DAS MÄRCHEN
Uma ópera de Emmanuel Nunes
Uma ópera de Emmanuel Nunes
Será apresentada no dia 25 de Janeiro, em estreia absoluta no S. Carlos, a ópera de Emmanuel Nunes Das Märchen, cujo libreto (que traduzi para o programa) se baseia no Conto da Serpente Verde, uma pequena obra de Goethe paradigmática do género.
Emmanuel Nunes escreveu, apresentou e publicou já uma peça longa – Épures du serpent vert II, estreada no Grande Auditório da Fundação Gulbenkian em 18 de Fevereiro de 2002 – que corresponde a duas partes de um das cenas desta ópera.
Eu próprio já tinha traduzido e comentado o Conto de Goethe, na edição em vários volumes que fiz para o Círculo de Leitores (depois também editada pela Relógio d'Água), e deixo aqui uma parte desse comentário, que situa a obra no contexto das suas múltiplas relações com a obra de Goethe e a época:
Emmanuel Nunes escreveu, apresentou e publicou já uma peça longa – Épures du serpent vert II, estreada no Grande Auditório da Fundação Gulbenkian em 18 de Fevereiro de 2002 – que corresponde a duas partes de um das cenas desta ópera.
Eu próprio já tinha traduzido e comentado o Conto de Goethe, na edição em vários volumes que fiz para o Círculo de Leitores (depois também editada pela Relógio d'Água), e deixo aqui uma parte desse comentário, que situa a obra no contexto das suas múltiplas relações com a obra de Goethe e a época:
Um produto da imaginação e dos tempos
O Conto da Serpente Verde, que no original se chama simples e paradigmaticamente Märchen (Conto maravilhoso), é um dos textos mais enigmáticos de Goethe. Apesar das insistências de alguns contemporâneos, que muitas vezes tiveram de se ficar pela sua interpretação – manifestamente insuficiente – como puro jogo da fantasia, «forma pela forma», «ideal da forma pura» (Wilhelm von Humboldt, carta a Goethe, de 9 de Fevereiro de 1796), Goethe sempre se negou a fornecer qualquer «chave» de leitura unívoca, ficando-se antes por respostas deliberadamente ambíguas ou indisfarçadamente irónicas. A Humboldt responde-lhe apenas que o Conto é um texto «simultaneamente pleno de significação e que se furta à significação» (carta de 27 de Maio de 1796); a Schiller, quando o envia para publicação na revista Die Horen, escreve que «as dezoito figuras são outros tantos enigmas» (carta de 26 de Setembro de 1795); e entre as célebres Xénias, os poemas satíricos escritos de parceria por Goethe e Schiller nestes anos, aparece uma sobre este conto que mantém esse tom desconcertante:
Mais de vinte personagens entram na acção do Conto.
«Pois é, e o que é que elas fazem?» – O Conto, meu amigo!
É claro que o significado de uma constelação simbólica como esta – já que não se trata de mera alegoria de uma ideia – não pode residir nesta auto-referencialidade de um texto entendido como puro «produto da imaginação» (Goethe a Schiller, 17 de Agosto de 1795). O Märchen é desconcertante sobretudo devido a um traço essencial da sua construção e do seu estilo: o carácter espontâneo e natural, sem qualquer mediação, com que as sequências narrativas se encadeiam, e a espantosa cristalinidade de estilo a servir uma matéria, afinal, de grande densidade simbólica. As leituras de um texto com um grau de elementaridade como este terão de ser múltiplas, e é isto, na verdade, o que tem acontecido: nele tanto podemos encontrar um espelho de «toda a história natural da humanidade» (o compositor Reichardt, numa recensão de 1796), como uma «profecia» política (Goethe ao Príncipe August von Gotha, em 21 de Dezembro de 1795) ou uma transfiguração literária do processo de maturação da Obra alquímica, «glorificando de múltiplas maneiras o crescimento e a realização do Espírito no homem» (Yvette Centeno, A Simbologia Alquímica no Conto da Serpente Verde de Goethe. Lisboa: Universidade Nova, 1976). Não têm faltado também as interpretações mais limitativas, ao que me parece contra o espírito e a letra de uma obra tão aberta como esta, designadamente as que pretendem ver no Conto «um discurso poético sobre a essência e a função da literatura», «uma peça didáctica para artistas» (Bernd Witte). Durante muito tempo, este conto aparentemente intemporal foi lido como mais uma «resposta» de Goethe, ou do chamado «Classicismo alemão», à Revolução Francesa e aos seus efeitos.
