AS PASSAGENS BRASILEIRAS
Chegou o nº 8 da excelente revista K – Jornal de Crítica, especial sobre a edição brasileira das Passagens de Walter Benjamin, uma grande edição – em mais do que um sentido –, a que já me referi aqui em Janeiro passado. Esta «obra» que não chegou a sê-lo é muitas vezes vista como um paradigma destacado da escrita do fragmento no século XX. Mas, na verdade, não é de fragmentos que se trata aqui. Benjamin não é um autor de fragmentos, na medida em que os estilhaços, maiores ou menores, de pensamento imagético de que se serve não correspondem, nem a uma forma, nem muito menos a um género como o fragmento, exemplarmente documentado com Novalis ou Friedrich Schlegel na revista do primeiro romatismo alemão, a Athenäum. Não encontramos em Benjamin o fragmento enquanto forma, mas é visível no que escreveu aquela «exigência fragmentária» de que fala Blanchot como pressuposto da escrita moderna (para sermos mais exactos, diríamos antes a exigência da obra inacabada, reflexo de um consciência da acção do pensamento como acontecer, não como sistema). E sobretudo não existe na escrita de Benjamin, em conjuntos de textos aparentemente fragmentários – as Passagens, Zentralpark e mesmo Rua de Sentido Único –, o carácter autocentrado que aproxima o fragmento de outra forma muito próxima, mas distinta: o aforismo. O aforismo é apodíctico, entreabre portas para as fechar logo a seguir, enquanto o fragmento é quase sempre uma janela que se abre para outros espaços, existindo apenas num a interdependência com eles.
É apenas neste sentido que Benjamin poderá ser um autor de fragmentos e a «condição textual» da sua Obra a do fragmento, como já escrevi no posfácio à edição portuguesa. Melhor seria dizer, a do estilhaço ou do mosaico à espera de uma arte combinatória que o integre. O fragmentarismo de Benjamin não é autotélico, mas «construtivo» (como defende Detlev Schöttker numa tese de 1999). A imagem que melhor o define não será a do célebre «ouriço fechado sobre si próprio» (F. Schlegel), mas a do continuum (alegórico, isto é, aleatório e não definitivo) em que cada peça vive da relação com todas as outras, sem quaisquer pretensões de constituir uma totalidade. A sua lei não é, como no símbolo e no fragmento-forma, a de uma dimensão eucarística («isto é o meu corpo»), mas, como na montagem surrealista, a de uma tensão metonímica. Nesta dimensão espacial, de contiguidade muitas vezes meramente acumulativa (pelo menos no estado em que, em muitos casos, nos chegou, como nas Passagens e noutros conjuntos fragmentários), a escrita descentra-se, o seu centro é sempre diferido e exterior. Blanchot define também assim a exigência fragmentária moderna, em que os fragmentos constituem «conjuntos furtivos», à deriva, e «são destinados em parte aos brancos que os separam, encontrando neste afastamento, não aquilo que lhes dá fim, mas aquilo que os prolonga ou os faz esperar o que os prolongará, já os prolongou...» E os «brancos», em Benjamin, tanto podem ser os espaços entre estilhaços de texto na página como os hiatos temporais ou os abismos mentais ou temáticos que separam até mesmo ensaios (em alemão Versuche: experiências em aberto) mais ou menos acabados. O melhor exemplo desta prática, que vive da tensão entre a intenção e a obra, serão porventura os textos para o livro nunca concluído sobre Baudelaire e as passagens de Paris. Nesta enorme constelação, a maior de toda a sua obra e a mais incompleta, Benjamin revela-se plenamente, não como autor de fragmentos, mas como autor de obras inacabadas – porque «toda a obra acabada é a máscara mortuária da sua intenção».
É desta constelação que se ocupa o número especial da revista «K» agora saído, que reune colaboração de destacados benjaminianos de S. Paulo – Jeanne-Marie Gagnebin, Márcio Seligmann-Silva e Eduardo Sterzi –, e no qual também figura um ensaio em que eu próprio exploro este complexo da obra benjaminiana em função da actualidade de um dos seus pólos mais marcantes – a cidade e a memória –, já abordado em Lisboa, nas jornadas benjaminianas da Culturgest, em 23 e 24 de Fevereiro passado.
