EM
ESTADO DE IMANÊNCIA
(sobre José Gil, Cansaço, Tédio, Desassossego)
Hoje, em Vila Nova de Famalicão, na entrega do Grande Prémio de Ensaio Eduardo Prado Coelho a José Gil:
Desde
sempre, alguns filósofos nos deram leituras decisivas de alguns grandes poetas.
Perguntamo-nos se estarão os grandes poetas destinados a serem mais intima e
profundamente iluminados pelos filósofos – os filósofos que, no início,
receando os poderes da imaginação, os expulsaram da polis, mas com a evidente má consciência de quem sabe que a polis não pode prescindir deles.
De
facto, foi preciso esperar um século para que surgissem leituras seminais de um
poeta como Hölderlin, esquecido ou
apropriado por ideologias de sinal oposto até inícios do século XX. E essas
leituras vieram de Heidegger, um filósofo que também fez seus poetas como Rilke
ou Trakl. Baudelaire veria pela
primeira vez o seu lugar de charneira na «poesia urbana» europeia, muito para
lá de chavões de escola, decisivamente garantido pelo pensamento de Walter
Benjamin, que o coloca no centro da sua «arqueologia do século XIX». Paul Celan, que a crítica literária leu
durante duas décadas à luz de um pretenso «hermetismo» que o reduz, precisou,
para surgir em toda a dimensão de uma tragicidade de que a própria linguagem se
embebeu, de ser relido por Derrida, Levinas ou Gadamer (ou, já antes, à luz da
filosofia dialógica de Martin Buber). Pessoa,
enfim, começa a ser lido – leia-se: pensado – entre nós de forma inovadora por
Eduardo Lourenço. E encontrou um dia – há quase três décadas, com Fernando Pessoa ou a Metafísica das
Sensações – em José Gil aquele leitor e intérprete pertinaz e arguto que,
no mar chão de tanta exegese pessoana por via literária e filológica, seria a
sonda que desce mais fundo para, a partir das zonas mais complexas, densas e
semi-obscuras do universo do poeta e das suas raízes, ir construindo uma verdadeira
estética pessoana – sensacionista e múltipla – e lançando luz sobre a complexa
realidade mental de todo aquele grande poema-sem-eu cheio de Eus e de Outros,
cada um deles um feixe de sensações próprio, erguido à sombra da morte
necessária do Mestre (talvez ninguém, até hoje, tenha mostrado com tal força de
argumentação a necessidade da morte de Caeiro, para que os heterónimos pudessem
respirar e viver com autonomia).
Este
projecto continua-se – e provavelmente não se acaba – no livro que o Júri do Grande
Prémio de Ensaio Eduardo Prado Coelho distinguiu este ano: Cansaço, Tédio, Desassossego (uma edição Relógio d'Água, 2013).
Dir-se-ia que, como tantas vezes acontece com as grandes obras do pensamento
que a si próprio se persegue, é um livro a um tempo surpreendente e sem
surpresas.
Expliquemo-nos.
Há em José Gil, na sua leitura do fenómeno Pessoa, uma linha de continuidade
que atravessa os cinco livros que já lhe dedicou, e um «método», um caminho que
é próprio de quem não dá por concluída a análise do que é em si mesmo
inconclusivo: esse método é o do regresso deliberado aos pontos nodais do
problema para os reexaminar e aprofundar.
É
o que acontece neste livro, na sua relação com os anteriores de José Gil em
torno de Pessoa, particularmente no que se refere à eterna e decisiva questão
da heteronímia, como fica claro pela leitura dos ensaios «A morte de Caeiro» e
«A heteronímia revisitada», que, como o autor lembra, pretendem «trazer um
acréscimo de inteligibilidade ao que já foi tantas vezes comentado» (p. 70). É
assim que, neste livro, se avança, por exemplo, da noção de Eu como «espaço
interior implodido», ou puro plano que acolhe uma multidão, proposto em O Devir-Eu de Fernando Pessoa, para uma
visão sensacionista (mas sem Ismos) dos heterónimos que, pela morte do Pai,
podem afirmar a sua «plenitude de vida», com base numa estética das sensações,
«indiferentista», diferenciada e mutuamente irredutível.