A relação com a temporalidade, tão importante em Goethe (e que nele funda quase sempre o sentido universal da obra), parece-me ser incontornável neste caso. Não fundamentaria, no entanto, essa inserção no real histórico em leituras mais ou menos arbitrárias de vários elementos simbólicos do texto (legitimadas, no entanto, pelo ponto de vista assumido e pela própria abertura hermenêutica sancionada por Goethe), mas antes nos documentos que permitem reconstituir as condições concretas da génese, da inserção estrutural e das contingências editoriais do Märchen enquanto parte inalienável que é de um todo maior, o ciclo de novelas que Goethe designa de Unterhaltungen deutscher Ausgewanderten (Conversas de Exilados Alemães), e que publica, anonimamente (este pormenor parece-me muito importante) e em «folhetim», na revista Die Horen, dirigida por Schiller. A história editorial deste ciclo de narrativas pode ser altamente esclarecedora da intenção política do conjunto, incluindo o Märchen. Destacaria dois factos particularmente pertinentes neste contexto: em primeiro lugar, a necessidade de encarar as contraditórias relações de Goethe com a Revolução Francesa em função da evolução do próprio processo revolucionário (a redacção e publicação das Conversas coincide com a fase pós-jacobina do Directório e da Paz de Basileia); depois, a natureza, desde início problemática, da pretensa «amizade» entre Goethe e Schiller: a publicação simultânea, em Die Horen, das Conversas de Goethe, directamente centradas nos acontecimentos políticos dos anos de 1792-93, e das Cartas sobre a Educação Estética do Ser Humano, de Schiller, redigidas no espírito apolítico do programa da revista, constitui a primeira prova real do abismo que separava os dois autores, e de uma vontade de escrita que em Goethe se funda sempre na experiência, segundo o lema que o orienta depois do regresso de Itália: «o verdadeiro ideal é o espírito do real».
Uma leitura do Conto da Serpente Verde como parábola da situação histórica no momento da viragem para uma nova era, depois da Revolução e do Terror, e como utopia política goethiana, típica da sua posição de compromisso, poder legitimar-se por meio de uma análise exacta, ainda que necessariamente breve, de três aspectos que envolvem a sua história editorial e a natureza particular do seu simbolismo: a tese integrativa do Conto quanto à sua relação com o ciclo das Conversas de Exilados Alemães; a posição deliberadamente anti-schilleriana (isto é, mais pragmática do que idealista e mais socializante do que estetizante) do contributo de Goethe para a revista Die Horen; e as «ligações francesas» (a que hoje poderíamos chamar a French connection das histórias de Goethe), nada inocentes no momento em que surgem, da matéria das novelas e sobretudo do simbolismo do Conto.
Na verdade, e para concretizar já esta última sugestão de uma French connection, cinco das sete histórias que Goethe conta remontam originalmente a matéria francesa, uma falta de originalidade e de «seriedade» que escandaliza a amiga Charlotte von Stein, que escreve à mulher de Schiller: «Parece que Goethe deixou de levar a sério a escrita» (carta de 19 de Fevereiro de 1795). O próprio Conto da Serpente Verde revela indesmentíveis aproveitamentos do conto de Voltaire sobre O Touro Branco (que Goethe parece confirmar nas alusões ao autor do Candide em conversa com Riemer, em 21 de Março de 1809), e voltairiana é também a mensagem final do Märchen de Goethe, com a investidura do jovem príncipe em monarca esclarecido. Mas há mais relações do simbolismo do Conto com a Revolução e a França: o grande rio tem sido quase unanimemente interpretado como sendo o Reno, as duas margens como a Alemanha e a França; o quarto rei e o seu desmoronamento evocam a morte de Luís XVI, o rei «impuro» (e os outros três serão as três idades do mundo, a Antiguidade filosófica, a Idade Média religiosa e o Absolutismo político, a que se segue a promessa de uma nova era sem divisões, de harmonia social, mas ainda e sempre sob a égide de um monarca!); na nova era não haverá lugar para os fogos-fátuos, representantes irrequietos e pouco sensatos do esp¡rito das Luzes vindo de França; francesa é também a inspiração do nome da princesa, Lilie no original, «Flor-de-Lis», a flor heráldica dos Bourbons, e o seu jardim geométrico e estéril é obviamente um jardim francês; a água que corre no rio (da História) traz ainda o negrume dos anos de Revolução e Terror, que contamina a mão da mulher; o gigante que provoca desordem e confusão vem também desses fundos próximos da História, superada finalmente pela nova forma artística e «memorial» que assume, ao ser transformado em relógio de sol...
A autonomia simbólica do Conto da Serpente Verde revela-se como autonomia relativa, se considerarmos também a sua inserção estrutural no todo que é o ciclo de narrativas enquadradas por uma situação social e um acontecimento histórico concretos: a Baronesa e familiares, obrigados a deixar a sua mansão devido à passagem do Reno pelas tropas francesas em 1792, contam histórias para – à semelhança do que se passa nos modelos anteriores de Bocaccio, Chaucer, Cervantes – passar o tempo e, mais do que isso, interpretar e comentar (num modo literário e simbólico, é óbvio) os tempos que correm!
Da Revolução Francesa se fala logo no início, e as posições dos intervenientes são por vezes radicalmente antagónicas. O Conto da Serpente Verde é a última das histórias a ser narrada, tem uma clara intenção conciliadora e aberta (o Velho que a conta diz que ela faz lembrar «tudo e coisa nenhuma»), e não pode deixar de ser lida na relação com o enquadramento estrutural e com as narrativas que a antecedem. Esta parece, aliás, ser a intenção do próprio Goethe, que, admitindo, é certo, que este Conto tem uma natureza diferente de algumas das histórias de amor ou de fantasmas anteriores, não deixa, por mais de uma vez, de acentuar o seu lugar como fecho de um conjunto. Assim é que, quando publica o Märchen no décimo número da revista de Schiller, o faz com o subtítulo Zur Fortsetzung der Unterhaltungen deutscher Ausgewanderten (Continuação das Conversas de Exilados Alemães), acompanhando o envio do manuscrito a Schiller de uma carta em que estabelece relações directas entre acontecimentos políticos do momento e o simbolismo do Templo e da Ponte na canção de Flor-de-Lis (carta de 26 de Setembro de 1795). Pouco antes do envio do texto, já Goethe anunciava a Schiller a sua intenção de «fechar as 'Conversas de Exilados Alemães' com o Conto, o que seria uma boa solução, que lhes permitiria, através de um tal produto da imaginação, como que perder-se no infinito» (carta de 17 de Agosto de 1795) – a expressão clara do desejo de Goethe de, por meio de uma construção hermético-simbólica como o Conto, sugerir uma abertura humana e universal para a lição da História recente. A «história final das Conversas» (é assim que o Märchen aparece ainda referido na tabela interpretativa comparada das várias figuras do conto que Goethe manda redigir e corrige, em 24 de Junho de 1816) é escrita para, de forma cifrada mas descodificável à luz da simbologia alquímica familiar a Goethe, dar expressão à sua ideologia evolucionista, já que o processo alquímico é ele próprio, por natureza, avesso à revolução e a saltos, processo de lenta maturação e transformação por fases e graus. A transmutação hermético-alquímica e o sacrifício final da Serpente são aqui espelho e parábola (Gleichnis) da utopia do Goethe clássico e das suas convicções políticas de sempre. Todo o decénio que se segue à Revolução Francesa (até ao «drama político» Die natürliche Tochter/ A Bastarda, de 1804) está cheio de textos, muitos deles fragmentários, que procuram elaborar esteticamente e superar a experiência da Revolução. Desta vez – e é o próprio Goethe quem nisso insiste em carta a Schiller – anonimamente. Goethe será o único colaborador anónimo da revista, ao que me parece por uma dupla razão. Por um lado, para não mostrar publicamente uma dissensão em relação à sua «aliança» recente com Schiller, uma vez que as Conversas e o próprio Conto, no tratamento indisfarçado que faziam dos acontecimentos mais quentes do momento, iam frontalmente contra a «castidade nos juízos políticos» e a decisão de se alhear dos factos históricos do dia, programaticamente anunciadas por Schiller na abertura da revista Die Horen. O anonimato explica-se ainda pela intenção de Goethe em colaborar com um texto abertamente político e claramente afecto «ao antigo regime» (Reichardt), por parte do Ministro de Weimar que não quer comprometer a sua situação. É este o sentido das linhas da carta em que Goethe aceita colaborar, mas com a condição do anonimato: «Deixo aos outros colaboradores a decisão sobre os seus contributos, mas no que respeita aos meus tenho de lhe pedir que os publique todos anonimamente; só assim me será possível participar na sua revista, com inteira liberdade e sem constrangimentos nas minhas restantes ocupações» (carta de 6 de Dezembro de 1794).
A clara demarcação de Goethe em relação ao empreendimento de Schiller confirma-se se se comparar o programa «reformador» proposto por cada um nos primeiros números da revista: Goethe nas Conversas (incluindo o Märchen), e Schiller sobretudo nas primeiras nove das Cartas sobre a Educação Estética do Ser Humano, escritas e publicadas em rigorosa simultaneidade com as histórias de Goethe. Os conflitos inerentes a uma tal coabitação são mesmo previstos por ambos antes de a publicação se iniciar: Goethe comenta com alguma ironia as Cartas filosóficas que Schiller lhe envia, em carta de 26 de Outubro de 1794, e para Schiller o facto de ter de publicar o enquadramento narrativo das Conversas de Goethe, que remete directamente para a Revolução, é uma verdadeira «catástrofe» (carta a Körner, de 5 de Dezembro de 1794).
O Conto da Serpente Verde, com que culminam as Conversas, pôde assim ser lido recentemente como uma resposta de Goethe às Cartas de Schiller. De facto, as preocupações sociais e históricas expressas no Märchen (para além das «ligações francesas», no sentido da «solidariedade de todas as forças em acção»), que Goethe terá sugerido a Schiller como sendo a sua mensagem de fundo, o espírito da sociabilidade (Geselligkeit) que atravessa e fundamenta as histórias, a ideia regulativa da «formação social» dos indivíduos, contrasta com o programa utopista schilleriano de uma revolução pela «educação estética». A filosofia política e da História subjacente às duas posições é radicalmente diversa: enquanto o Märchen de Goethe parece sugerir a necessidade de uma utopia para o presente, através da restauração concreta da harmonia pela sociabilidade (o entendimento entre classes, a aristocracia e a burguesia, mas ainda sem carácter liberal-democrático, porque o povo é uma massa passiva, e está de fora: veja-se o final do Conto), as Cartas de Schiller dão expressão a uma utopia – o «Estado estético» – que é uma «tarefa para mais de um século», e propõe-se alcançar esse telos ainda ideal através de «uma aliança do possível com o necessário» (Nona Carta). O horizonte da utopia de Schiller é o «tempo infinito», o de Goethe são os tempos históricos da moldura narrativa do seu ciclo, o que desde logo legitima, e quase pede, a sua leitura política.
Mas sabemos que o «político» em Goethe é sempre mediado de forma estética, e isso acontece também com O Conto da Serpente Verde. Com ele evidencia-se o papel insubstituível da literatura e da arte como meio de mostrar, imagética e simbolicamente, as possibilidades de harmonização social através da aquisição e da potenciação de uma eticidade que, também neste Märchen, se alimenta dos motivos centrais do Amor (que «não reina, mas cria, e isso é mais») e da renúncia (um princípio goethiano aqui exemplarmente consubstanciado na figura da Serpente Verde).
Mais de vinte personagens entram na acção do Conto.
«Pois é, e o que é que elas fazem?» – O Conto, meu amigo!
