (o Atlântico português, que não me interessa aqui, porque é civilização, não natureza: leia-se, de Sophia, Ilhas).
Em João Miguel Fernandes Jorge ou, melhor exemplo, Ruy Cinatti: pela Ilha (os Açores ou Timor). Aí, a natureza historiza-se, natureza, mito e cultura confundem-se, o Eu ausenta-se mais do que em Torga e Sophia, que são mais «órficos». Nem num nem no outro caso a ilha é lugar de idílio, nem tão pouco metáfora, como nos exemplos que Rui Coias vem comentando no seu blog.
Não levo em conta a prosa (embora ela faça parte de um projecto global, mais «inteiro», de Torga na sua relação com Terra e Natureza). Mas associo à temática da Natureza um aspecto particular, que serve o tratamento desta matéria (Terra-Mar): a vertente do Iberismo, em que a terra da Ibéria é o centro de um «nacionalismo sem nação», todo só «coração, mito e chão» (é a Pátria no sentido ciceroniano: patria est ubicumque est bene).
De facto, nos Poemas Ibéricos a metonímia da terra (= chão) para a Ibéria (ou da Ibéria para a Terra?) é um leitmotiv proliferante, «palavra-semente», lugar e agente de uma «História Trágico-telúrica» (título de uma secção): na relação terra-Homem assume-se a estrutura do trágico; a terra é raiz/semente/chão «duro e ruim», mas de que não se descrê, é pólo de tensão trágica: em si mesma, e na permanente relação com o Mar. No poema «Ibéria» lê-se:
[...]
Terra-tumor-de-angústia de saber
Se o mar é fundo e ao fim deixa passar...
Uma antena da Europa a receber
A voz do longe que lhe quer falar...
Terra de pão e vinho
(A fome e a sede só virão depois,
Quando a espuma salgada for caminho
Onde um caminha desdobrado em dois).
[...]
São três as dimensões da terra em Torga:
— Telúrica: a mais evidente:
A Terra
Como ondulada capa de miséria
A cobrir de negrura a cor das chagas,
Assim és tu, crosta de velhas fragas
Sobre o corpo da Ibéria.
— Marítima: o mar é como que outra metáfora da terra, o seu prolongamento na Ibéria? Sim, mas não um prolongamento natural, antes sempre motivo de tensão, angústia, tragicidade: «Quando chegar a hora decisiva, / Procurem-me nas dunas, dividido / Entre o mar e a terra. / Marujo e cavador, tanto me quer a espuma / Como a folhagem.». A tensão Terra-Mar é dada nos poemas por uma relação positivo-negativo, e a terra sai dessa tensão com sinal de mais — o mar é, quando muito, uma esperança, a terra é uma certeza: «Marujo e cavador, terei o mar inteiro / Das esperanças humanas, / E a terra universal / Da redonda e alada perfeição.»
— Espiritual: a dimensão do céu, esse sim, o verdadeiro prolongamento da terra. Mas as grandes figuras da terra (portuguesa e espanhola) são mais da terra que do céu, mesmo quando muito espiritualizadas (vd. «Santa Teresa» e as invocações à terra no começo de cada estrofe desse longo poema; e Viriato, que «namora o chão em vez do céu»).
Nesta poesia, Mar é arquétipo do ser inteiro, e metonímia de Natureza no seu mais amplo sentido. Há, é claro, outras figuras para Natureza, não tão presentes, e só naturais por contágio: casa, cal, campo. Por isso, é ao mar que se associa:
1- uma visão do mundo (e uma forma muito particular de religiosidade):
Surgem aqui as grandes obsessões, os Leitmotive de Sophia, que a levam a escrever muitas vezes «o mesmo» poema, convergindo em algumas figuras dominantes: origens, início, o (Ser) inteiro/limpo, os elementos, e o poema como entidade mítica que é tudo isso («E os poemas serão o próprio ar»):
Como o rumor do mar dentro de um búzio
O divino sussurra no universo
Algo emerge: primordial projecto
2- uma poética (e um ideal de vida (cf. «Tolon»): e as duas coisas não se distinguem, nisto Sophia é como Hölderlin (ou Rilke, que conhece mais): Ser é ser poeticamente. A poética de Sophia (vd. «Arte Poética» I-V) é uma metafísica da arte/da poesia, uma religião e uma ética, revelando o seu sentido clássico, grego, apegado à crença numa Totalidade última: «A beleza não existe em si, mas é apenas o rosto, a forma, o sinal de uma verdade...».
