18 julho, 2007

UMA INQUIETA CERTEZA... (7)

A NATUREZA E A PAISAGEM
A POESIA E A FOTOGRAFIA

(Um tema impossível, com gomas bicromatadas em fundo)




Fiama

A poesia de David (vd. post de 16 de Junho), com um alto sentido da forma, como que encerra a experiência (dos corpos) nessa forma; Fiama, nos livros dos últimos anos, e numa linha inconfundivelmente órfica, pratica uma poesia da contaminação de tudo por tudo — ou do desejo disso —, incluindo o próprio poema, que não objectiva o mundo, mas entra em ligação (re-ligação) com ele. Há um derrame, um sopro que informa e rege também o próprio poema (e que é visível na forma discursiva e torrencial de alguns), e com ele os corpos vivos, as coisas mudas e os ritmos eternos do cosmos.


A lei do poema é a lei de um monismo essencial, em que cada «imagem» (vd. «Canto das imagens») é a manifestação da concretude única das «coisas parcas, poucas, singulares», que, sendo únicas, participam de uma unidade perdida («Ao princípio era só uma em cada olhar»), de uma anima mundi que a fotografia — escreveu Baudelaire em «Le public moderne et la photographie», de 1859: mas a sua relação com a fotografia, e com fotógrafos seus contemporâneos como Nadar, é ambígua) — terá vindo profanar e destruir (as fotografias que aqui se incluem talvez provem precisamente o contrário!).


Cada poema (vd. Epístolas e Memorandos, 1996) é agora um pequeno e perfeito ritual celebratório que se inscreve numa genealogia órfica: a do poeta que se dispõe a ouvir para dar voz (vejam-se os finais de muitos poemas), e com isso traçar a ponte que une começo e fim, as pequenas coisas e os ecos cósmicos da Criação, em Cantos onde «todos os contrários são unidos». Em Epístolas e Memorandos essa sabedoria dos elementos e das coisas últimas da natureza parece que se refina e a pose poética torna-se ainda mais «franciscana»: foi um livro escrito «nos intervalos da respiração» do outro (Cantos do Canto, 1995), e nele se encontram registos do olhar dirigidos ao Ser e à memória dele, em poemas do ocaso do dia (vd. «Memorando de umas sombras»), últimos cantos, cantos do fim: porque são cantos de quem sabe ou busca as coisas últimas do mundo e da natureza, a escrita de cada coisa que nela está à espera do oficiante que lhes confere existência real.


Cada canto quer-se, assim, um «poema para o não-tempo», para uma dimensão que se evola da presença enigmática mas irrecusável das coisas: o bandolim em cima de uma mesa, sem o canto (órfico) que o anima, não sabe onde tem a alma. Como no Rilke das Elegias, atravessa as epístolas e os memorandos o impulso da nomeação (porque «aqui é o tempo do dizível»: Rilke), em dias feitos de «presenças sempre fortes e iguais» («melro, mulher e sombras»). São quadros vivos das criaturas sem voz, com um certo franciscanismo poético na humildade com que se celebra cada uma delas, para a elevar a um sentido que a transcende, de acordo com um princípio (ainda e sempre romântico) de «analogia universal». A esta luz, todo o poema é um poema da Natureza total, presente ainda no mar, que, no seu vai-vem eterno, permite «ouvir o som do início».


Três poemas

Canto das imagens

Ao princípio era só uma em cada olhar

após a grande divisão das águas

e mesmo, segundo disse Baudelaire, a imagem

até ao seu século do real múltiplo

era una, única e própria. Dementes

chamou este cantor aos fotogramas

que roubavam à alma a unicidade
e deram aos olhos frívolos as figuras

plurais, idênticas, dispersivas.

Era somente uma a imagem mística,

dos entes naturais aos transcendentes.

Só uma esta vermelha afelandra

embora as suas irmãs se lhe assemelhem
e desassemelhem, cada uma, sempre.

O concreto pulsava neste ritmo

das coisas parcas, poucas, singulares.

E de repente, nos olhos do poeta

cada coisa reproduziu a imagem

inumeradamente, e a ideia

decaíra no banal prolixo.

Antes, podia hesitar-se entre o modelo

e as sombras de Platão, agora as flores

malignas podem reproduzir-se no mundo

nítidas, iguais, supérfluas.

Eu ainda vejo o olhar antigo de Baudelaire

e cada coisa vibra no seu mito,
e cada imagem cria o seu espírito,

e cada cópia fotográfica muda

na liminarmente máxima diferença.

Ao crítico e amante da Pintura

as dúbias imagens decerto deram

a cada rosto um só outro rosto,

a cada paisagem uma só tela.
Já os vidros, a água, a prata traziam

a incerteza nos traços, como se os olhos
que nos deu a Natureza nos fossem

infiéis. E o poeta pôde resistir
a esta perda das formas consagradas

e consubstanciais das coisas que ainda

ecoam a Criação como o eco cósmico.


[30/10/93]
(Cantos do Canto. Relógio d'Água 1995)


Canto do Génesis


Ao princípio era a luz, depois o céu

azul porque a luz se embebe

nas camadas de ar que olhamos.

Ao princípio era a Paixão e engendrou

do seu sangue os animais, da sua

Cruz as plantas. Era, ao princípio,

o animal-vegetal minúsculo, oculto

no Paraíso, mas omnipresente

desde o ante-princípio. E da argila

ou terra adâmica formou-se a Natureza
e o Homem, banhados pela luz

que recortou linhas e volumes vagos.

Ao princípio era o martírio

e a bênção daquele que trabalha

o seu corpo e o seu pão de sol a sol.
E os frutos fulguraram nessa luz
quando as águas se apartaram

e o mar, até hoje, quebra e requebra a onda

para eu ouvir o som do início.


[30/11/93]

(Cantos do Canto. Relógio d'Água 1995)



Memorando de umas sombras

Termina o dia. O melro, a mulher e as sombas
repartem
entre si o que resta. Ela dança, a preparar a mesa,

como em redor de Vesta. O melro, a olhar o sol vago,

escolhe a folhagem para cumprir o destino.

Ociosas, as sombras perseguem gestos e as formas.


(Epístolas e Memorandos. Relógio d'Água 1996)

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