UMA INQUIETA CERTEZA... (7)
A NATUREZA E A PAISAGEM
A POESIA E A FOTOGRAFIA
(Um tema impossível, com gomas bicromatadas em fundo)
A POESIA E A FOTOGRAFIA
(Um tema impossível, com gomas bicromatadas em fundo)
Fiama
A poesia de David (vd. post de 16 de Junho), com um alto sentido da forma, como que encerra a experiência (dos corpos) nessa forma; Fiama, nos livros dos últimos anos, e numa linha inconfundivelmente órfica, pratica uma poesia da contaminação de tudo por tudo — ou do desejo disso —, incluindo o próprio poema, que não objectiva o mundo, mas entra em ligação (re-ligação) com ele. Há um derrame, um sopro que informa e rege também o próprio poema (e que é visível na forma discursiva e torrencial de alguns), e com ele os corpos vivos, as coisas mudas e os ritmos eternos do cosmos.A lei do poema é a lei de um monismo essencial, em que cada «imagem» (vd. «Canto das imagens») é a manifestação da concretude única das «coisas parcas, poucas, singulares», que, sendo únicas, participam de uma unidade perdida («Ao princípio era só uma em cada olhar»), de uma anima mundi que a fotografia — escreveu Baudelaire em «Le public moderne et la photographie», de 1859: mas a sua relação com a fotografia, e com fotógrafos seus contemporâneos como Nadar, é ambígua) — terá vindo profanar e destruir (as fotografias que aqui se incluem talvez provem precisamente o contrário!).
Cada poema (vd. Epístolas e Memorandos, 1996) é agora um pequeno e perfeito ritual celebratório que se inscreve numa genealogia órfica: a do poeta que se dispõe a ouvir para dar voz (vejam-se os finais de muitos poemas), e com isso traçar a ponte que une começo e fim, as pequenas coisas e os ecos cósmicos da Criação, em Cantos onde «todos os contrários são unidos». Em Epístolas e Memorandos essa sabedoria dos elementos e das coisas últimas da natureza parece que se refina e a pose poética torna-se ainda mais «franciscana»: foi um livro escrito «nos intervalos da respiração» do outro (Cantos do Canto, 1995), e nele se encontram registos do olhar dirigidos ao Ser e à memória dele, em poemas do ocaso do dia (vd. «Memorando de umas sombras»), últimos cantos, cantos do fim: porque são cantos de quem sabe ou busca as coisas últimas do mundo e da natureza, a escrita de cada coisa que nela está à espera do oficiante que lhes confere existência real.
Cada canto quer-se, assim, um «poema para o não-tempo», para uma dimensão que se evola da presença enigmática mas irrecusável das coisas: o bandolim em cima de uma mesa, sem o canto (órfico) que o anima, não sabe onde tem a alma. Como no Rilke das Elegias, atravessa as epístolas e os memorandos o impulso da nomeação (porque «aqui é o tempo do dizível»: Rilke), em dias feitos de «presenças sempre fortes e iguais» («melro, mulher e sombras»). São quadros vivos das criaturas sem voz, com um certo franciscanismo poético na humildade com que se celebra cada uma delas, para a elevar a um sentido que a transcende, de acordo com um princípio (ainda e sempre romântico) de «analogia universal». A esta luz, todo o poema é um poema da Natureza total, presente ainda no mar, que, no seu vai-vem eterno, permite «ouvir o som do início».
Três poemas
Canto das imagens
Ao princípio era só uma em cada olhar
após a grande divisão das águas
e mesmo, segundo disse Baudelaire, a imagem
até ao seu século do real múltiplo
era una, única e própria. Dementes
chamou este cantor aos fotogramas
que roubavam à alma a unicidade
e deram aos olhos frívolos as figuras
plurais, idênticas, dispersivas.
Era somente uma a imagem mística,
dos entes naturais aos transcendentes.
Só uma esta vermelha afelandra
embora as suas irmãs se lhe assemelhem
e desassemelhem, cada uma, sempre.
O concreto pulsava neste ritmo
das coisas parcas, poucas, singulares.
E de repente, nos olhos do poeta
cada coisa reproduziu a imagem
inumeradamente, e a ideia
decaíra no banal prolixo.
Antes, podia hesitar-se entre o modelo
e as sombras de Platão, agora as flores
malignas podem reproduzir-se no mundo
nítidas, iguais, supérfluas.
Eu ainda vejo o olhar antigo de Baudelaire
e cada coisa vibra no seu mito,
e cada imagem cria o seu espírito,
e cada cópia fotográfica muda
na liminarmente máxima diferença.