O mundo da verdade poética (das coisas, do Ser) contrasta com o mundo comum lá fora, «onde a aliança foi quebrada», mundo não «religado», um habitat mas não um reino; e «o reino é o que buscamos nas praias do mar verde». No fundo, uma poética romântica (do poema como dádiva, epifania), não moderna (do poema como artefacto, construção mental). Há em Sophia ainda uma mitologia organicista, órfica: na importância atribuída à nomeação e na noção do poema como natureza, utopia e resto.
3- uma metafísica dos «deuses exilados» e do mundo às escuras, dos dias des-sacralizados. Resta a arte, numa postura, ainda, de romantismo puro.
O «exílio dos deuses» é tema dominante: exílio de uma utopia de vida inteira, primordial, como em Hölderlin, na sua imagem ideal da Grécia. Mas em Sophia não se encontra a figura do «Deus por vir» do poeta alemão, porque os dias foram quase irremediavalmente des-sacralizados — mas há a arte:
Projecto II
[...]
Porém restam
Do quebrado projecto de sua empresa em ruína
Canto e pranto clamor palavras harpas
Que de geração em geração ecoam
Em contínua memória de um projecto
Que sem cessar de novo tentaremos.
(O Nome das Coisas, 1977)
Este grande tema engloba muitos outros: a Hélade, a casa, a cal, a arte, o Mar. Tudo lugares de re-ligação com um sentido primeiro e último das coisas, lugares de um possível regresso a casa, num tempo de exílio da casa, do Ser e da linguagem como casa do Ser.
O Mar em Sophia é, desde sempre, um desses lugares do princípio, força maior da natureza, «limpo e liso», inteiro, lugar sagrado (o Mar como utopia). Mas há também a visão cultural/civilizacional do mar como estrada da civilização, senda da navegação e das descobertas (das «Ilhas»): ciclos inteiros, ou mesmo livros se ocupam desta outra vertente, num evidente paralelo com a Mensagem de Pessoa. As duas encontram-se talvez, mais tarde, num livro como O Búzio de Cós.
(continua)
Em Torga, por exemplo, pela Terra (mais concretamente: terra da Ibéria, do Douro, da Galafura...). Aparentemente, também pelo Mar: mas o mar é o Outro da Terra, o espinho ibérico de Torga.
Em Sophia, pelo Mar, arquétipo do ser inteiro (Grécia/Mediterrâneo); ou símbolo civilizacional de um «projecto» (o Atlântico português, que não me interessa aqui, porque é civilização, não natureza: leia-se, de Sophia, Ilhas).
Em João Miguel Fernandes Jorge ou, melhor exemplo, Ruy Cinatti: pela Ilha (os Açores ou Timor). Aí, a natureza historiza-se, natureza, mito e cultura confundem-se, o Eu ausenta-se mais do que em Torga e Sophia, que são mais «órficos». Nem num nem no outro caso a ilha é lugar de idílio, nem tão pouco metáfora, como nos exemplos que Rui Coias vem comentando no seu blog.
Torga:
Não levo em conta a prosa (embora ela faça parte de um projecto global, mais «inteiro», de Torga na sua relação com Terra e Natureza). Mas associo à temática da Natureza um aspecto particular, que serve o tratamento desta matéria (Terra-Mar): a vertente do Iberismo, em que a terra da Ibéria é o centro de um «nacionalismo sem nação», todo só «coração, mito e chão» (é a Pátria no sentido ciceroniano: patria est ubicumque est bene).
De facto, nos Poemas Ibéricos a metonímia da terra (= chão) para a Ibéria (ou da Ibéria para a Terra?) é um leitmotiv proliferante, «palavra-semente», lugar e agente de uma «História Trágico-telúrica» (título de uma secção): na relação terra-Homem assume-se a estrutura do trágico; a terra é raiz/semente/chão «duro e ruim», mas de que não se descrê, é pólo de tensão trágica: em si mesma, e na permanente relação com o Mar. No poema «Ibéria» lê-se:
[...]
Terra-tumor-de-angústia de saber
Se o mar é fundo e ao fim deixa passar...
Uma antena da Europa a receber
A voz do longe que lhe quer falar...
Terra de pão e vinho
(A fome e a sede só virão depois,
Quando a espuma salgada for caminho
Onde um caminha desdobrado em dois).
[...]
São três as dimensões da terra em Torga:
— Telúrica: a mais evidente:
A Terra
Como ondulada capa de miséria
A cobrir de negrura a cor das chagas,
Assim és tu, crosta de velhas fragas
Sobre o corpo da Ibéria.