«O forro incandescente e colorido do tempo…»
Benjamin e nós: A cidade, o olhar, a memória
Percepção é leitura
Legível é apenas o que se manifesta na superfície
(W. Benjamin)
O olhar e a memória como método
Parto da noção de «actualidade» num pensamento como o de Walter Benjamin, em particular o que se desenvolve em torno de uma constelação moderna como a da grande cidade e das suas figuras, presente no terceiro volume (A Modernidade) o último publicado, da edição portuguesa das Obras Escolhidas, de minha responsabilidade e tradução, cuja matéria se completa com a das Passagens, saídas na mesma altura em edição brasileira (na edição portuguesa este grande livro corresponderá aos sexto e sétimo volumes).
A noção de actualidade nunca foi para Walter Benjamin a do puro imediatismno ou da novidade, era antes a de um «tempo de Agora» (Jetztzeit) que convoca passado e futuro e tem de se distinguir da mera factualidade. Em rigor, para Benjamin não há presente, e a chamada «actualidade» é, de facto, um não-tempo, «tempo apresado» (gestaute Zeit), sendo, como é, o resultado de um choque que o anula, entre a latência irresolvida que salta de um passado (um Ur-sprung) e o que se nos abre no futuro. Actual não é, então, aquilo que acontece no presente e que muitos vêem e vivem à superfície, mas aquilo que nele actua e promete. Benjamin anota num dos textos sobre Baudelaire que este poeta, cujo único tema foi a cidade de Paris – melhor, as forças, figuras e tipos em acção nela –, escreve para um leitor póstumo, ou seja, entre outros, para nós. E o que ele próprio faz na sua actualidade é seguir esses vestígios de sentido nas ruínas da História para chegar à sua iluminação, não epifânica, mas profana e, à sua maneira, «materialista».
Não é muito fácil ao nosso tempo compreender e seguir este «método». Isto, apesar de este nosso Agora neo-europeu e mundial se ajoelhar, com mais fervor e menos consciência, diante dos mesmos esperpentos ideológicos que Benjamin exorcisou: a mercadoria, o autoproclamado progresso, a barbárie totalitária (hoje, a nova barbárie das guerras globais-locais), o autocomprazimento burguês, a profanização generalizada, isto é, a ausência de sentido do sagrado (um sentido, em última análise, da ordem do estético), que deu lugar à proliferação de superstições, sectarismos e esoterismos mais ou menos consoladores ou salvadores e a religiões de toda a ordem (a começar pelo próprio capitalismo, sustentáculo moderno de uma «teologia da mercadoria» e «a mais extrema das religiões de culto», praticada em permanência e que não redime, mas acumula a culpa à escala universal: veja-se o fragmento «O capitalismo como religião»). Benjamin traça o perfil e a génese de um século, das revoluções burguesas do século XIX às duas grandes guerras do século XX, iluminando na obra de Baudelaire aquilo a que chama fantasmagorias, categoria-chave que lhe permite fazer o levantamento arqueológico e traçar a fisionomia do século XIX, do seu próprio tempo e ainda do nosso (um tempo aparentemente esvaziado de memória e de projecto): as fantasmagorias são sonhos de um «progresso» que Benjamin desconstrói como pesadelo e horizonte sempre diferido da História, e que Baudelaire, num dos poemas em prosa, traduz na imagem sombria de um «fanal obscuro» (ce fanal obscur). A pulsão niilista, em Baudelaire e Benjamin, leva-os a ver o novo que o «progresso» anuncia, ou como sempre-igual, ou carregando consigo o estigma do transitório. Hoje, pelo contrário, o novo é vivido em permanência no seu borbulhar de superfície, sem preocupações de se lhe atribuir sentidos para além da vivência não reflectida. Chegámos ao ponto extremo da «pobreza da experiência», numa vertigem do instante que se manifesta, no século XIX, no jornal, e hoje no paroxismo da informação. As «redes» são o lugar por excelência desse «isolamento da informação em relação à experiência» (W. Benjamin), antes ocupado pelo mosaico desconexo das notícias de jornal.
Fantasmagorias
A fantasmagoria, que tem na mercadoria em todas as suas formas o seu grande paradigma no mundo urbano moderno (e na prostituta a sua mais evidente alegoria na poesia de Baudelaire), é a sombra espectral de manifestações muito concretas, materiais e carregadas de promessas, presentificadas no novo espaço público onde deixou de haver lugar para a vida privada. Por isso ela se retirou definitivamente para o interior da casa burguesa, com a sua ilusão de posse e segurança – uma fantasmagoria hoje totalmente absorvida pelo poder de aglutinação alienante da televisão e da publicidade de um capitalismo do descartável que desconhece a figura do burguês-coleccionador.
A fantasmagoria traz os espectros (phantasma) à praça pública (ágora), como bem lembra Willi Bolle num dos posfácios à edição brasileira das Passagens. É uma noção que se articula explicitamente com os três tópicos de referência deste texto: a cidade, o olhar e a memória, e categoria indissociável de uma série de outras que, em Marx, Nietzsche, Bergson e Freud, marcariam toda uma visão da Modernidade como lugar obsessivo da presença de máscaras, simulacros e espelhos cujo fundo problemático a nossa pós-modernidade iria escamotear ou aligeirar, ao travestizar esses problemas e essas obsessões: a ideologia e o carácter de fetiche da mercadoria (em Marx), as ilusões da linguagem e do sujeito (em Nietzsche), a «memória involuntária» (em Bergson e Proust), o inconsciente e o próprio conceito da «estranheza inquietante» (das Unheimliche) em Freud. Tudo isto se potenciou hoje, no universo fantasmagórico real-irreal das existências num mundo totalmente urbanizado e sujeito à acção de forças invisíveis e obscuras. Nunca o Lebenswelt («mundo da vida») foi tão dominado por abstracções, nunca os corpos se sujeitaram tanto à violência sem rosto dos sistemas, nunca as consciências se viram tão enredadas no confuso labirinto das redes.
Tensões
Benjamin descobre já tudo isto, em gérmen, nos ensaios sobre Baudelaire e a Paris do século XIX. E encontra, como sempre, a forma e o método adequados para trazer à luz, nos moldes de um pensamento imagético e de uma armadura alegórica, algumas das grandes fantasmagorias do século no quadro da grande cidade nascente. O seu método pretende ser deíctico e não discursivo, demonstrativo e não argumentativo. É o método da «montagem literária» usado nas Passagens, nos fragmentos de Zentralpark e também já em Rua de Sentido Único, e que Benjamin sintetiza na afirmação lapidar: «Não tenho nada para dizer. Apenas para mostrar.» É um método de «actualização», de presentificação sensível, segundo uma lógica dos extremos que melhor pode abarcar as constelações contraditórias na análise da metrópole parisiense em fase de grandes transformações (ou da Berlim dos anos de entre as guerras, explodindo de modernidade e chocando o «ovo da serpente»): a cidade e a paisagem, o exterior e o interior, a racionalidade e o mito, o capitalismo e os mundos oníricos, a técnica e a nostalgia, mas humanizando dialecticamente o seu ponto de vista ao fazer da cidade a morada possível do homem moderno e o seu inferno, lugar de tipos humanos «heróicos» (o trapeiro, o flâneur, a prostituta, a lésbica, o delinquente…) em luta com a mercantilização, a massificação e a quase petrificação da cidade em alegorias.
Estamos perante o grande e aparente paradoxo das tensões polarizadas que alimentam grande parte da modernidade, dos seus autores, pensadores e construtores de cidades (a que noutro lugar chamei o «espinho de Sócrates», espinho do intelecto cravado numa predisposição vitalista e sensível). A natureza mutante do momento histórico focalizado, entre a Revolução de Julho (1830) e a Comuna de Paris (1871), permitirá a Walter Benjamin, com Baudelaire, ter uma visão do moderno (e da cidade moderna) que não pode prescindir do antigo, o seu reverso dialéctico, como uma superfície que esconde um fundo, uma aparência que remete para uma essência a desocultar, hoje reduzida a uma não-dialéctica das aparências e dos simulacros (cf. J. Barrento, «Dialéctica das aparências», in: A Escala do meu Mundo, Assírio & Alvim, 2006, pp. 113-114). O processo, que permite leituras não historicistas e não positivistas, é descrito por Benjamin num fragmento das Passagens como um «virar para fora o forro incandescente e colorido do tempo» (D 2a, 1). Esta ambivalência dialéctica e produtiva, tanto em Baudelaire como em Benjamin, entre Antiguidade e Modernidade permitirá descobrir, na dobra desse forro, um dos traços essenciais da grande cidade: a sua transitoriedade, a «mimese da morte», que se tornará avassaladora em movimentos modernos do século XX como o Expressionismo (mas também, com menor violência, em textos como o Livro do Desassossego), e chegará aos nossos dias. Hoje, a grande ameaça da petrificação, da mimese da morte nas grandes cidades, está presente em dois fenómenos à escala global: o do pesadelo distópico do «cimêncio», esse «sono profundo dos arredores» betonados, essa «tundra suburbana de paisagens indiscriminadas», que os autores de um livro recente com este título (Cimêncio, de Diogo Lopes e Nuno Cera, de 2002) consideram «a medida da época»; e o da crescente paralização do movimento, o grande paradoxo da cultura do automóvel. Esta atitude ambivalente em relação às promessas e aos perigos da grande cidade, que parte de Baudelaire, atravessa a modernidade do século XX e continua presente hoje, traça um arco tenso que vai da mais radical demonização (de Georg Simmel aos Expressionistas e da Metropolis de Fritz Lang aos arautos das distopias contemporâneas) ao mais cego fascínio (dos Futuristas a Alfred Döblin e às utopias urbanas futurantes de Yona Friedmann, Paolo Soleri ou o grupo Archigram). Podíamos dizer também que se trata da tensão entre o ver (sinais) e o ler (fundos ocultos), que Benjamin desenvolve numa série de fragmentos sobre a percepção, que não posso abordar aqui.
O trabalho do flâneur
Virar para fora o forro do tempo é acima de tudo o trabalho do flâneur melancólico, um trabalho do olhar e da rememoração sobre a superfície do mundo (da cidade, o único possível no âmbito da Modernidade) cheia de sinais opacos. Com o flâneur, «a inteligência familiariza-se com o mercado» – um casamento impensável hoje! – e «o prazer de olhar celebra o seu triunfo», que é também o triunfo da «distracção», motivo central da experiência da cidade (e não apenas dela, mas também do cinema) em Benjamin. Como se, aquém e além da observação atenta (que é mais a do «detective»), fosse a própria cidade a tornar-se sujeito activo da experiência e a agir sobre o flâneur distraído e atento, absorto e disponível. Benjamin antecipa já o fim deste estado de coisas, a morte da flânerie, ao ver no flâneur uma figura que anuncia «o mal-estar dos habitantes futuros das nossas metrópoles» – nós próprios, transeuntes motorizados e alienados das ruas das cidades de hoje, numa pós-modernidade desencantada, não no sentido que Max Weber deu à expressão Entzauberung der Welt, antes no de um tédio inconsciente (e não cultivado, como o spleen de Baudelaire) ou de um entusiasmo artificial que dominam as massas acomodadas e auto-satisfeitas, em existências sem exterior, sem contraponto reactivo. O flâneur de Baudelaire, esse «botânico do asfalto», figura própria de «povos com imaginação» e de épocas que conhecem o tempo que se evola das coisas, a aura temporal que lhes amplifica os sentidos, protesta ainda com o seu passo de tartaruga contra a divisão do trabalho (e será vencido pelo taylorismo).
O shopping de hoje não é a passage: os próprios nomes o dizem, nas suas origens anglo-saxónica e parisiense. Num compra-se e vende-se, no espírito de um pragmatismo do ganho que impede o olhar livre sobre as coisas, na outra flana-se, alimenta-se o olhar, o desejo e a imaginação. No grande armazém e no centro comercial um interior gigantesco transforma-se em exterior, modelo reduzido da quadrícula da cidade moderna. Aí, a atracção fatal da «alma da mercadoria» consegue transformar o próprio flâneur em comprador. O consumo desconhece a durée e provoca o declínio da aura do objecto, porque não sabe retribuir o olhar: «Ter a experiência da aura de um fenómeno» – diz Benjamin – «significa dotá-lo da capacidade de retribuir o olhar.» A aura dos objectos na flânerie, aliás, rapidamente se esfuma e transforma: perde o carácter único e ganha a face do sempre-igual e repetitivo. Benjamin diagnostica (com a ajuda de Nietzsche e Blanqui) esta transformação ainda no século XIX, com o fracasso da Comuna de Paris em 1871. Um dos resultados mais impressionantes desse fracasso é a cosmovisão infernal de Blanqui (em L'éternité par les astres, 1872), com a sua perspectiva niilista, grande síntese de todas as fantasmagorias do século numa especulação última de carácter cósmico, que desmistifica a ideia de progresso e de modernidade como ilusão da História. O nosso niilismo, o spleen dos subúrbios, é diferente do de Baudelaire, que Benjamin via como «o sentimento da catástrofe permanente». O nosso é menos ambicioso, dispensa a filosofia da História e confunde-se com a revolta dos excluídos. A nova flânerie é nocturna e violenta, desesperada e ressentida. O seu móbil já não é o da experiência do olhar (embora se continue o culto da deriva, mas agora na horda, no gang). Este spleen remete para outros horizontes, e tem outras implicações que vão para além de meros «exercícios da visão». Impõe à política e ao pensamento arquitectónico e urbanístico de hoje um compromisso com a história e com o humano, que se verá, ou realizado ou abortado. E o resultado será, ou um campo de ruínas, ou uma paisagem-outra. A cidade actual, em que o cerne histórico se esvazia (à noite) e os subúrbios são desertos (de dia), é uma paisagem sem a medida humana (de que fala o fragmento de Hölderlin «Em azul ameno…» e que, de outro modo, os novos tipos humanos ainda emprestam à Paris de Baudelaire), um território marcado por um duplo vazio. Benjamin fala de um novo mundo a nascer das ruínas da velha cidade. Nós só podemos falar de um mundo em devir para o incerto, neste momento final de uma modernidade que a si mesma se superou para entrar na fase da sua decadência – que sempre marcou a ponta final das chamadas «grandes épocas» e dos grandes impérios. No mundo contemporâneo vive-se imerso em bunkers artificiais, «bolhas» estanques (como sugere o filósofo Peter Sloterdijk), grandes catacumbas feéricas da mercadoria glamorosa e desalmada. Ou, para os novos protagonistas migrantes da vida «heróica» da grande cidade de hoje, na féerie (nada dialéctica) da noite – uma das grandes fantasmagorias, i.e. ilusões de vida, do nosso tempo.
As formas da memória
Volto à imagem do «forro incandescente do tempo» e à dialéctica do ver (indícios) e ler (sentidos possíveis), chave da alegoria em Walter Benjamin, e um trabalho da memória através do olhar que fundamenta o interesse renovado de Baudelaire pela alegoria como sendo de ordem «óptica» e não linguística. Esse trabalho plasma-se, nos textos maiores de Benjamin sobre cidades, ou sobre «a superfície absoluta do mundo» e da sua História, em três formas particulares de memória que correspondem a diferentes faces e fases do olhar sobre cidades – a Paris de Baudelaire, objecto do arqueólogo da Modernidade, alfobre urbano de tipos humanos modernos e «heróicos»; a Berlim de 1900, labirinto de derivas interiores e exteriores da memória transfiguradora da infância; e a outra Berlim, a dos anos vinte da gestação da barbárie, cenário febril de encontros inesperados, entre a casa burguesa (que será também o centro de Infância Berlinense: 1900) e o dinamismo social de um momento histórico de grandes mudanças, como o encontramos também na obra fotográfica de August Sander ou sociológica de Siegfried Kracauer.
A cada uma destas faces correspondem formas de escrita próprias: o ensaio sociológico que opera – de forma insuficiente e não convincente, no dizer de Adorno, que nos anos trinta não entendeu o método de Benjamin – a mediação entre manifestações da base social e económica e a superestrutura da criação poética de Baudelaire; o método do «escavar e recordar», próprio da escrita das memórias que, longe de se limitarem a fazer o «inventário dos achados», assinalam, «no terreno do presente, o lugar exacto em que se guardam as coisas do passado»; e a montagem surrealista. E de cada forma de escrita emerge uma forma própria de memória: a da infância, alimentada sobretudo pela imaginação (uma forma de memória projectiva sobre uma infância vivida em espaços protegidos, mas num «diálogo permanente com a morte», provável reflexo da obsessão do suicídio nos anos de escrita de Infância Berlinense: 1900); a memória involuntária do flâneur, alimentada pelo olhar que descobre nos pormenores, em lugares de passagem, vestígios férteis do passado e da sua própria experiência; e finalmente, a um nível outro em que o mundo funciona como superfície absoluta da História, a memória crítica do sujeito dessa História, tal como a encontramos nas Teses «Sobre o conceito da História» e em alguns outros fragmentos: esta é a memória da catástrofe, a que continuamos a chamar progresso. Em qualquer dos casos, as configurações do acto de rememorar (Erinnerung e não Gedächtnis, lembrança viva e não arquivo) em Benjamin não se mostram recuperáveis pela vaga de teorias actuais de uma «memória cultural» identitária, como armazém disponível de dados do passado. O instrumento do trabalho sobre o passado (a lembrança subjectiva) em Benjamin é a escrita, e tem vida e imperativos próprios. Não é o sujeito que dispõe da sua memória, é a sua memória (involuntária, recordação ou rememoração, presentificação anamnésica) que dispõe dele, sob as mais diversas formas e nas mais diversas linguagens.