Fernando
Pessoa é, entre todos os poetas portugueses (e mais do que outros, como
Antero), pela natureza iminentemente aporética e paradoxal do seu universo,
aquele que mais naturalmente suscita a intervenção do filósofo a propósito do
modo particular como a matéria informe que habita o seu «espaço interior» se
transforma em matéria escritural pensante, aparentemente dispersa, mas com um
pendor, se não sistemático, claramente sistematizante. No centro deste novo
livro de José Gil, que é mais um exercício brilhante de exploração consequente
de aparentes evidências, perfila-se uma questão de sempre desse espaço
pessoano, a decisiva, mas que, segundo o autor, continua sem resposta: a
questão de saber o que são, afinal, os heterónimos e qual o seu real estatuto –
«a grande questão irrecusável e que não recebeu ainda uma resposta clara», como
lemos logo na página de abertura do livro. E se isso acontece é porque a
tendência para separar o que anda unido – de um lado, uma poética ou uma
«dramaturgia»/encenação, do outro, um pensamento – tem sido a dominante nos
chamados «estudos pessoanos». Já a primeira frase de O Espaço Interior (há vinte anos) é clara: «O pensamento poético de
Fernando Pessoa liga-se intimamente à experiência que o viu nascer, a
experiência do seu próprio pensamento.» (p. 9)
Ou seja: não há, em Fernando Pessoa, distinção de princípio entre uma
poética e um pensamento. Este foi, desde início – desde A Metafísica das Sensações – o fundamento de toda a reflexão
original de José Gil sobre Fernando Pessoa. Contra as leituras dominantes, e
por vezes únicas – antes, meramente literárias ou esotéricas, hoje esotéricas e
filológicas, ou incipientemente comparatistas.
Pensar
Pessoa, um poeta que permanentemente se pensa em dobra e desdobra, do modo como
o faz José Gil em Cansaço, Tédio,
Desassossego, renovando o seu olhar sobre o objecto (e sobre o seu próprio
pensamento anterior), num arguto e persistente exercício deambulatório de
argumentação e prova (provisória) é um traço distintivo do ensaio na sua forma mais genuína, como entre nós o praticou
exemplarmente Eduardo Prado Coelho. Como o Eduardo (e eu próprio), José Gil
sabe que o ensaio é um «género intranquilo» cuja mais-valia é o valor de uso de
uma hipótese, o saber da incompletude.
Pensar
Pessoa com Pessoa, em convergência
com o seu objecto (como o Júri destaca no seu parecer em relação ao livro de
José Gil), é pensá-lo «em estado de imanência», numa quase cumplicidade em que
sujeito e objecto se entendem e (con)fundem. É um sinal de pujança do
pensamento, num país sem rosto onde ao «medo de existir» se veio juntar a
interdição de pensar («on va vers le silence», como escrevia já em 1991 Eduardo
Prado Coelho), dominados que estamos por uma espécie de maldição pragmática, no
eterno circo de costumes nacional, numa arena tíbia e alegremente inconsciente
em que tudo se passa entre o inter-dito
(o dito entre dentes) e o desbocado. O rio do pensamento estiola entre tais
margens, como já Brecht lembra no seu poema:
Do
rio que tudo arrasta
se
diz que é violento.
Mas
ninguém diz violentas
as
margens que o oprimem.
José
Gil, com mais este notável conjunto de ensaios pessoanos, é excepção, e isso,
só por si, justifica a atribuição do Grande Prémio de Ensaio Eduardo Prado
Coelho a Cansaço, Tédio, Desassossego.
Parabéns
ao autor, e obrigado a todos pela vossa presença.
João
Barrento
(porta-voz do Júri)
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