— Marítima: o mar é como que outra metáfora da terra, o seu prolongamento na Ibéria? Sim, mas não um prolongamento natural, antes sempre motivo de tensão, angústia, tragicidade: «Quando chegar a hora decisiva, / Procurem-me nas dunas, dividido / Entre o mar e a terra. / Marujo e cavador, tanto me quer a espuma / Como a folhagem.». A tensão Terra-Mar é dada nos poemas por uma relação positivo-negativo, e a terra sai dessa tensão com sinal de mais — o mar é, quando muito, uma esperança, a terra é uma certeza: «Marujo e cavador, terei o mar inteiro / Das esperanças humanas, / E a terra universal / Da redonda e alada perfeição.»
— Espiritual: a dimensão do céu, esse sim, o verdadeiro prolongamento da terra. Mas as grandes figuras da terra (portuguesa e espanhola) são mais da terra que do céu, mesmo quando muito espiritualizadas (vd. «Santa Teresa» e as invocações à terra no começo de cada estrofe desse longo poema; e Viriato, que «namora o chão em vez do céu»).
Sophia:
Nesta poesia, Mar é arquétipo do ser inteiro, e metonímia de Natureza no seu mais amplo sentido. Há, é claro, outras figuras para Natureza, não tão presentes, e só naturais por contágio: casa, cal, campo. Por isso, é ao mar que se associa:
1- uma visão do mundo (e uma forma muito particular de religiosidade):
Surgem aqui as grandes obsessões, os Leitmotive de Sophia, que a levam a escrever muitas vezes «o mesmo» poema, convergindo em algumas figuras dominantes: origens, início, o (Ser) inteiro/limpo, os elementos, e o poema como entidade mítica que é tudo isso («E os poemas serão o próprio ar»):
Como o rumor do mar dentro de um búzio
O divino sussurra no universo
Algo emerge: primordial projecto
2- uma poética (e um ideal de vida (cf. «Tolon»): e as duas coisas não se distinguem, nisto Sophia é como Hölderlin (ou Rilke, que conhece mais): Ser é ser poeticamente. A poética de Sophia (vd. «Arte Poética» I-V) é uma metafísica da arte/da poesia, uma religião e uma ética, revelando o seu sentido clássico, grego, apegado à crença numa Totalidade última: «A beleza não existe em si, mas é apenas o rosto, a forma, o sinal de uma verdade...».
O mundo da verdade poética (das coisas, do Ser) contrasta com o mundo comum lá fora, «onde a aliança foi quebrada», mundo não «religado», um habitat mas não um reino; e «o reino é o que buscamos nas praias do mar verde». No fundo, uma poética romântica (do poema como dádiva, epifania), não moderna (do poema como artefacto, construção mental). Há em Sophia ainda uma mitologia organicista, órfica: na importância atribuída à nomeação e na noção do poema como natureza, utopia e resto.
3- uma metafísica dos «deuses exilados» e do mundo às escuras, dos dias des-sacralizados. Resta a arte, numa postura, ainda, de romantismo puro.
O «exílio dos deuses» é tema dominante: exílio de uma utopia de vida inteira, primordial, como em Hölderlin, na sua imagem ideal da Grécia. Mas em Sophia não se encontra a figura do «Deus por vir» do poeta alemão, porque os dias foram quase irremediavalmente des-sacralizados — mas há a arte:
Projecto II
[...]
Porém restam
Do quebrado projecto de sua empresa em ruína
Canto e pranto clamor palavras harpas
Que de geração em geração ecoam
Em contínua memória de um projecto
Que sem cessar de novo tentaremos.
(O Nome das Coisas, 1977)
Este grande tema engloba muitos outros: a Hélade, a casa, a cal, a arte, o Mar. Tudo lugares de re-ligação com um sentido primeiro e último das coisas, lugares de um possível regresso a casa, num tempo de exílio da casa, do Ser e da linguagem como casa do Ser.
O Mar em Sophia é, desde sempre, um desses lugares do princípio, força maior da natureza, «limpo e liso», inteiro, lugar sagrado (o Mar como utopia). Mas há também a visão cultural/civilizacional do mar como estrada da civilização, senda da navegação e das descobertas (das «Ilhas»): ciclos inteiros, ou mesmo livros se ocupam desta outra vertente, num evidente paralelo com a Mensagem de Pessoa. As duas encontram-se talvez, mais tarde, num livro como O Búzio de Cós.
(continua)