02 março, 2007

UM MUNDO SÓ DE COISAS















As coisas, as orgânicas e as inertes, que nos olham depois de as termos fixado, são o espelho de uma força serena e de certezas enigmáticas. Ou do mistério transparente que nos escapa.

Não vacilam, recortam-se nítidas no azul, contra muros brancos. Falam e sabem o que dizem. Não pensam, talvez não sintam, existem. Se são belas, existem, actuam e transformam. Se são vivas, crescem, mudam e morrem.

É melhor estar e viver com elas. Um único ser humano desfigura a sua paisagem, que atravessa o tempo, (i)mutável e muda.
Um único ser humano, uma mente, introduz no mundo a semente da perturbação, da insanidade, do desequilíbrio.

Do medo e da morte. Do medo da morte, também ele um medo absurdo, infundado e insano.

Convivo melhor com o porte íntegro das coisas, na sua pujança ou no seu abandono, dignas, humildes e sem medo.

Estamos a mais neste mundo. As coisas deviam ter direito à existência sem nós. E o mundo seria com certeza melhor.

No reino das coisas incluo também as feitas por mão humana. O seu direito a uma existência límpida e sem fantasmas deveria exigir o nosso desaparecimento depois de as criarmos. E o mundo seria perfeito.


Para entender isto, basta ouvir a música de Bach – ela mesma, sem Bach – ou olhar as telas de Rothko como coisas nascidas do ar.

Ou falar com a pedra onde nos sentamos, com a árvore, com a extensão da planície. Com o silêncio dos peixes que (como diz Musil) deslizam dentro do elemento, único, que os envolve do nascimento à morte.

Nós, pelo contrário, somos seres instáveis, ligados à terra apenas pela ínfima superfície das solas dos pés, e com o corpo suspenso num ar em que, sem apoio, cairíamos, e que violentamos, empurrando-o constantemente diante de nós.
Estamos a mais no universo.


Lembro um poeta como Michael Donhauser e o livrinho de poemas que intitulei Das Coisas (Quetzal, 2000, colecção "Poetas em Mateus"), e que resultou de um dos Seminários de Mateus:



... o amarelo dos muros e os frutos, pendendo cada dia das cercas e dos ramos.
O verde das folhas, um aroma de novo mais frio e quente, e de novo mais longínquo, branco, o seu azul.
Ou num pátio a folhagem que o vento juntou, na sombra.

**



O Arbusto

Ele está, está separado de ti
Em mim tão inerte
Como que extinto,
Levado para o além
E penetrado pela luz
Refracta a luz, em varas, ramos
Não cita nada, somente
Tonalidades, esbranquiçadas, amarelo-claro
E mais pálidas também o verde de Veronese
De modo tão vago como exacto, tão
Fiel à letra, e apesar disso não irresolvido...

**

De manhã ainda noite
A estrada brilha
Grita a andorinha
Clareia o céu
Negros os abetos erguem-se


Sem comentários: