12 novembro, 2006

ORIGEM
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Ex-libris de Modest Cuixart

Isto hoje não é um post, é quase um tratado...
A «origem» é uma paradoxal mitologia da modernidade, uma constelação essencialista em que também Walter Benjamin se integra. Desde o Romantismo e as suas Idades de Ouro (Novalis, Hölderlin), desde «O cisne» de Baudelaire ou o «Anywhere out of this world» dos poemas em prosa, desde Nietzsche e todas as vanguardas, correndo atrás do mito do «elementar», desde os Dadaistas, espezinhando espectacularmente a «arte» e a «Obra» (burguesas, idealistas), para as substituir pelas de «vida» e de «Nada», categorias mais que suspeitas ou esgotadas, desde Schopenhauer, Dilthey e Bergson, até ao protofascista Ludwig Klages (que Benjamin admira na sua juventude e Musil satiriza na figura do Dr. Meingast em O Homem sem Qualidades).


Philipp Otto Runge, Manhã (1808-09), pormenor


Hannah Höch, Das schöne Mädchen (1920)



Ludwig Klages (1872-1956)

O grande paradoxo foi o de uma modernidade que se volta constantemente para trás, mas ao mesmo tempo se proclama antipassadista, uma contradição que, naturalmente, só pode ser explicada à luz da «dialéctica da Aufklärung» e da «destruição da razão» (como lhe chamou Lukács) desde o Romantismo.


Max Horkheimer e Theodor Adorno em Heidelberg, 1965

A novidade em Benjamin, nesta constelação, é a do acrescento da forte componente messiânica. Na literatura, a partir de Proust, esta mitologia é posta a funcionar com o simples toque de uma colher numa xícara de chá (e antes, em Mallarmé, de um acorde musical).


Proust em bilhete postal


O mundo de Proust pelo fotógrafo Eugène Atget




Mallarmé, «Un coup de dés...»

A falácia do (re)começo, as miragens do regresso, informam todas as utopias modernas (que são, de facto, ucronias regressivas), de Fourier a Morris e de Bellamy ao movimento Hippie, a grande utopia edénica do século XX. O olhar para diante não pode deixar de constatar que o caminho da História é para trás (o próprio marxismo, lido como forma secularizada do messianismo, lançado no mundo por um judeu alemão, cabe também aqui). Há sempre uma Arcádia ou uma Idade de Ouro (bem conhecidas de outras eras) à nossa espera. No centro, de braços (e pernas) abertos para receber os adeptos, a ARTE. A mitologia da origem é uma mitologia estética.


Arte=Ópio? (Gomas bicromatadas)



O rosto da arte?

À porta desse paraíso ficam as figuras do Mal – a mulher e o saber, Kundry e Gurnemanz no Parsifal de Wagner. Como na Urszene (cena primitiva), à sombra da árvore do Conhecimento (e da Vida!). Só o puro, o pobre tolo (o eleito Parsifal), o bobo da corte na sociedade burguesa (ou o seu demónio), o artista, aí tem lugar.


Parsifal: Milão, 1903 e Seattle, 2003

Também a psicanálise se tornará um dos maiores campos de trabalho arqueológico do século. Até hoje, o seu método fundamental é o da etiologia, toda a tópica freudiana do psiquismo é um esquema totalmente dominado pela presença fantasmagórica de uma instância originária (o inconsciente, a infância), e também as categorias com que aí se opera são «originárias»: regressão, recalcamento, sublimação, pulsão, latência...
Na filosofia, Heidegger está intrinsecamente contaminado pela mitologia das origens, e não só da obra de arte: o seu método é o de um fascinante, mas por vezes ominoso, etimologismo ontológico.


Heidegger / Freud

Ainda Adorno, apesar da vivacidade com que repudia as teorias puristas para a arte moderna, ao ver essa arte como «historicamente imanente» e a palavra como manifestação não mimética (não mediatizada) da negatividade do real, faz-se eco da nostalgia da palavra original, que atravessa igualmente os primeiros ensaios de Benjamin sobre a linguagem (e, depois, sobre a tradução). A teoria adorniana do Sprachcharakter der Kunst (o carácter-de-linguagem da arte), que também parece vir na linha do que Benjamin via (na poesia de Hölderlin, por exemplo) como a Sprachlosigkeit des Ausdrucks (o mutismo, o branco-de-linguagem da expressão), leva a uma espécie de animismo estético. A utopia de Adorno não era, no fundo, regressiva, era a da «superação» da reificação pela arte (voilà, novamente, o arquétipo de todas as origens – cherchez la femme!). Mas a realidade ultrapassou-o ainda em vida: a sua teoria estética foi cilindrada pela arte pop e pela indústria da cultura!


Andy Warhol

Em Benjamin, e concretamente em Origem do Drama Trágico Alemão, a categoria da origem, que aqui se confunde com a de Natureza – «a natureza da criação absorve em si o acontecer histórico»; no drama do Barroco, escreve ainda Benjamin, dá-se «a total secularização da história no estado criatural» –, é geralmente vista como teologicamente marcada (e não deixará de o estar até ao texto derradeiro, o das «Teses sobre o conceito da História»). Mas talvez se possa dizer, com mais propriedade, que a sua determinação é antes cosmológica (isto torna-se evidente na correspondência com o teólogo Florens Christian Rang a propósito da tragédia, na fase de elaboração do livro sobre o drama do Barroco).


(J.B., Diário)

O lado sui generis de Benjamin, «rabino marxista» (como lhe chamou o racionalista Habermas) ou revolucionário melancólico, é que nele – também quanto a esta questão – a figura produtiva por excelência é o paradoxo. Assim, a filosofia da história pede ajuda à cosmologia e à teologia (messiânica), a origem, sendo histórica, não é «genealógica», o originário é, ao mesmo tempo, começo absoluto (origem pura) e radicalmente novo (presente actuante e vivo), como sugere, e bem, Stéphane Mosès. A «origem» é o que está aí desde sempre, sem nunca ser conhecida. Por isso é objecto de sucesssivas «salvações». Como no Palomar de Calvino, em que as coisas são «salvas» pelo olhar que interpreta (para as fazer também regressar a uma suposta origem).


Italo Calvino



Acontece, porém, que o senhor Palomar é o que é por consciência disso, de que o caminho para tais origens está cheio de obstáculos (o pensamento, o hábito, a socialização, o eu incompleto). Como o príncipe melancólico no livro de Benjamin, o senhor Palomar – um alegorista pós-moderno – não pode deixar de se entregar à interpretação, e a consciência das barreiras, da opacidade das coisas, fá-lo cair na sua forma própria de melancolia, bem mais benigna do que a das personagens dos sombrios dramas barrocos comentados por Benjamin.
(Há também em Calvino uma teoria da aura – mas esta é outra história, que ficará para a altura própria neste diário, se houver ânimo, tempo e matéria para o continuar).

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