Perguntas: Benjamin e nós
Aparentemente, não podíamos estar mais distantes da experiência e da visão da grande cidade nos escritos de Benjamin, que a captam na hora do seu nascimento para a Modernidade na Paris do século XIX. Mas não há dúvida de que ainda somos, em vários aspectos, herdeiros das imagens da cidade em Walter Benjamin.
Escrever a história do pensamento (e da escrita) da modernidade urbana nos últimos duzentos anos significa – diria Benjamin – «dar às datas a sua fisionomia». As datas significativas deste percurso são a segunda metade do século XIX, os anos entre as Grandes Guerras do século XX e a nossa actualidade. Se tivéssemos de responder à pergunta: «Vimos dessas origens?», a resposta teria de ser afirmativa. O que de mais intrínseco existe na civilização urbana de hoje participa ainda desses começos: na dialéctica dos opostos (hoje: local-global); no ciclo etrernamente igual da mercadoria; em formas próprias de melancolia e escrita alegórica em alguns poetas contemporâneos da realidade urbana e da História; nos tipos «heróicos» da fauna parisiense que povoam a poesia de Baudelaire e que regressaram para lutar por um estatuto de reconhecimento, e marcam a vida da cidade moderna (a lésbica e o homossexual, o sem-abrigo e a prostituta, o artista e o delinquente).
Mas a questão essencial para responder à pergunta: «O que liga Walter Benjamin e a sua visão da cidade ao nosso tempo?» não passa pelos aspectos empíricos, fenoménicos, da grande cidade ontem e hoje, na hora da sua génese e no momento de crise aguda que atravessa. É antes a de saber que «nervos» e núcleos não aparentes, que tendências latentes numa fase inicial da civilização urbana continuam aí e estão hoje mais expostos (e mais desgastados): i. é, o fundo matricial, modificado, mas único, dessa civilização na modernidade e na nossa contemporaneidade – a única de que dispomos, nas metrópoles e nas megacidades de hoje, para viver, criar e morrer.
Por esse fundo perpassam imagens que reconhecemos como as de Baudelaire e Benjamin, por vezes apenas com um ténue deslocamento ou uma intensificação. O inventário podia ser extenso, mas anotemos apenas algumas delas: os labirintos do flâneur são as ratoeiras do trânsito de hoje; os corredores do centro comercial são as «zonas pedonais» planificadas; a floresta onde ele se perde por gosto é a selva que nos consome; à cidade como campo de alegorias que emergem do meio da multidão corresponde o reino sempre-igual dos rostos tristes, abúlicos ou agressivos, das massas híbridas de hoje; o choque produtivo amorteceu na sequência entediante e mortífera de acontecimentos de rotina, mas cresceu quantitativamente; a cidade-texto e palimpsesto gerou espaços de redes saturadas e asfixiantes; a paisagem do inorgânico acentua-se em cenários de pesadelo…
E, tal como em Baudelaire, a «vida anterior», «o objecto da experiência no estado da similitude», sinónimo do belo para Benjamin, continua a ser o sonho de algo de irremediavelmente perdido, e hoje mais distante. «É na beleza» – lembra Maria Filomena Molder num luminoso livro de ensaios sobre Benjamin: Semear na Neve, Relógio d'Água, 1999 – «que Baudelaire vislumbra a saída do círculo infernal. E Benjamin tomou-a incansavelmente como objecto da sua procura, respondendo ao pedido que cada coisa nos faz de reconhecermos aquele ponto, aquele nó, aquela saliência quase escondida, aquela ruga indelével, que não se encontram em mais nenhuma coisa, o que exige um afundar-se nos pormenores de cada coisa…». No lugar desta busca de beleza e da retribuição do olhar – mais ainda no mundo actual destituído de memória – instala-se o reverso dessa vida anterior, o Nada festivo, um outro «apocalipse alegre» (expressão de Hermann Broch para a Viena de 1900). É nesse deserto de experiência que nos encontramos: destituídos da tradição que ainda nos poderia falar e insensíveis à aura das coisas que nos olham.
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