O »MONDE DIPLOMATIQUE» E OS »INTELECTUAIS»
(Resposta a um inquérito)
O «Monde Diplomatique» começou a fazer, na edição portuguesa de Novembro, um inquérito a propósito da velha questão do papel ou não papel do intelectual no mundo de hoje.
Transcrevo aqui as perguntas colocadas pelo jornal e a minha resposta.
«Inquérito»
A noção de «intelectual» surgiu historicamente, se quisermos conservar o «caso Dreyfus» como
ponto de referência, com a intervenção pública de escritores, cientistas, artistas e outros
criadores culturais orientada para a preservação da integridade cívica e inspirada pela
proclamação de princípios «humanistas» de pretensa universalidade. No entanto, logo então, e
constantemente entretanto, surgiram vozes no interior da própria comunidade «intelectual» que
consideravam essas intervenções públicas como perigosas transigências para com o século e,
como tais, como abusivas pretensões ao estatuto de actor político, que não se deveria nunca
confundir com as tarefas do «intelecto». Não reduzindo a esfera de possibilidade de intervenção
pública aos detentores de credenciais académicas ou aos «profissionais» do universo do
«espírito», concepções restritivas (e mesmo elitistas) que emergem de uma sociedade muito
estratificada, interessa aqui sobretudo pensar como se relaciona a posse de atributos culturais
com o exercício da intervenção pública. Recuperando a tradição portuguesa de publicações
como «Seara Nova» ou «República», o Le Monde Diplomatique (edição portuguesa) vai sondar
um variegado conjunto de escritores, cientistas, artistas e outros criadores culturais como
solução para mapear – e não: prescrever – o ponto da situação entre o universo cultural
português. A todos os inquiridos será submetido o mesmo «Inquérito»:
1. Faz sentido pensar hoje em «intelectuais» que intervenham civicamente em nome de
uma «causa» ou «missão»?
2. Deverão eles, pelo contrário, resistir a pronunciar-se publicamente sobre temas de
interesse público ou cívico?
Resposta:
3. Num ou noutro caso, o que podem trazer os «intelectuais» para a sociedade do seu
tempo?
A minha resposta:
Prefiro responder de uma só vez às três perguntas do inquérito, já que elas se articulam e
sugerem também uma resposta articulada e única.
Essa resposta pressupõe uma reavaliação, ou substituição, da noção de «intelectual». O termo
está datado, e remete para um tipo de situação político-social que foi, grosso modo, a do século
XX, mas que se alterou radicalmente neste nosso século. A minha tese é a de que se esgotou o
modelo secular (e francês, desde Voltaire) do intelectual crítico e interventivo que actua no
mesmo plano dos poderes e com uma arma exclusiva – a da palavra e da sua capacidade
argumentativa –, tornando-se com isso cada vez mais inócuo, e a sua acção restrita, num mundo
como o nosso, em que essa arma perdeu visivelmente a sua força.
Mas o fim deste modelo não significa o fim de uma figura (ou melhor, de figuras de diversos
tipos) com funções igualmente críticas e de resistência (porventura menos visíveis, dada a sua
proliferação) adaptadas à nova situação de mobilidade, de globalização e de opacidade dos
poderes. Instalou-se assim o que vejo como uma anarquia criativa interveniente, em grande
parte de costas voltadas para os poderes, mas sem os perder de vista (por isso eles não sabem
muito bem o que fazer com ela!). Uma diversidade de forças nem sempre pensantes, mas
altamente críticas e mesmo subversivas, de recorte mais «performativo» do que filosófico. O
«intelectual» não é já a figura destacada – e tantas vezes isolada, pregando no deserto – do
pensador crítico do sistema, ou a consciência moral da nação. Hoje, as formas de actuação na
arena política e social pluralizaram-se, entraram há décadas num quase imperceptível processo
de deslocamento que levou a que a intervenção não se dê necessariamente no plano do dizer
(da força perdida da palavra), mas bastante mais no plano do mostrar e do fazer. Não há
propriamente uma luminária pensante, que fala a partir de um lugar apesar de tudo privilegiado,
existem antes – como também viram Pasolini há décadas, e Didi-Huberman hoje – muitos
pirilampos que se acendem (e apagam) sob as mais diversas formas, nas artes e no teatro ou no
cinema, na performance e na manifestação pública, ela própria em momentos mais felizes
transformada em obra de arte viva. Sem sentido de «missão», mas certamente com vontade de
contestação, com motivações próximas mais à vista do que as grandes «causas» abstractas de
pretensão universal – tudo também mais soft, é claro, do que nos duros regimes totalitários do
século XX (pelo menos na Europa).
