30 junho, 2013

O ESTADO DA ARTE CONTEMPORÂNEA

Acabo de regressar do Funchal, onde participei, na galeria Porta 33, numa série de reflexões sobre arte e estética contemporâneas, com artistas plásticos, críticos e professores de arte, filósofos, directores de museu, escritores... A Porta 33 é um foco extremamente vivo (o único verdadeiramente relevante na Madeira) de actividades, exposições, encontros em torno das artes visuais, e no âmbito destas conversas irá também editar um livro com mais de vinte ensaios sobre o tema.


O meu contributo para estes encontros, que reproduzo a seguir, centrou-se num conjunto de teses sobre a situação da arte, das artes, no actual contexto civilizacional, e intitulou-se

SEIS PROPOSTAS PARA O PRÓXIMO... QUARTO DE HORA 

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1. ... para o próximo quarto de hora: porque quando sairmos daqui a condição e os pressupostos da arte e da cultura contemporâneas já terão, aparentemente, mudado. À superfície, o que diariamente vem ter connosco é um torvelinho mutante, uma constante novidade, os produtos de uma imaginação delirante e sem limites – ou seja, estratégias (comerciais, de captação de público, autopromocionais, «espectaculares»), mas não necessariamente obras.

Mas a verdade é que nem existe uma condição da arte contemporânea, nem os seus pressupostos mudarão tão depressa – chegaram há décadas e, apesar da turbulência contemporânea, estão aí para ficar. Os envolvimentos (mediáticos, comerciais, políticos) tenderão a apagar cada vez mais as obras e a sua densidade multiestratificada. Exemplo: Rui Chafes é objecto de interesse jornalístico quando decide incluir as suas obras na delegação cubana da Bienal de Veneza, para se demarcar de Joana Vasconcelos (mas isto em nada contribui para iluminar a Obra de Rui Chafes, nem para o fazer chegar a um «público» menos alienado e verdadeiramente mais interessado). Talvez se trate apenas de um fait divers, mas o gesto de Rui Chafes, bem vistas as coisas, é um gesto político, e uma obra sua pode hoje ser, ela mesma, um facto político, um «manifesto mudo», como diria Rancière.

2. É preciso, neste contexto, distinguir entre o con-temporâneo e a actualidade. O contemporâneo rejeita a simples e simplista equiparação ao «actual», que é o real-sempre-em-acto, aquela versão da realidade que vive de, e exige para si própria, um aggiornamento permanente. Pelo contrário, a produção artística verdadeiramente contemporânea (i. e. nossa enquanto seres de memória, uma dimensão imprescindível na criação artística) é aquela que é capaz de subsumir em si estratos mais fundos, vários tempos num tempo (ou no espaço da obra), superando assim o mero circo do visível e do consumível, sempre em busca de visibilidade, mas pouco actuante a nível profundo, porque sempre em trânsito de superfície. Neste sentido, o con-temporâneo corresponderá a uma espécie de sincronia diacronizada, ou seja, sincronizada com tempos-outros. A actualidade que se busca a todo o preço, e que tende a amputar essa necessária capacidade de memória, não conhece «a parte da sombra» (Agamben), o «olhar de saber do ininteligível de um texto» (Llansol), que estão presentes no que é nosso con-temporâneo. Por isso, ser contemporâneo é raro e difícil, contrariamente à facilidade com que se pode ser actual. O livro Persistência da Obra, organizado há tempos por Tomás Maia (na Assírio & Alvim), tematiza a fundo esta questão. E Herberto Helder faz a sua síntese poética em alguns versos do último livro, Servidões:
olhos ávidos,
olhos ávidos quando tudo tem de ser novo para de novo ser soberbo,
e é esse o êrro de que ressuscito
e depois morro.

3. O ponto anterior abre para duas grandes contradições deste tempo, de que também a arte é vítima: a incapacidade da experiência do tempo, de tempos diversos num tempo aparentemente homogéneo – a Ungleichzeitigkeit des Gleichzeitigen (a diferença de tempos num mesmo tempo) de que falava o esquecido filósofo Ernst Bloch: o presente visto como uma reactualização de passados vários em novos contextos, e como «grávido de futuro», movendo-se e configurando-se assim entre os dois pólos da ideia blochiana de uma «utopia concreta», um em-devir ancorado no presente. Por outro lado, parece haver também uma certa incapacidade de suspensão da temporalidade, que a obra exige, num contexto civilizacional em que o tempo (material, cronológico, ele mesmo um «valor») é tudo e tudo depende do tempo. Na civilização do trabalho – com a sua angústia do desemprego – quase ninguém consegue «cair em si», concentrar-se, isolar-se, imaginar a espacialização do tempo (e a obra pede tudo isso); por outro lado, assistimos, na era da imagem e do ruído, ao desaparecimento da capacidade de ver e ouvir.