É claro que o significado de uma constelação simbólica como esta – já que não se trata de mera alegoria de uma ideia – não pode residir nesta auto-referencialidade de um texto entendido como puro «produto da imaginação» (Goethe a Schiller, 17 de Agosto de 1795). O Märchen é desconcertante sobretudo devido a um traço essencial da sua construção e do seu estilo: o carácter espontâneo e natural, sem qualquer mediação, com que as sequências narrativas se encadeiam, e a espantosa cristalinidade de estilo a servir uma matéria, afinal, de grande densidade simbólica. As leituras de um texto com um grau de elementaridade como este terão de ser múltiplas, e é isto, na verdade, o que tem acontecido: nele tanto podemos encontrar um espelho de «toda a história natural da humanidade» (o compositor Reichardt, numa recensão de 1796), como uma «profecia» política (Goethe ao Príncipe August von Gotha, em 21 de Dezembro de 1795) ou uma transfiguração literária do processo de maturação da Obra alquímica, «glorificando de múltiplas maneiras o crescimento e a realização do Espírito no homem» (Yvette Centeno, A Simbologia Alquímica no Conto da Serpente Verde de Goethe. Lisboa: Universidade Nova, 1976). Não têm faltado também as interpretações mais limitativas, ao que me parece contra o espírito e a letra de uma obra tão aberta como esta, designadamente as que pretendem ver no Conto «um discurso poético sobre a essência e a função da literatura», «uma peça didáctica para artistas» (Bernd Witte). Durante muito tempo, este conto aparentemente intemporal foi lido como mais uma «resposta» de Goethe, ou do chamado «Classicismo alemão», à Revolução Francesa e aos seus efeitos.
A relação com a temporalidade, tão importante em Goethe (e que nele funda quase sempre o sentido universal da obra), parece-me ser incontornável neste caso. Não fundamentaria, no entanto, essa inserção no real histórico em leituras mais ou menos arbitrárias de vários elementos simbólicos do texto (legitimadas, no entanto, pelo ponto de vista assumido e pela própria abertura hermenêutica sancionada por Goethe), mas antes nos documentos que permitem reconstituir as condições concretas da génese, da inserção estrutural e das contingências editoriais do Märchen enquanto parte inalienável que é de um todo maior, o ciclo de novelas que Goethe designa de Unterhaltungen deutscher Ausgewanderten (Conversas de Exilados Alemães), e que publica, anonimamente (este pormenor parece-me muito importante) e em «folhetim», na revista Die Horen, dirigida por Schiller. A história editorial deste ciclo de narrativas pode ser altamente esclarecedora da intenção política do conjunto, incluindo o Märchen. Destacaria dois factos particularmente pertinentes neste contexto: em primeiro lugar, a necessidade de encarar as contraditórias relações de Goethe com a Revolução Francesa em função da evolução do próprio processo revolucionário (a redacção e publicação das Conversas coincide com a fase pós-jacobina do Directório e da Paz de Basileia); depois, a natureza, desde início problemática, da pretensa «amizade» entre Goethe e Schiller: a publicação simultânea, em Die Horen, das Conversas de Goethe, directamente centradas nos acontecimentos políticos dos anos de 1792-93, e das Cartas sobre a Educação Estética do Ser Humano, de Schiller, redigidas no espírito apolítico do programa da revista, constitui a primeira prova real do abismo que separava os dois autores, e de uma vontade de escrita que em Goethe se funda sempre na experiência, segundo o lema que o orienta depois do regresso de Itália: «o verdadeiro ideal é o espírito do real».
Uma leitura do Conto da Serpente Verde como parábola da situação histórica no momento da viragem para uma nova era, depois da Revolução e do Terror, e como utopia política goethiana, típica da sua posição de compromisso, poder legitimar-se por meio de uma análise exacta, ainda que necessariamente breve, de três aspectos que envolvem a sua história editorial e a natureza particular do seu simbolismo: a tese integrativa do Conto quanto à sua relação com o ciclo das Conversas de Exilados Alemães; a posição deliberadamente anti-schilleriana (isto é, mais pragmática do que idealista e mais socializante do que estetizante) do contributo de Goethe para a revista Die Horen; e as «ligações francesas» (a que hoje poderíamos chamar a French connection das histórias de Goethe), nada inocentes no momento em que surgem, da matéria das novelas e sobretudo do simbolismo do Conto.