Ao crítico e amante da Pintura
as dúbias imagens decerto deram
a cada rosto um só outro rosto,
a cada paisagem uma só tela.
Já os vidros, a água, a prata traziam
a incerteza nos traços, como se os olhos
que nos deu a Natureza nos fossem
infiéis. E o poeta pôde resistir
a esta perda das formas consagradas
e consubstanciais das coisas que ainda
ecoam a Criação como o eco cósmico.
[30/10/93]
(Cantos do Canto. Relógio d'Água 1995)
Canto do Génesis
Ao princípio era a luz, depois o céu
azul porque a luz se embebe
nas camadas de ar que olhamos.
Ao princípio era a Paixão e engendrou
do seu sangue os animais, da sua
Cruz as plantas. Era, ao princípio,
o animal-vegetal minúsculo, oculto
no Paraíso, mas omnipresente
desde o ante-princípio. E da argila
ou terra adâmica formou-se a Natureza
e o Homem, banhados pela luz
que recortou linhas e volumes vagos.
Ao princípio era o martírio
e a bênção daquele que trabalha
o seu corpo e o seu pão de sol a sol.
E os frutos fulguraram nessa luz
quando as águas se apartaram
e o mar, até hoje, quebra e requebra a onda
para eu ouvir o som do início.
[30/11/93]
(Cantos do Canto. Relógio d'Água 1995)
Memorando de umas sombras
Termina o dia. O melro, a mulher e as sombas repartem
entre si o que resta. Ela dança, a preparar a mesa,
como em redor de Vesta. O melro, a olhar o sol vago,
escolhe a folhagem para cumprir o destino.
Ociosas, as sombras perseguem gestos e as formas.
(Epístolas e Memorandos. Relógio d'Água 1996)
Ao princípio era só uma em cada olhar
após a grande divisão das águas
e mesmo, segundo disse Baudelaire, a imagem
até ao seu século do real múltiplo
era una, única e própria. Dementes
chamou este cantor aos fotogramas
que roubavam à alma a unicidade
e deram aos olhos frívolos as figuras
plurais, idênticas, dispersivas.
Era somente uma a imagem mística,
dos entes naturais aos transcendentes.
Só uma esta vermelha afelandra
embora as suas irmãs se lhe assemelhem
e desassemelhem, cada uma, sempre.
O concreto pulsava neste ritmo
das coisas parcas, poucas, singulares.
E de repente, nos olhos do poeta
cada coisa reproduziu a imagem
inumeradamente, e a ideia
decaíra no banal prolixo.
Antes, podia hesitar-se entre o modelo
e as sombras de Platão, agora as flores
malignas podem reproduzir-se no mundo
nítidas, iguais, supérfluas.
Eu ainda vejo o olhar antigo de Baudelaire
e cada coisa vibra no seu mito,
e cada imagem cria o seu espírito,
e cada cópia fotográfica muda
na liminarmente máxima diferença.
Ao crítico e amante da Pintura
as dúbias imagens decerto deram
a cada rosto um só outro rosto,
a cada paisagem uma só tela.
Já os vidros, a água, a prata traziam
a incerteza nos traços, como se os olhos
que nos deu a Natureza nos fossem
infiéis. E o poeta pôde resistir
a esta perda das formas consagradas
e consubstanciais das coisas que ainda
ecoam a Criação como o eco cósmico.
[30/10/93]
(Cantos do Canto. Relógio d'Água 1995)
Canto do Génesis
Ao princípio era a luz, depois o céu
azul porque a luz se embebe
nas camadas de ar que olhamos.
Ao princípio era a Paixão e engendrou
do seu sangue os animais, da sua
Cruz as plantas. Era, ao princípio,
o animal-vegetal minúsculo, oculto
no Paraíso, mas omnipresente
desde o ante-princípio. E da argila
ou terra adâmica formou-se a Natureza
e o Homem, banhados pela luz
que recortou linhas e volumes vagos.
Ao princípio era o martírio
e a bênção daquele que trabalha
o seu corpo e o seu pão de sol a sol.
E os frutos fulguraram nessa luz
quando as águas se apartaram
e o mar, até hoje, quebra e requebra a onda
para eu ouvir o som do início.
[30/11/93]
(Cantos do Canto. Relógio d'Água 1995)
Memorando de umas sombras
Termina o dia. O melro, a mulher e as sombas repartem
entre si o que resta. Ela dança, a preparar a mesa,
como em redor de Vesta. O melro, a olhar o sol vago,
escolhe a folhagem para cumprir o destino.
Ociosas, as sombras perseguem gestos e as formas.
(Epístolas e Memorandos. Relógio d'Água 1996)
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