UM MUNDO SÓ DE COISAS
As coisas, as orgânicas e as inertes, que nos olham depois de as termos fixado, são o espelho de uma força serena e de certezas enigmáticas. Ou do mistério transparente que nos escapa.
Não vacilam, recortam-se nítidas no azul, contra muros brancos. Falam e sabem o que dizem. Não pensam, talvez não sintam, existem. Se são belas, existem, actuam e transformam. Se são vivas, crescem, mudam e morrem.
É melhor estar e viver com elas. Um único ser humano desfigura a sua paisagem, que atravessa o tempo, (i)mutável e muda.
Um único ser humano, uma mente, introduz no mundo a semente da perturbação, da insanidade, do desequilíbrio.
Do medo e da morte. Do medo da morte, também ele um medo absurdo, infundado e insano.
Convivo melhor com o porte íntegro das coisas, na sua pujança ou no seu abandono, dignas, humildes e sem medo.
Estamos a mais neste mundo. As coisas deviam ter direito à existência sem nós. E o mundo seria com certeza melhor.
No reino das coisas incluo também as feitas por mão humana. O seu direito a uma existência límpida e sem fantasmas deveria exigir o nosso desaparecimento depois de as criarmos. E o mundo seria perfeito.
Para entender isto, basta ouvir a música de Bach – ela mesma, sem Bach – ou olhar as telas de Rothko como coisas nascidas do ar.
Ou falar com a pedra onde nos sentamos, com a árvore, com a extensão da planície. Com o silêncio dos peixes que (como diz Musil) deslizam dentro do elemento, único, que os envolve do nascimento à morte.
Nós, pelo contrário, somos seres instáveis, ligados à terra apenas pela ínfima superfície das solas dos pés, e com o corpo suspenso num ar em que, sem apoio, cairíamos, e que violentamos, empurrando-o constantemente diante de nós.
Estamos a mais no universo.
Lembro um poeta como Michael Donhauser e o livrinho de poemas que intitulei Das Coisas (Quetzal, 2000, colecção "Poetas em Mateus"), e que resultou de um dos Seminários de Mateus:
... o amarelo dos muros e os frutos, pendendo cada dia das cercas e dos ramos.
O verde das folhas, um aroma de novo mais frio e quente, e de novo mais longínquo, branco, o seu azul.
Ou num pátio a folhagem que o vento juntou, na sombra.
**
O Arbusto
Ele está, está separado de ti
Em mim tão inerte
Como que extinto,
Levado para o além
E penetrado pela luz
Refracta a luz, em varas, ramos
Não cita nada, somente
Tonalidades, esbranquiçadas, amarelo-claro
E mais pálidas também o verde de Veronese
De modo tão vago como exacto, tão
Fiel à letra, e apesar disso não irresolvido...
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De manhã ainda noite
A estrada brilha
Grita a andorinha
Clareia o céu
Negros os abetos erguem-se
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