4. Este último aspecto parece-me central, e por isso me detenho nele. Há trinta anos, quando já eram visíveis todos os sinais do processo político e cultural que explica o ponto a que as coisas chegaram hoje (na crise que assola a Europa e na situação da arte), uma revista alemã então muito importante – a Literaturmagazin – publicava um número dedicado a este tema: Das Vergehen von Hören und Sehen, que se poderia traduzir, tanto por: o desaparecimento da capacidade de ver e ouvir, como por: o crime, a transgressão de ver e ouvir! Ou seja: querer ver e ouvir para além, ou aquém, do ruído e da poluição visual dominantes, no limite do invisível e do silêncio, tornaram-se impossíveis, ou são vistos como algo de inaudito, quase um crime (como no célebre poema de Brecht no exílio: «Que tempos são estes / Em que um poema sobre árvores / É quase um crime...»). Estigmatiza-se a capacidade de ver e ouvir porque se impôs o paradigma do paroxismo das imagens e do ruído, uma forma de poluição que elimina progressivamente uma faculdade e uma forma de saber que é a de reagir, com tempo, a estímulos da percepção (Georg Simmel já se apercebeu disso há cem anos, no ensaio «As grandes cidades e a vida do espírito»). Agora, num momento em que o acesso à produção artística e cultural poderia ser quase ilimitado e livre (mas não é, porque é objecto de manipulação determinada), o caminho da retirada e do silêncio (de que fala Pascal Quignard em La barque silencieuse, 2009) não está à vista da maioria das pessoas, que não conseguem ver «esse mais que se dá a ver» nas obras, mas que «não tem imagem», é «o rosto por detrás da face». Este, o grande paradoxo: estamos, na civilização das imagens que nasceu há um século e se foi amplamente oferecendo a massas que não sabem ver, nos antípodas de uma cultura da imagem: na indústria da cultura dessa civilização que, paradoxalmente, trouxe consigo o progressivo desaparecimento da capacidade de ver e ouvir, a imagem é pura superfície, o ver não gera a reflexão.

5. O ver que gera a reflexão proporciona a verdadeira experiência, produtiva e formativa, da obra (que é muito diferente da sua vivência superficial, festiva e mais ou menos exuberante). Dou, a título paradigmático, três exemplos de experiências seminais, transformadoras (mas o que está a acontecer no campo da produção artística oferecerá muitas mais):
a) Uma experiência puramente estética, um «manifesto mudo» (Rancière) da força libertadora, emancipatória no sentido mais profundo do termo, da criação artística: o ciclo de cinco curtas de Abbas Kiarostami, Five, uma homenagem ao despojamento, à fruição do tempo e à beleza dos planos no cinema de Yazujirô Ozu. Ou: Uma experiência alternativa, e ainda mais funda, inquietante e transformadora é a de quem sai da última exposição de Rui Chafes, Tranquila ferida do sim, faca do não. Nesta exposição de cinco peças que, pela luz (ou pela sua ausência) transformam um espaço comum no mais enigmático e inominável lugar dos corpos confrontados com a sua origem, o escultor acentua algo que age ostensivamente a contrapêlo do espírito do grande circo da arte que nos submerge dia a dia: a total «ausência de encenação» das cinco peças expostas em quase absoluta obscuridade, todas iguais e todas autónomas. De facto, essas cinco peças esguias e as suas frestas de luz nada encenam, são pura presença, a princípio indiscernível, de onde, se o espectador tiver o saber do tempo necessário para assistir a um nascimento, emerge progressivamente a luz.
b) um momento, não puramente estético, mas artístico-performativo, e mais local (mas o local e o global confundem-se hoje, com a diferença de que na economia o local é anulado, enquanto na arte ele continua a afirmar-se na diferença): a exposição colectiva de uma galeria (ainda) alternativa, uma das muitas pequenas luzes da resistência aos holofotes da indústria da cultura, a Galeria Zé dos Bois, em Lisboa. A exposição intitulava-se «Tem calma, o teu país está a desaparecer», e era a manifestação, agora algo estridente e irónica, do político através da produção da diferença pela arte, num contexto sistémico que impõe o sempre-igual e uma inequívoca vontade de formatar a invenção.
c) O terceiro exemplo é o do fenómeno disperso, rizomático, mas insistente da cultura a mostrar-se e a afirmar-se pela presença dos corpos de quem a faz, numa manifestação pública (como a que, em Setembro de 2012, levou muitos agentes culturais à Praça de Espanha, em Lisboa). É o sinal, ainda mais abertamente político, de uma «multidão» no seio do «Império», como diria Toni Negri, uma vaga sem centro que, não correspondendo à clássica noção das «massas», é o seu equivalente «acéfalo», mas extremamente móvel, que resolve «encenar e ensaiar a revolta». E, ao fazê-lo, dá a ver uma forma de activismo político contemporâneo como «arte em tempo real», uma espécie de oficina artística de uma nova narrativa política que está a gerar novos modos de intervenção colectiva. A manifestação tem hoje, até pela apropriação imediata e generalizada, pelas televisões, de todo o processo que a envolve, enormes potencialidades de se ver transformada em «obra de arte total» performativa e militante. A arte está na rua, manifesto silencioso ou ruidoso, arte performativa feita de corpos e vontades – e, neste caso, muita encenação!