O intelectual de recorte clássico, ainda sartriano (ou, de um ponto de vista ainda mais
«essencialista», o «intelectual orgânico» de Antonio Gramsci e das suas Cartas da Prisão),
perdeu o pé no mundo de hoje, porque o mundo se transformou e de certo modo o «dispensou»
enquanto defensor de «causas» (por vezes com algo de patético) que jogava no campo do
adversário, estando muitas vezes condenado a perder. A inflexão que se deu é algo paradoxal:
encontramo-nos hoje numa situação em que, apesar de todos os padrões estarem mais
uniformizados e globalizados do que nunca – ou por isso mesmo! –, a diversidade de formas de
intervenção é imensa e constante. Entrámos num processo que deixou para trás o intelectual
bem pensante para entrar na fase de transição e exploratória de uma cultura que sofreu uma
inflexão do político (depois do Maio de 68, da revolução portuguesa ou da queda / degeneração
dos impérios soviético e chinês) para o estético (em sentido muito amplo), sem no entanto aliar a
essas formas de actuação estético-críticas uma ética que as fundamente. Isso não está ainda à
vista neste momento em que o movimento do mundo parece processar-se (para usar termos do
filósofo Michel Serres) entre a rejeição do «formato» por grupos minoritários e o excesso de
«invenção» que faz deste tempo um dos mais dinâmicos da História.
Diferentemente do intelectual singular e «forte» (tantas vezes com visões apocalípticas),
confrontado com a violência explícita de Estados autoritários ou universos concentracionários, o
que os «pirilampos» activos de hoje fazem é, como diria Walter Benjamin, «organizar o
pessimismo», intervindo por via «imagética», isto é, viva e sensível, muitas vezes irónica e
satírica, numa «partilha» de papéis contestatários dos muitos que actuam no espaço público.
Com plena consciência de que não podemos querer apontar vias únicas de salvação, dizendo
para onde vamos, mas tão somente tentar entender onde estamos. E agir. E tornar evidentes as
situações sem inferir daí qualquer moral.
Um filósofo como Jacques Rancière poderia aqui servir de referência. Para este pensador, uma
obra de arte funciona hoje muitas vezes como «manifesto mudo»: está aí e fala. Ao comentar o
filme de Pedro Costa O Quarto de Vanda, Rancière destaca nesse filme o gesto da recusa de
intervir como algo que nos coloca na presença do que é político pelo simples facto de nos
mostrar a sua força. Acabámos de ter, nas últimas semanas, um outro exemplo disto no caso da
greve de fome de Luaty Beirão em Luanda. O que aconteceu na fase histórica mais recente, diria
eu, evocando o conhecido poema de Kavafis, foi a barbarização do intelectual, a sua necessária
dessacralização. É uma forma daquilo a que Benjamin chamou «barbárie positiva», em que o
discursivo dá lugar ao performativo, a retórica à acção, o pensamento abstracto a formas de arte
ou de pensamento vivos. Isto aplica-se particularmente a épocas como a nossa, talvez não ainda
de decadência aberta, mas certamente de declínio de um modelo, uma época que, nas suas
instâncias dominantes, anulou qualquer olhar crítico sobre si própria e prossegue o caminho para
o abismo em plena cegueira. Neste contexto, os «activistas estéticos» de hoje são os novos
bárbaros, os que já estão há algum tempo dentro das portas da cidade. São aqueles que vieram
para agir, para pôr fim ao reino dos oradores e às suas «eloquências e retóricas», próprias de
épocas vazias – ou demasiado cheias, ideologizadas, de um e de outro lado. Depois, talvez os
intelectuais regressem à polis investidos de outras funções. Por enquanto, os novos bárbaros
que se instalaram portas adentro na cidade podem ser os pensadores ou os activistas, os
artistas ou os colunistas da imprensa, os escritores ou os programadores culturais, os
historiadores ou os cientistas...
Concluo que não chegámos ao fim de uma era com o desaparecimento do intelectual de perfil
clássico, que conhecemos de Voltaire a Sartre e Pasolini – ou também, entre nós e durante
décadas, de Eduardo Lourenço. O que aconteceu é que o seu centro se estilhaçou. Mas
continuam aí figuras a que podemos chamar os intelectuais da era digital, ou global, que se
servem de vias e suportes diferentes dos tradicionais (Bernard Stiegler, por exemplo, actua
insistentemente sobre as consciências através da Internet), e que agem separadamente,
dispersamente, mas muitas vezes com clara convergência de propósitos e resultados. Os efeitos
destas formas de intervenção dispersas são diferentes, mais imprevisíveis, mais plurais, em
geral mais «leves». Por outro lado, as intervenções deste tipo no tecido social não serão tão
clara e explicitamente «políticas» – sem deixarem de o ser –, mas isso deve-se ao facto de a
política ela mesma ter deixado de ser o que era. Deixou de precisar de ideias, deixou mesmo de
ser uma «arte» – a do possível –, para se transformar cada vez mais em espectáculo mediático
em vésperas de eleições, num discurso sofista ao nível do da publicidade e num jogo ilusório de
soberania, enredada nas malhas que o império da finança global tece.
É a esta forma nova de política que responde essa nova figura da «função intelectual»
disseminada pela anarquia criativa de uma nova «intelectualidade sensível» e plural.
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