31 outubro, 2014

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EM ESTADO DE IMANÊNCIA
(sobre José Gil, Cansaço, Tédio, Desassossego)

Hoje, em Vila Nova de Famalicão, na entrega do Grande Prémio de Ensaio Eduardo Prado Coelho a José Gil:


Desde sempre, alguns filósofos nos deram leituras decisivas de alguns grandes poetas. Perguntamo-nos se estarão os grandes poetas destinados a serem mais intima e profundamente iluminados pelos filósofos – os filósofos que, no início, receando os poderes da imaginação, os expulsaram da polis, mas com a evidente má consciência de quem sabe que a polis não pode prescindir deles.
De facto, foi preciso esperar um século para que surgissem leituras seminais de um poeta como Hölderlin, esquecido ou apropriado por ideologias de sinal oposto até inícios do século XX. E essas leituras vieram de Heidegger, um filósofo que também fez seus poetas como Rilke ou Trakl. Baudelaire veria pela primeira vez o seu lugar de charneira na «poesia urbana» europeia, muito para lá de chavões de escola, decisivamente garantido pelo pensamento de Walter Benjamin, que o coloca no centro da sua «arqueologia do século XIX». Paul Celan, que a crítica literária leu durante duas décadas à luz de um pretenso «hermetismo» que o reduz, precisou, para surgir em toda a dimensão de uma tragicidade de que a própria linguagem se embebeu, de ser relido por Derrida, Levinas ou Gadamer (ou, já antes, à luz da filosofia dialógica de Martin Buber). Pessoa, enfim, começa a ser lido – leia-se: pensado – entre nós de forma inovadora por Eduardo Lourenço. E encontrou um dia – há quase três décadas, com Fernando Pessoa ou a Metafísica das Sensações – em José Gil aquele leitor e intérprete pertinaz e arguto que, no mar chão de tanta exegese pessoana por via literária e filológica, seria a sonda que desce mais fundo para, a partir das zonas mais complexas, densas e semi-obscuras do universo do poeta e das suas raízes, ir construindo uma verdadeira estética pessoana – sensacionista e múltipla – e lançando luz sobre a complexa realidade mental de todo aquele grande poema-sem-eu cheio de Eus e de Outros, cada um deles um feixe de sensações próprio, erguido à sombra da morte necessária do Mestre (talvez ninguém, até hoje, tenha mostrado com tal força de argumentação a necessidade da morte de Caeiro, para que os heterónimos pudessem respirar e viver com autonomia).


Este projecto continua-se – e provavelmente não se acaba – no livro que o Júri do Grande Prémio de Ensaio Eduardo Prado Coelho distinguiu este ano: Cansaço, Tédio, Desassossego (uma edição Relógio d'Água, 2013). Dir-se-ia que, como tantas vezes acontece com as grandes obras do pensamento que a si próprio se persegue, é um livro a um tempo surpreendente e sem surpresas.
Expliquemo-nos. Há em José Gil, na sua leitura do fenómeno Pessoa, uma linha de continuidade que atravessa os cinco livros que já lhe dedicou, e um «método», um caminho que é próprio de quem não dá por concluída a análise do que é em si mesmo inconclusivo: esse método é o do regresso deliberado aos pontos nodais do problema para os reexaminar e aprofundar.
É o que acontece neste livro, na sua relação com os anteriores de José Gil em torno de Pessoa, particularmente no que se refere à eterna e decisiva questão da heteronímia, como fica claro pela leitura dos ensaios «A morte de Caeiro» e «A heteronímia revisitada», que, como o autor lembra, pretendem «trazer um acréscimo de inteligibilidade ao que já foi tantas vezes comentado» (p. 70). É assim que, neste livro, se avança, por exemplo, da noção de Eu como «espaço interior implodido», ou puro plano que acolhe uma multidão, proposto em O Devir-Eu de Fernando Pessoa, para uma visão sensacionista (mas sem Ismos) dos heterónimos que, pela morte do Pai, podem afirmar a sua «plenitude de vida», com base numa estética das sensações, «indiferentista», diferenciada e mutuamente irredutível.
Fernando Pessoa é, entre todos os poetas portugueses (e mais do que outros, como Antero), pela natureza iminentemente aporética e paradoxal do seu universo, aquele que mais naturalmente suscita a intervenção do filósofo a propósito do modo particular como a matéria informe que habita o seu «espaço interior» se transforma em matéria escritural pensante, aparentemente dispersa, mas com um pendor, se não sistemático, claramente sistematizante. No centro deste novo livro de José Gil, que é mais um exercício brilhante de exploração consequente de aparentes evidências, perfila-se uma questão de sempre desse espaço pessoano, a decisiva, mas que, segundo o autor, continua sem resposta: a questão de saber o que são, afinal, os heterónimos e qual o seu real estatuto – «a grande questão irrecusável e que não recebeu ainda uma resposta clara», como lemos logo na página de abertura do livro. E se isso acontece é porque a tendência para separar o que anda unido – de um lado, uma poética ou uma «dramaturgia»/encenação, do outro, um pensamento – tem sido a dominante nos chamados «estudos pessoanos». Já a primeira frase de O Espaço Interior (há vinte anos) é clara: «O pensamento poético de Fernando Pessoa liga-se intimamente à experiência que o viu nascer, a experiência do seu próprio pensamento.» (p. 9)  Ou seja: não há, em Fernando Pessoa, distinção de princípio entre uma poética e um pensamento. Este foi, desde início – desde A Metafísica das Sensações – o fundamento de toda a reflexão original de José Gil sobre Fernando Pessoa. Contra as leituras dominantes, e por vezes únicas – antes, meramente literárias ou esotéricas, hoje esotéricas e filológicas, ou incipientemente comparatistas.
Pensar Pessoa, um poeta que permanentemente se pensa em dobra e desdobra, do modo como o faz José Gil em Cansaço, Tédio, Desassossego, renovando o seu olhar sobre o objecto (e sobre o seu próprio pensamento anterior), num arguto e persistente exercício deambulatório de argumentação e prova (provisória) é um traço distintivo do ensaio na sua forma mais genuína, como entre nós o praticou exemplarmente Eduardo Prado Coelho. Como o Eduardo (e eu próprio), José Gil sabe que o ensaio é um «género intranquilo» cuja mais-valia é o valor de uso de uma hipótese, o saber da incompletude.
Pensar Pessoa com Pessoa, em convergência com o seu objecto (como o Júri destaca no seu parecer em relação ao livro de José Gil), é pensá-lo «em estado de imanência», numa quase cumplicidade em que sujeito e objecto se entendem e (con)fundem. É um sinal de pujança do pensamento, num país sem rosto onde ao «medo de existir» se veio juntar a interdição de pensar («on va vers le silence», como escrevia já em 1991 Eduardo Prado Coelho), dominados que estamos por uma espécie de maldição pragmática, no eterno circo de costumes nacional, numa arena tíbia e alegremente inconsciente em que tudo se passa entre o inter-dito (o dito entre dentes) e o desbocado. O rio do pensamento estiola entre tais margens, como já Brecht lembra no seu poema:
                                    Do rio que tudo arrasta
                                    se diz que é violento.
                                    Mas ninguém diz violentas
                                    as margens que o oprimem.

José Gil, com mais este notável conjunto de ensaios pessoanos, é excepção, e isso, só por si, justifica a atribuição do Grande Prémio de Ensaio Eduardo Prado Coelho a Cansaço, Tédio, Desassossego.
Parabéns ao autor, e obrigado a todos pela vossa presença.


João Barrento
(porta-voz do Júri)

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