6. Nesta diversidade, a arte não tem de estar hoje necessariamente submetida à política, à cultura e ao negócio. No próprio reino das indústrias da cultura e dos poderes, financeiros ou outros, existindo (mas não convivendo) com ele, instalou-se uma fértil e muito viva an-arquia criativa que veio substituir, em vários campos de intervenção, o antigo poder da palavra, discursivo-argumentativo (que se revelou ser bastante ilusório, em grande parte porque jogava no terreno do poder e com as mesmas armas). Não estamos, como pergunta uma série de conferências de Bernard Stiegler disponíveis na Internet, numa «sociedade sem arte e sem cultura». Estamos longe de mais uma proclamação da «morte da arte». Nem é isso o que os políticos-políticos propõem (e não digo os políticos da cultura, porque já os não há): eles toleram a arte na sociedade e para a sociedade (o sistema há muito que tem um grande estômago, como sabemos); o que eles toleram menos, e não entendem, são aquelas formas de arte que voltam costas à sociedade dos meros consumidores, ou a afrontam pelo simples facto de estarem aí. Os mais eficazes (e hoje já nada subtis) modos de contrariar estas formas de arte «desinibidas da doxa» (Quignard) são os do seu silenciamento nos media (para além dos cortes de financiamento): nos media só passa a) o que não dá que pensar; b) o que confirma o que todos já conhecem (e conhecem pela repetição, à exaustão, nesses mesmos meios de comunicação). É a «arte para todos», numa situação de pretensa «democratização da arte», o slogan mais cínico e enganador dos nossos tempos, filho do puro populismo demagógico, hoje presente numa política da cultura inexistente e numa indústria cultural que é só indústria sem cultura. São as novas formas de totalitarismo pós-moderno e «pós-burguês», que, como já escreveu Hannah Arendt (em As Origens do Totalitarismo), são filhas das «convicções políticas [e mais ainda estéticas] da burguesia, que sempre foram totalitárias».

19 junho, 2013

DE RILKE A MUSIL
ou
O FIM DAS METONÍMIAS

Reencontro uma pequena folha com uma anotação, já com anos (aqueles em que comecei a fazer a grande edição de Musil que foi suspensa pela editora), em que me propunha estabeleer uma relação entre um poema de Rilke e uma pequena narrativa de Musil, do quarto volume das Obras, que devia ter saído há sete anos e – juntamente com o quinto, também já entregue nessa altura – continua à espera de... não sair. O estado de coisas no mundo dos livros é este, parece não haver lugar neste país, nem para projectos mais ambiciosos, nem para obras de alguma exigência.
Os grandes textos da literatura nunca foram plenamente inteligíveis, transparentes, ou limitadamente presos ao seu tempo. O modo de expressão mais frequente dessas obras maiores (ainda que por vezes de modesta dimensão, como é o caso) é alegórico, indirecto, alusivo, polissémico e aberto. É esse modus alegórico que lhes permite viver para além do seu tempo e activar a experiência e a imaginação dos leitores.

