16 junho, 2013

OS DIÁRIOS PORTUGUESES
DE CURT MEYER-CLASON



O programa «Agora», da RTP2, transmite hoje à noite (22 horas) uma peça sobre um livro recente (edição Documenta) que traduzi e posfaciei, os Diários Portugueses de Curt Meyer-Clason, que foi director do Instituto Alemão de Lisboa nos anos difíceis de 1969 a 1976. Mais do que registo de memórias meramente pessoais desses tempos, trata-se antes de uma crónica muito singular, de grande valor literário, de uma época decisiva da história portuguesa recente, da «primavera marcelista» aos cravos e cardos da Revolução.
Escrevi por três vezes sobre estes singulares Diários: a primeira em 1980, no Diário de Notícias, chamando a atenção para a primeira edição alemã acabada de sair; a segunda em 1994, posfaciando a segunda edição, a pedido do Autor; e a terceira agora, uma vez concluída a tradução do livro. Deixo aqui este último texto, chamando a atenção para uma obra que merece ser lida hoje, e que diz mais sobre nós do que muitos compêndios de história contemporânea.



Há fenómenos naturais e há fenómenos culturais, figuras capazes de atrair e pôr em acção (neste caso, acção no campo indistinto e múltiplo da política e da cultura, da política cultural e da cultura política) pessoas, instituições, todo um tempo e uma sociedade. Curt Meyer-Clason, que conheci quando ele e eu chegámos a Lisboa em 1969, vindos ambos da Alemanha, revelou-se-me desde logo um desses fenómenos, multifacetado, forte, complexo, controverso. De facto, Meyer-Clason chega não se sabe bem de onde, já que parte da sua vida até aí fora passada na América do Sul, mas os próprios Diários nos informam brevemente sobre esses antecedentes. E mal chega instala-se em Lisboa, na Lisboa cultural, mundana e da oposição, como um furacão que começa a agitar a nossa modorra ainda salazarenta. E quando sai escreve estes Diários Portugueses, que são a sua maneira de nos ler a palma da mão a posteriori, profetizando-nos um futuro que não haveria de ser nosso.
Meyer-Clason era uma figura que se impunha à primeira vista e ao primeiro contacto, homem de entusiasmos e de palavra fácil e convincente, self-made leader e self-leading man, com as qualidades e os defeitos, os riscos e as surpresas nisso implícitos. Os Diários espelham essa personalidade segura, soberana, requintada e pragmática, deixando transparecer uma mistura de exactidão (alemã), ironia (pícara), cultura livresca (mas vivida) e pose de homem do mundo. O que fez na Lisboa entre a primavera marcelista e o período pós-PREC poucos o fizeram: chega a Lisboa e em pouco tempo muda a paisagem cultural de uma cidade meio adormecida e espartilhada pela censura de uma ditadura disfarçada, isolada e já descrente de si mesma. E fá-lo entrando pela porta da esquerda, de uma esquerda certamente não coesa, marcada por tonalidades que os Diários espelham, e que vão da mais ortodoxa à mais festiva. Mas também abrindo portas que o regime normalmente fechava, trazendo ao seu Instituto figuras, alemãs e não só, que só aí poderiam ser vistas e ouvidas, fazendo germinar sementes que o terreno estéril da ditadura não conhecia. Aí, no «Goethe» desses anos, como escrevi algures, «podiam pensar-se coisas que cá fora eram impensáveis».
Estes meses em que andei a traduzir os Diários Portugueses de Meyer-Clason abriram-me os olhos – voltaram a abri-los, regressando aos anos setenta de que eles se ocupam – para certas realidades deste país (naturais, urbanas, sociais e políticas), que ele via com olhos estrangeiros, cheios de um espanto virgem de que nós (já) não somos capazes. Com alguma ingenuidade, e também com a benevolência de quem ama sem deixar de ver os defeitos do outro. A realidade que Meyer-Clason descreve, ora com entusiasmo transbordante, ora com ironia crítica (e que eu, com um olhar mais céptico e mais tardio, tento fazer descer à terra no posfácio que ele me pediu em 1994 para a segunda edição alemã), foi destruída por aquilo que ele próprio refere como «a ganância sem peias do negócio». Mas constato que o que ele em nós via há quase quarenta anos – na natureza (a sua Caparica), na Lisboa de '70 ou também na substância anímica dos Portugueses, neutralizada também, seja lá ela o que for, por modelos culturais globalizados – ainda aí está. Acontece, porém, que os nossos olhos, viciados e poluídos, a nossa intuição embotada, a proximidade que não deixa ver, já se não apercebem da nossa própria realidade como ele foi capaz de a captar e retratar.