Na verdade, e para concretizar já esta última sugestão de uma French connection, cinco das sete histórias que Goethe conta remontam originalmente a matéria francesa, uma falta de originalidade e de «seriedade» que escandaliza a amiga Charlotte von Stein, que escreve à mulher de Schiller: «Parece que Goethe deixou de levar a sério a escrita» (carta de 19 de Fevereiro de 1795). O próprio Conto da Serpente Verde revela indesmentíveis aproveitamentos do conto de Voltaire sobre O Touro Branco (que Goethe parece confirmar nas alusões ao autor do Candide em conversa com Riemer, em 21 de Março de 1809), e voltairiana é também a mensagem final do Märchen de Goethe, com a investidura do jovem príncipe em monarca esclarecido. Mas há mais relações do simbolismo do Conto com a Revolução e a França: o grande rio tem sido quase unanimemente interpretado como sendo o Reno, as duas margens como a Alemanha e a França; o quarto rei e o seu desmoronamento evocam a morte de Luís XVI, o rei «impuro» (e os outros três serão as três idades do mundo, a Antiguidade filosófica, a Idade Média religiosa e o Absolutismo político, a que se segue a promessa de uma nova era sem divisões, de harmonia social, mas ainda e sempre sob a égide de um monarca!); na nova era não haverá lugar para os fogos-fátuos, representantes irrequietos e pouco sensatos do esp¡rito das Luzes vindo de França; francesa é também a inspiração do nome da princesa, Lilie no original, «Flor-de-Lis», a flor heráldica dos Bourbons, e o seu jardim geométrico e estéril é obviamente um jardim francês; a água que corre no rio (da História) traz ainda o negrume dos anos de Revolução e Terror, que contamina a mão da mulher; o gigante que provoca desordem e confusão vem também desses fundos próximos da História, superada finalmente pela nova forma artística e «memorial» que assume, ao ser transformado em relógio de sol...
A autonomia simbólica do Conto da Serpente Verde revela-se como autonomia relativa, se considerarmos também a sua inserção estrutural no todo que é o ciclo de narrativas enquadradas por uma situação social e um acontecimento histórico concretos: a Baronesa e familiares, obrigados a deixar a sua mansão devido à passagem do Reno pelas tropas francesas em 1792, contam histórias para – à semelhança do que se passa nos modelos anteriores de Bocaccio, Chaucer, Cervantes – passar o tempo e, mais do que isso, interpretar e comentar (num modo literário e simbólico, é óbvio) os tempos que correm!
Da Revolução Francesa se fala logo no início, e as posições dos intervenientes são por vezes radicalmente antagónicas. O Conto da Serpente Verde é a última das histórias a ser narrada, tem uma clara intenção conciliadora e aberta (o Velho que a conta diz que ela faz lembrar «tudo e coisa nenhuma»), e não pode deixar de ser lida na relação com o enquadramento estrutural e com as narrativas que a antecedem. Esta parece, aliás, ser a intenção do próprio Goethe, que, admitindo, é certo, que este Conto tem uma natureza diferente de algumas das histórias de amor ou de fantasmas anteriores, não deixa, por mais de uma vez, de acentuar o seu lugar como fecho de um conjunto. Assim é que, quando publica o Märchen no décimo número da revista de Schiller, o faz com o subtítulo Zur Fortsetzung der Unterhaltungen deutscher Ausgewanderten (Continuação das Conversas de Exilados Alemães), acompanhando o envio do manuscrito a Schiller de uma carta em que estabelece relações directas entre acontecimentos políticos do momento e o simbolismo do Templo e da Ponte na canção de Flor-de-Lis (carta de 26 de Setembro de 1795). Pouco antes do envio do texto, já Goethe anunciava a Schiller a sua intenção de «fechar as 'Conversas de Exilados Alemães' com o Conto, o que seria uma boa solução, que lhes permitiria, através de um tal produto da imaginação, como que perder-se no infinito» (carta de 17 de Agosto de 1795) – a expressão clara do desejo de Goethe de, por meio de uma construção hermético-simbólica como o Conto, sugerir uma abertura humana e universal para a lição da História recente. A «história final das Conversas» (é assim que o Märchen aparece ainda referido na tabela interpretativa comparada das várias figuras do conto que Goethe manda redigir e corrige, em 24 de Junho de 1816) é escrita para, de forma cifrada mas descodificável à luz da simbologia alquímica familiar a Goethe, dar expressão à sua ideologia evolucionista, já que o processo alquímico é ele próprio, por natureza, avesso à revolução e a saltos, processo de lenta maturação e transformação por fases e