Por outro lado, há momentos-charneira da nossa história do último século, na viragem do XIX para o XX, ou, mais ainda, no período entre as duas Guerras Mundiais, que parecem ser particularmente propícios ao aparecimento de tais textos. Tomo como exemplo, não O Homem sem Qualidades, o que seria por demais óbvio, mas uma pequena história de Robert Musil, uma alegoria a um tempo rememorativa e antecipatória, intitulada «O papel mata-moscas», que abre a colectânea de narrativas Espólio em Vida, organizada pelo autor em 1935. História aparentemente anódina, ela resiste ao tempo como os grandes clássicos, e Musil parece já sabê-lo quando escreve na «Nota» de abertura: «quando me foi proposta a edição deste livro, e quando tinha à minha frente todos os fragmentos que deveriam fazer parte dele, pareceu-me reparar que, afinal, resistem muito melhor ao passar do tempo do que eu temera».
A história descreve, com a exactidão, o pormenor e a visão ampla de Musil, a aterragem e a lenta agonia de uma mosca no papel viscoso, marca canadiana, destinado a servir de armadilha e cemitério, tal como muitos outros espaços da Europa e do mundo o haviam sido entre 1914 e 1918, e voltariam a sê-lo pouco depois, entre 1939 e 1945.
Para Musil, céptico e moderno, o mundo, tal como o conheceu, reduz-se à crueza daquela faixa de papel viscoso, de onde não há saída. As imagens da narrativa remetem claramente para um cenário de campos de batalha, e não há nelas nenhum aceno a uma qualquer intenção salvífica, a uma pars pro toto ou deus ex machina que salve moscas e homens dos desastres do século XX, que foi o seu – simplesmente porque, então como hoje, não há «Todo» a que recorrer. Nesta história não há metonímias nem metáforas – apenas, como na gravura de Dürer, uma Melancolia que penetra os tempos com o seu olhar fixo e sombrio.
Três décadas antes – tal como neste tempo que nos coube a nós viver, em que os últimos trinta anos geraram todas as ilusões e levaram à hecatombe actual –, um outro grande autor, também ele austro-húngaro, de seu nome Rainer Maria Rilke, órfico e crente, escrevia mais um poema sobre o Outono, que um crítico e biógrafo de Musil (Herbert Kraft) põe em confronto com «O papel mata- moscas» e a sua terrível clarividência, repassada da grande História e de todas as suas técnicas mortíferas, hoje espalhadas um pouco por todo o mundo, onde muitos vão também «morrendo como moscas» diante dos olhos dos que ainda vêem as TVs.
Em Rilke, contrariamente a Musil, só há metafísica, e o mundo está em ordem. No poema «Outono» (um de vários com este título, este com data de 1902), o lugar central é atribuído a uma mão salvadora que assume a função metonímica de uma parte que é um Todo e salva todos os que «parecem» cair, desmoronar-se, perder o pé. Mas em Rilke não se perde o pé. De 1902 a 1935 vai a distância que separa o mundo da segurança burguesa (tal como o descreve Stefan Zweig na sua autobiografia O Mundo de Ontem, Assírio & Alvim, 2005) e a lucidez desencantada de quem está entre duas guerras e viveu directamente uma delas. Hoje, estamos no meio de muitas, presos neste lodo viscoso em que nos vamos afundando por obra e (des)graça de políticos medíocres e especuladores que eles não travam, ou com os quais se confundem.
Deixo aqui alguns fragmentos da pequena narrativa de Musil (que, pelos vistos, não chegará tão depressa aos leitores portugueses) e o poema de Rilke. O choque entre ambos não precisa de mais comentários.

R. M. Rilke

(clique na imagem para aumentar)

De: R. Musil, «O papel mata-moscas»

O papel mata-moscas "Tangle-foot" tem aproximadamente trinta e seis centímetros de comprimento e vinte e um centímetros de largura; é revestido de uma cola amarela e envenenada e vem do Canadá. Cada vez que uma mosca pousa nele – não por grande curiosidade, mais por convenção, por já lá haver muitas outras – primeiro fica só presa pelos membros mais exteriores e mais dobrados de todas as suas perninhas. Uma sensação muito silenciosa, estranha, como se caminhássemos de pés descalços no escuro e pisássemos algo que ainda mais não é do que uma resistência macia, quente, difusa e logo a seguir algo que a pouco a pouco é inundado pelo horror humano, o ser reconhecido como uma mão que está ali não se sabe bem como e nos segura com cinco dedos cada vez mais nítidos.  
[...]
Assim que superam o cansaço espiritual e quando retomam a luta pela sua sobrevivência, depois de um pequeno intervalo, já estão presas a uma situação bastante desfavorável, e os seus movimentos tornam-se pouco naturais.
[...]
Mas o inimigo continua apenas a ser passivo e só ganha com os seus momentos de desespero e desorientação. Há um Nada, um Algo que as puxa para dentro. Tão devagar que mal se consegue acompanhar, e muitas vezes com uma aceleração repentina no final, quando o último colapso interior se abate sobre elas. Deixam-se então cair de súbito para a frente, de caras, sem força nas pernas – ou então de lado, com todas as pernas esticadas e afastadas. Ou ainda, e muitas vezes, de lado e a espernear para trás. É assim que elas ficam ali deitadas. Como aeroplanos despenhados, com as asas a apontar para o ar. Ou como cavalos mortos. Ou com gestos infinitos de desespero. Ou como uma pessoa adormecida. Às vezes ainda acontece haver uma que acorda no dia seguinte e que começa a tactear um pouco com a perna ou a zunir com a asa. Às vezes este movimento percorre todo o campo, e depois afundam-se ainda mais um pouco na sua morte. E é só no flanco do seu corpo, na região junto à perna, que elas possuem um pequeno órgão que vibra e que continua vivo durante bastante tempo. Fecha-se e abre-se e não se consegue descrever sem recurso ao microscópio. Parece um minúsculo olho humano que abre e fecha sem cessar.  


16 junho, 2013

OS DIÁRIOS PORTUGUESES
DE CURT MEYER-CLASON



O programa «Agora», da RTP2, transmite hoje à noite (22 horas) uma peça sobre um livro recente (edição Documenta) que traduzi e posfaciei, os Diários Portugueses de Curt Meyer-Clason, que foi director do Instituto Alemão de Lisboa nos anos difíceis de 1969 a 1976. Mais do que registo de memórias meramente pessoais desses tempos, trata-se antes de uma crónica muito singular, de grande valor literário, de uma época decisiva da história portuguesa recente, da «primavera marcelista» aos cravos e cardos da Revolução.
Escrevi por três vezes sobre estes singulares Diários: a primeira em 1980, no Diário de Notícias, chamando a atenção para a primeira edição alemã acabada de sair; a segunda em 1994, posfaciando a segunda edição, a pedido do Autor; e a terceira agora, uma vez concluída a tradução do livro. Deixo aqui este último texto, chamando a atenção para uma obra que merece ser lida hoje, e que diz mais sobre nós do que muitos compêndios de história contemporânea.



