30 outubro, 2007


DESENHO DE SOMBRAS



O belo não é uma substância em si, mas apenas um desenho de sombras.
(Junichiro Tanizaki, Elogio da Sombra)

Fala verdade quem diz sombra.
(Paul Celan)



... Numa cultura avessa ao psicologismo ocidental, como é a japonesa de Junichiro Tanizaki, o clássico autor desse livro quase de culto que é o Elogio da Sombra, não há lugar para a sombra como projecção externa do corpo (ou do rosto) de um eu. A sombra é atributo intrínseco de um objecto, de um lugar, de um ambiente, dos próprios alimentos e dos rituais da sua fruição. A sombra é o silêncio da luz; e se esta revela e retira o mistério às coisas, já a sombra é deliberadamente usada como catalizador do enigma das coisas e dos próprios sentidos. Na penumbra, todos eles, incluindo o da visão, se apuram e refinam, ajustando-se a uma cultura, essencialmente marcada por parâmetros estéticos, da «luz indigente» ou «cansada» (Tanizaki). Estamos no âmbito de uma estética que cria um culto das sombras das coisas neste mundo, e nos antípodas do ruído berrante e da metafísica da sombra, sempre mais conotados, quer com o romance (a luz crua e mentirosa da escrita, segundo Pascal Quignard em Les Ombres errantes), quer com o mundo dos mortos e da «alma», tal como são concebidos no mundo ocidental.


[...]
Permanece, entretanto, em aberto a questão do valor – de outros valores –, quer da sombra, quer da alma. Há uma «parte maldita» da questão na tradição ocidental, que não interessou a Chamisso [o autor alemão da romântica história do homem sem sombra]. Do lado da alma, ela passa por um filósofo recalcado e silenciado pela logocracia cartesiana e por todo o período das Luzes (apesar de reabilitado, de forma nem sempre declarada, pelo primeiro Romantismo alemão): esse filósofo é Espinosa, com a sua leitura da Alma como uma ideia que é um Corpo, como «a ideia de uma coisa singular existente em acto» (Ética, Parte II, proposição XI). Do lado da sombra, essa parte maldita manifesta-se em várias formas do «invisível que não brilha» e de uma existência deliberadamente vivida no «ângulo morto do mundo», que desde sempre, e hoje mais do que nunca, geraram diversas formas de «ódio contra aqueles que reivindicam um pouco de sombra». As aspas vêm de Pascal Quignard, ainda em Les Ombres errantes, ao lembrar como La part maudite, de Georges Bataille, é um dos mais belos «livros da sombra». E lembra ainda: que «nós nos construímos na sombra», e somos, desde o nascimento, «sombras de prazer»; que é preciso «opor as sombras às imagens» (e o mesmo seria dizer: opor o trabalho silencioso dos poetas, dos melancólicos, dos místicos e dos criminosos geniais ao reino de luz das TVs); finalmente, que é a sombra que propicia o pensamento mais livre, porque menos convencido de que é detentor de verdades («o pensamento mais livre e impreciso e vacilante que se ergue na cabeça humana quando ela mergulha na sombra…»). Os Modernos sentiram, na viragem para o século XX, esta atracção da sombra e da sua ambiguidade estimulantemente criadora. Enquanto Chamisso se decide por resolver, num quadro de moral burguesa e cristã, o dualismo indeciso do seu herói, Sá-Carneiro, por exemplo, cria em A Confissão de Lúcio aquela figura de ambiguidade e mistério que é Marta, a «mulher de sombra», material-imaterial, sem memória nem passado, e antepõe à novela a significativa epígrafe de Pessoa que diz: «Assim éramos nós obscuramente dois…»
Mais perto de nós, e do espírito que informa o livro de Quignard, Maria Gabriela Llansol define assim o lugar da sombra – o elemento original, absoluto e seminal, de onde nasceu a luz, aquela «parte da parte que a princípio tudo era, / Uma parte da treva que a luz gera, / A luz altiva que agora, em acesa luta, / À Noite-mãe o primado disputa», como de si diz Mefistófeles no Fausto de Goethe – num mundo de luz cegante, enganadora e ruidosa:

«Quereis saber o que penso, meu caro Rafael? Penso que a luz não revela, penso que por ela posso ver como o visível se torna mais meu, mais contraste, penso que no meu peito aberto, independente do arfar, os contornos da sombra geram uma cor brilhante e pálida, a cor da pele, que desce de preferência por aquela cama encostada à parede, penso, se quereis saber, que o argumento dos frades e da filosofia é perfeitamente reversível, sente-se aí e escreva “há uma virtude estranha na sombra”, sim, força, meu caro, “quase todo o mal está do lado do luminoso”…»

(Mais sobre sombras em: J. B., «Um desenho de sombras», posfácio a Adelbert von Chamisso, A História Fabulosa de Peter Schlemihl. Assírio & Alvim, 2005).
Todas as fotos são de Vina Santos, incansável caçadora de sombras.

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