graus. A transmutação hermético-alquímica e o sacrifício final da Serpente são aqui espelho e parábola (Gleichnis) da utopia do Goethe clássico e das suas convicções políticas de sempre. Todo o decénio que se segue à Revolução Francesa (até ao «drama político» Die natürliche Tochter/ A Bastarda, de 1804) está cheio de textos, muitos deles fragmentários, que procuram elaborar esteticamente e superar a experiência da Revolução. Desta vez – e é o próprio Goethe quem nisso insiste em carta a Schiller – anonimamente. Goethe será o único colaborador anónimo da revista, ao que me parece por uma dupla razão. Por um lado, para não mostrar publicamente uma dissensão em relação à sua «aliança» recente com Schiller, uma vez que as Conversas e o próprio Conto, no tratamento indisfarçado que faziam dos acontecimentos mais quentes do momento, iam frontalmente contra a «castidade nos juízos políticos» e a decisão de se alhear dos factos históricos do dia, programaticamente anunciadas por Schiller na abertura da revista Die Horen. O anonimato explica-se ainda pela intenção de Goethe em colaborar com um texto abertamente político e claramente afecto «ao antigo regime» (Reichardt), por parte do Ministro de Weimar que não quer comprometer a sua situação. É este o sentido das linhas da carta em que Goethe aceita colaborar, mas com a condição do anonimato: «Deixo aos outros colaboradores a decisão sobre os seus contributos, mas no que respeita aos meus tenho de lhe pedir que os publique todos anonimamente; só assim me será possível participar na sua revista, com inteira liberdade e sem constrangimentos nas minhas restantes ocupações» (carta de 6 de Dezembro de 1794).
A clara demarcação de Goethe em relação ao empreendimento de Schiller confirma-se se se comparar o programa «reformador» proposto por cada um nos primeiros números da revista: Goethe nas Conversas (incluindo o Märchen), e Schiller sobretudo nas primeiras nove das Cartas sobre a Educação Estética do Ser Humano, escritas e publicadas em rigorosa simultaneidade com as histórias de Goethe. Os conflitos inerentes a uma tal coabitação são mesmo previstos por ambos antes de a publicação se iniciar: Goethe comenta com alguma ironia as Cartas filosóficas que Schiller lhe envia, em carta de 26 de Outubro de 1794, e para Schiller o facto de ter de publicar o enquadramento narrativo das Conversas de Goethe, que remete directamente para a Revolução, é uma verdadeira «catástrofe» (carta a Körner, de 5 de Dezembro de 1794).
O Conto da Serpente Verde, com que culminam as Conversas, pôde assim ser lido recentemente como uma resposta de Goethe às Cartas de Schiller. De facto, as preocupações sociais e históricas expressas no Märchen (para além das «ligações francesas», no sentido da «solidariedade de todas as forças em acção»), que Goethe terá sugerido a Schiller como sendo a sua mensagem de fundo, o espírito da sociabilidade (Geselligkeit) que atravessa e fundamenta as histórias, a ideia regulativa da «formação social» dos indivíduos, contrasta com o programa utopista schilleriano de uma revolução pela «educação estética». A filosofia política e da História subjacente às duas posições é radicalmente diversa: enquanto o Märchen de Goethe parece sugerir a necessidade de uma utopia para o presente, através da restauração concreta da harmonia pela sociabilidade (o entendimento entre classes, a aristocracia e a burguesia, mas ainda sem carácter liberal-democrático, porque o povo é uma massa passiva, e está de fora: veja-se o final do Conto), as Cartas de Schiller dão expressão a uma utopia – o «Estado estético» – que é uma «tarefa para mais de um século», e propõe-se alcançar esse telos ainda ideal através de «uma aliança do possível com o necessário» (Nona Carta). O horizonte da utopia de Schiller é o «tempo infinito», o de Goethe são os tempos históricos da moldura narrativa do seu ciclo, o que desde logo legitima, e quase pede, a sua leitura política.
Mas sabemos que o «político» em Goethe é sempre mediado de forma estética, e isso acontece também com O Conto da Serpente Verde. Com ele evidencia-se o papel insubstituível da literatura e da arte como meio de mostrar, imagética e simbolicamente, as possibilidades de harmonização social através da aquisição e da potenciação de uma eticidade que, também neste Märchen, se alimenta dos motivos centrais do Amor (que «não reina, mas cria, e isso é mais») e da renúncia (um princípio goethiano aqui exemplarmente consubstanciado na figura da Serpente Verde).
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