Há fenómenos naturais e há fenómenos culturais, figuras capazes de atrair e pôr em acção (neste caso, acção no campo indistinto e múltiplo da política e da cultura, da política cultural e da cultura política) pessoas, instituições, todo um tempo e uma sociedade. Curt Meyer-Clason, que conheci quando ele e eu chegámos a Lisboa em 1969, vindos ambos da Alemanha, revelou-se-me desde logo um desses fenómenos, multifacetado, forte, complexo, controverso. De facto, Meyer-Clason chega não se sabe bem de onde, já que parte da sua vida até aí fora passada na América do Sul, mas os próprios Diários nos informam brevemente sobre esses antecedentes. E mal chega instala-se em Lisboa, na Lisboa cultural, mundana e da oposição, como um furacão que começa a agitar a nossa modorra ainda salazarenta. E quando sai escreve estes Diários Portugueses, que são a sua maneira de nos ler a palma da mão a posteriori, profetizando-nos um futuro que não haveria de ser nosso.
Meyer-Clason era uma figura que se impunha à primeira vista e ao primeiro contacto, homem de entusiasmos e de palavra fácil e convincente, self-made leader e self-leading man, com as qualidades e os defeitos, os riscos e as surpresas nisso implícitos. Os Diários espelham essa personalidade segura, soberana, requintada e pragmática, deixando transparecer uma mistura de exactidão (alemã), ironia (pícara), cultura livresca (mas vivida) e pose de homem do mundo. O que fez na Lisboa entre a primavera marcelista e o período pós-PREC poucos o fizeram: chega a Lisboa e em pouco tempo muda a paisagem cultural de uma cidade meio adormecida e espartilhada pela censura de uma ditadura disfarçada, isolada e já descrente de si mesma. E fá-lo entrando pela porta da esquerda, de uma esquerda certamente não coesa, marcada por tonalidades que os Diários espelham, e que vão da mais ortodoxa à mais festiva. Mas também abrindo portas que o regime normalmente fechava, trazendo ao seu Instituto figuras, alemãs e não só, que só aí poderiam ser vistas e ouvidas, fazendo germinar sementes que o terreno estéril da ditadura não conhecia. Aí, no «Goethe» desses anos, como escrevi algures, «podiam pensar-se coisas que cá fora eram impensáveis».
Estes meses em que andei a traduzir os Diários Portugueses de Meyer-Clason abriram-me os olhos – voltaram a abri-los, regressando aos anos setenta de que eles se ocupam – para certas realidades deste país (naturais, urbanas, sociais e políticas), que ele via com olhos estrangeiros, cheios de um espanto virgem de que nós (já) não somos capazes. Com alguma ingenuidade, e também com a benevolência de quem ama sem deixar de ver os defeitos do outro. A realidade que Meyer-Clason descreve, ora com entusiasmo transbordante, ora com ironia crítica (e que eu, com um olhar mais céptico e mais tardio, tento fazer descer à terra no posfácio que ele me pediu em 1994 para a segunda edição alemã), foi destruída por aquilo que ele próprio refere como «a ganância sem peias do negócio». Mas constato que o que ele em nós via há quase quarenta anos – na natureza (a sua Caparica), na Lisboa de '70 ou também na substância anímica dos Portugueses, neutralizada também, seja lá ela o que for, por modelos culturais globalizados – ainda aí está. Acontece, porém, que os nossos olhos, viciados e poluídos, a nossa intuição embotada, a proximidade que não deixa ver, já se não apercebem da nossa própria realidade como ele foi capaz de a captar e retratar.
Foi precisamente isso que a releitura dos Diários em close-up, no close reading da tradução, me veio dizer hoje: que precisamos de voltar a saber ver e ouvir, ver o mundo e as coisas nele, e ouvir os outros, para sobrevivermos. Porque é de uma questão de sobrevivência que se trata. De sobrevivência com um e num mundo que é este e não pode ser outro (mas pode e tem de ser este de outro modo), e de coexistência com outros, perdidos, mas recuperáveis. Subjacente ao esforço cultural e humano descrito nestes Diários há a convicção de que é preciso buscar essa coexistência, para podermos viver e conviver melhor, eu contigo, tu comigo, o computador com a terra e o i-Pad com o livro – o desejo e a libido com a técnica, como sugere Bernard Stiegler.
Curt Meyer-Clason voltou a lembrar-me isto. Também ele unia extremos, atava pontas, conciliava opostos (isto foi lembrado por José Gomes Ferreira no jantar de despedida que lhe fizemos no Tavares, então já não «rico», em Maio de 1976). Era um homem altamente pragmático e – como alemão que era – quase calculista, mas extremamente sensível, emocionalmente excessivo, humano, demasiado humano, e por isso com as suas fraquezas (de que estava consciente) e incertezas, mas muito mais potencialidades criativas, solidárias, e um poder de observação fora do comum, que estes Diários mostram á evidência. O seu tom é por vezes hiperbólico, a carga de adjectivos e o excesso das imagens sufoca, e a acutilância do olhar revela-se devastadora para o duplo universo em que o director do Instituto Alemão tinha de se mover, antes e depois do 25 de Abril: o alemão da diplomacia (que detestava) e um certo pequeno mundo português acomodado, hipócrita, marialva e snobe de fins de sessenta e inícios de setenta. A boa sociedade portuguesa é implacavelmente posta a nu, e não aguenta a caricatura; ainda hoje, ao lê-lo, se sentirá ressentida. A não-sociedade, os grupos de teatro independentes (mas dependentes de uma censura mesquinha), os intelectuais marginalizados, os escritores presos ou amordaçados, merecem desde logo o seu acolhimento generoso, e algo ingénuo, aqui e ali mesmo blasé. Mas o olhar de fora apanha-nos todos os fracos e tiques, e toca, para o melhor e para o pior, no mais fundo do «modo de ser português», que, por outro lado, o estrangeiro admira.            
É desta matéria – e da do próprio dia a dia do seu Instituto, lugar de acção e pedra de toque para toda a sua intervenção cultural – que se fazem os Diários de Curt Mayer-Clason. O homem e o livro formam uma unidade e apresentam-se-me hoje, na releitura, na reescrita da tradução e na rememoração de muitos episódios que também vivi, como um todo heterodoxo e assistemático, colorido e vibrante, sem deixar de ter uma linha de pensamento clara. Estes Diários lêem-se como uma narrativa empolgante, cheia de suspense, ironia e humor. Os episódios podiam vir de um roman à clé, de uma história policial, de uma narrativa psicológica ou de um perspicaz relato de costumes de um país, sob a lupa implacável, rigorosa e generosa, de um observador vindo de fora, que não conhece os hábitos, os problemas, as manhas do lugar e os vai aprendendo rapidamente dia a dia. O resultado é um retrato único de Portugal e dos Portugueses antes e depois de Abril – fascinante, reverberante, apaixonado e crítico, e as mais das vezes intuitivamente certeiro. E é também um retrato bastante fiel do Curt Meyer-Clason que conheci nos anos de que se ocupam os seus Diários Portugueses.