Foi precisamente isso que a releitura dos Diários em close-up, no close reading da tradução, me veio dizer hoje: que precisamos de voltar a saber ver e ouvir, ver o mundo e as coisas nele, e ouvir os outros, para sobrevivermos. Porque é de uma questão de sobrevivência que se trata. De sobrevivência com um e num mundo que é este e não pode ser outro (mas pode e tem de ser este de outro modo), e de coexistência com outros, perdidos, mas recuperáveis. Subjacente ao esforço cultural e humano descrito nestes Diários há a convicção de que é preciso buscar essa coexistência, para podermos viver e conviver melhor, eu contigo, tu comigo, o computador com a terra e o i-Pad com o livro – o desejo e a libido com a técnica, como sugere Bernard Stiegler.
Curt Meyer-Clason voltou a lembrar-me isto. Também ele unia extremos, atava pontas, conciliava opostos (isto foi lembrado por José Gomes Ferreira no jantar de despedida que lhe fizemos no Tavares, então já não «rico», em Maio de 1976). Era um homem altamente pragmático e – como alemão que era – quase calculista, mas extremamente sensível, emocionalmente excessivo, humano, demasiado humano, e por isso com as suas fraquezas (de que estava consciente) e incertezas, mas muito mais potencialidades criativas, solidárias, e um poder de observação fora do comum, que estes Diários mostram á evidência. O seu tom é por vezes hiperbólico, a carga de adjectivos e o excesso das imagens sufoca, e a acutilância do olhar revela-se devastadora para o duplo universo em que o director do Instituto Alemão tinha de se mover, antes e depois do 25 de Abril: o alemão da diplomacia (que detestava) e um certo pequeno mundo português acomodado, hipócrita, marialva e snobe de fins de sessenta e inícios de setenta. A boa sociedade portuguesa é implacavelmente posta a nu, e não aguenta a caricatura; ainda hoje, ao lê-lo, se sentirá ressentida. A não-sociedade, os grupos de teatro independentes (mas dependentes de uma censura mesquinha), os intelectuais marginalizados, os escritores presos ou amordaçados, merecem desde logo o seu acolhimento generoso, e algo ingénuo, aqui e ali mesmo blasé. Mas o olhar de fora apanha-nos todos os fracos e tiques, e toca, para o melhor e para o pior, no mais fundo do «modo de ser português», que, por outro lado, o estrangeiro admira.            
É desta matéria – e da do próprio dia a dia do seu Instituto, lugar de acção e pedra de toque para toda a sua intervenção cultural – que se fazem os Diários de Curt Mayer-Clason. O homem e o livro formam uma unidade e apresentam-se-me hoje, na releitura, na reescrita da tradução e na rememoração de muitos episódios que também vivi, como um todo heterodoxo e assistemático, colorido e vibrante, sem deixar de ter uma linha de pensamento clara. Estes Diários lêem-se como uma narrativa empolgante, cheia de suspense, ironia e humor. Os episódios podiam vir de um roman à clé, de uma história policial, de uma narrativa psicológica ou de um perspicaz relato de costumes de um país, sob a lupa implacável, rigorosa e generosa, de um observador vindo de fora, que não conhece os hábitos, os problemas, as manhas do lugar e os vai aprendendo rapidamente dia a dia. O resultado é um retrato único de Portugal e dos Portugueses antes e depois de Abril – fascinante, reverberante, apaixonado e crítico, e as mais das vezes intuitivamente certeiro. E é também um retrato bastante fiel do Curt Meyer-Clason que conheci nos anos de que se ocupam os seus Diários Portugueses.

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