12 junho, 2013

AS PEDRAS VIVAS DE TIBÃES



Quem chega ao Mosteiro de Tibães e entra pelo portão por onde em tempos devem ter passado carros de bois e caminhantes, apercebe-se imediatamente da presença viva das pedras que pisa. Das pedras mais humildes, as que estão em baixo e foram sendo pisadas por gente, por animais, pelos carros de bois que traziam mantimentos, o dízimo dos camponeses e toda a espécie de mercadorias. O corpo dessas lages traz as cicatrizes do tempo: superfícies alisadas por muitos pés, marcas dos rodados, covas onde hoje se junta a água das chuvas.



Mas as pedras de Tibães – as do chão, repito, e não as das torres, as da terra, e não as do céu – não são memória morta do passado, blocos inertes, espelho estático do tempo. As pedras de Tibães, em especial as do primeiro pátio (o «Jardim de S. João») são vivos que nos falam. Vivem de formas e de cores, estão nuas e vestidas de musgo, brilham com revérberos de prata, arqueiam-se ou retraem-se, bebem água, absorvem sol. Falam. Oferecem-se ao olhar que as quer e sabe ver, falam umas com as outras, iguais e diferentes como uma comunidade feliz, cantam laudas e matinas, adormecem depois do ofício de vésperas.




 As pedras de Tibães são um testemunho vivo da resistência ao tempo, às vicissitudes da História e aos poderes (des)humanos que anulam qualquer dimensão mais humana do tempo. Falam de uma escala da temporalidade que o actual sentido utilitarista do tempo não pode conhecer.


 As pedras de Tibães são um catálogo de afecções humanas, uma espécie de sinfonia da alma, do corpo e da mente para quem ali entra com os sentidos despertos.

Há pedras buriladas para servir de almofada ou de berço, ou talhadas para que outras e elas se encostem, ou entre as duas nasçam flores.


Há pedras que perdem a dureza, no brilho polido do tempo ou na macieza do musgo.


Há pedras pensadoras e pedras sonhadoras, mas o canteiro não conheceu a diferença – talhou-as ortogonais ou ovais, oitavadas ou redondas. Só o tempo lhes deu a face própria.


Há as pedras loquazes e as pedras mudas. As que falam dos pés que as acariciaram, dos que as espezinharam, e das rodas que lhes marcaram o corpo. E as que se exilaram para as margens silenciosas e discretas de pátios e claustros são talvez as mais belas, no seu discreto aceno a olhares mais atentos.



Também das pedras de Tibães alguém atento à vibração do vivo que se esconde até nos chamados inertes – Maria Gabriela Llansol – poderia ter dito: «Estas pedras (...) sabem que o real tem um reverso e uma face. Mas eu não sei como elas sabem que o reverso não é integralmente inacessível» (Finita).

(Fotografias de Vina Santos)

09 junho, 2013

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DOIS REGRESSOS:
HERBERTO ESCRITO A LÁPIS

Um bom pretexto para o meu regresso a estas páginas de escrita a lápis, num tempo de incontáveis servidões e pouca liberdade, e ainda menos de verdadeiros lugares de escrita: o regresso de Herberto Helder com Servidões (Assírio & Alvim), livro escrito a esferográfica que prolongarei a lápis, sem pretensões de fazer crítica, muito menos de elaborar ensaio, fixando apenas alguns ímpetos derivados da leitura. Como talvez seja sempre melhor para a poesia, para esta em particular.


O «prefácio», que é todo o livro  («Todo o livro vai sendo o seu prefácio...», 15) é uma arte poética (sem surpresas, talvez apenas com o eu mais à vista), como outras que conhecemos de livros anteriores, que os abrem nesta forma da prosa (O Bebedor Nocturno), ou já de poema (A Colher na Boca), ou por eles se vão disseminando. Uma arte poética que recupera textos anteriores dispersos por livros e revistas, e em que alguns trilhos dessa poética, que é ao mesmo tempo uma arte de vida, são postos claramente à vista, e abrem para quatro veredas: a infância, paradigma absoluto da origem («Vivemos demoniacamente toda a nossa inocência»); a força do orgânico, também, e para o poeta sobretudo, na linguagem í«A vitalidade nominal é intrínseca, metabólica»); as «magias» e a sua ordem («... um mundo de imagens orgânicas. Era a ordem ininterrupta das magias»); e o «início perene do poema» («Porque o prestígio da poesia é menos ela não acabar nunca do que propriamente começar»).
Depois, damos com um balanço de vida, de um destino que a si mesmo se foi fazendo («creio haver quem nasça de si próprio»), mas que a epígrafe logo parece vir desmentir («dos trabalhos do mundo corrompida / que servidões carrega a minha vida»), criando uma tensão que os poemas explorarão em múltiplas variações.


Os poemas trazem-nos os grandes temas de Herberto: as mães e o sangue, o sexo e a morte, a «vida airada» e a escrita «em verbo arcaico». Agora, mais do que antes, o poema diz eu, vê-se entre o nome e o eu; e regressa a vontade de ver e dar a ver aquilo que é único, a «agaué» «que floresce uma só vez na vida» (43), os grandes ciclos cósmicos, as coisas «em estado de milagre» e «o terror da beleza».
[E aqui são mais ainda os circunflexos transgressores que já lhe conhecemos – «cômo-te», «êrro absoluto», «sêlo frio», «comêço» –,  chapéus à sombra dos quais se acolhem vogais que assim ficam mais maduras e cheias, como corpos de mulheres inconfundíveis, desejáveis, insusceptíveis de serem desvirtuados pela semelhança que anula singularidades.]
E também o poema continua a ser assim: animal resfolegante de contornos precisos, agora mais «económico, íntimo, anónimo» – a brevidade impõe-se, como em Hölderlin, porque, escreve este, «Fria está a terra / E, importuna, a ave da noite / Volteja diante dos teus olhos». Repetidamente, o olhar cai no espelho, para (não) saber quem é. Autodevorando-se e renascendo, não das próprias cinzas, mas do próprio sangue, não para aí se esgotar, porque vem de longe e de muito fundo, a sua força e razão de ser em si mesmo ainda e sempre, «vazio poema de sentido e de endereço» (50), «só porque sim» e «não agora», mas quando soar a sua hora – como coisa que nasce, mas construída (E isto é possível? Aqui se vê que é).
O poema vai-se definindo, mais por intuições do que por definições, e tende para o poema mais curto, «tão directo que não fosse entendido». Para trás ficou a «língua voraz», busca-se agora a «voz paupérrima», corpo visível e audível da nostalgia da língua certa, certeira, única, singular, sem demónios da analogia nem metáforas, insusceptível de tradução, de imitação, de repetição – a língua do poema absoluto de Celan? Aquela que não dissesse a coisa, mas a mostrasse, confundindo-se com ela? («Quero criar uma língua tão restrita que só eu saiba, / e falar nela de tudo o que não faz sentido», 57). 


Este é um livro da espera – da espera da morte perfeita, no acto de escrever esse poema absoluto. E a certa altura (nas pp. 60-61), tenho a intuição de que esse poema nasce, está aí, desafiando a própria morte, liberto de se pensar a si próprio, sem meta (no duplo sentido da palavra-prefixo). E no entanto, o ser-do-poema é uma obsessão neste livro. Ei-lo que regressa logo na página seguinte, abrindo-se numa quase-definição lapidar como «organismo superlativo absoluto vivo»! Um concentrado que dá toda a poética de Herberto Helder desde os primórdios – o poema-animal, a construção orgãnica, o excesso bidireccional (o do em baixo e do em cima, o do dentro e do fora, o da música e do silêncio absoluto): «sem proporção alguma: e nenhuma / consolação da forma» (63). O informe não conhece equilíbrio, nem repousa em nenhuma espécie de forma. A densidade do pensamento poético, que é uma poética pensante nos veios, nas veias do poema, sufoca e esmaga. É preciso parar, respirar, regressar, sem sair do cerco armado pela sequência intensa que vem de um livro de sete selos (ou talvez, afinal, menos, comparado com outros: A Faca Não Corta o Fogo, Do Mundo, Última Ciência), com o seu fogo interior que a faca ainda não corta, os motivos de sempre, identificáveis, variando-se...

O saber do poema parece ter chegado a um lugar último: sabendo pouco, sabe-se fora do bolo da poesia dividido em quatro quartos, fatias mais ou menos da massa da imitação e dos fermentos da auto-ilusão. Este quer-se dentro da pedra que nasceu da montanha: o poema é o que se não mostra/expõe, é o que se recolhe ao interior de si mesmo, sem exterior («o imo do próprio nome assim metido na pedra», 72). Foge ao já visto, sabe o que não é, corre para a morte, numa corrida contra essa mais frequente «morte no gerúndio», para não «tornar académica a sua dor», afirmando a «ígnea pedra» contra a cegueira dos «burrocratas indizíveis» (85).
O lema agora poderia ser, não já o clássico ars longa, vita brevis, mas uma variante  neo-herbertiana dele: ars brevis ad mortem – a «técnica atenção da morte» que alimenta o poema curto. Ainda e sempre por trilhos de encantamento, mas não tanto do mundo e dos corpos, antes subterrâneo, invisível e sereno, já no limite do des-encanto de quem sabe que o resto do caminho é curto, breve, e joga o «exercício da faca – exímio, exímio», que «despedaça os selos» e, no poema, «apura têmpera e talento» (66).
Estamos também, já o disse, diante do resumo de uma vida, a da escrita e a outra («a minha vida como nota»), e agora «um pequeno poema basta para meter tudo lá dentro», quando antes navegávamos com mais frequência por rios torrenciais. Estamos no lugar da visão que o enforcado tem no último segundo, o da grande síntese de toda uma existência que não cabe – paradoxo dos paradoxos! – no fluxo contínuo do tempo da vida. E há nisto uma sabedoria imensa da vanidade do tempo, mas também uma luminosa lucidez (assim mesmo, pleonasticamente) assustadora que nos vem dizer que «dobrados os oitenta» «o mundo é pequeníssimo» (90-91). E o que dele ficou é este inverno do nosso descontentamento, «esta montanha de merda» que nos foi legada por uma «geração inteira, / inclitamente vergonhosa». E então um testamento de desencanto e lucidez desemboca subitamente no poema político, agora de novo mais longo, vasculhando e exorcisando os avatares e os mais fundos arcanos deste tempo que não sabe o que isso é, e em que muitos pensam que é melhor ter este inferno do que ter coisa nenhuma (aqueles a quem o nada apavora, como os apavora a solidão cuja força desconhecem). São os «castrati que cantam a capella» e «organizam a morte», as nossas morte a prazo, – mas no poema ela é outra, faz parte da sua arte da respiração.

(Fotos de glaciares: Anabela Mendes)
Por isso o poeta vai preparando nos últimos poemas o seu próprio epitáfio – bem diferente daquele outro, célebre, de Brecht, que «não precisava de pedra tumular», mas aceitaria uma que dissesse: «Este fez propostas. Nós / Aceitámo-las. / Uma inscrição dessas / Honrar-nos-ia a todos». Aqui, o registo é outro: não há propostas, há o deliberado e irónico falsete de uma erudição trágica que coloca vida e morte em nota de pé-de-página, antes de ser recebido, já cinza, como «ambrosia sutilíssima nas profundezas dos esgotos», «enfim liberto do peso e agrura do seu nome». Para, por fim, poder «arvoar», com uma única lamentação, num poema quase último que é um trenos ao seu próprio corpo, uma vez esquecido e apagado o nome. O poema da grande perda e da grande lacuna, a única, afinal, a de «não ter escrito o poema soberbo sobre o fim da inocência, / da aguda urgência do mal» (108).
E estamos de novo no «prefácio», e o eu que aqui fala num misto de ira, júbilo e resignação regressa, limpo de escórias e disposto ao diálogo com a grande ceifeira, inominável e desde o início nomeada, a «morte incalculável» que o poema, incrédulo e insistente, ainda e sempre supera, chegado que foi à consciência «do incrível natural de ser olhado assim por ela» (109).