O ESTADO DA ARTE CONTEMPORÂNEA
Acabo de regressar do Funchal, onde participei, na galeria Porta 33, numa série de reflexões sobre arte e estética contemporâneas, com artistas plásticos, críticos e professores de arte, filósofos, directores de museu, escritores... A Porta 33 é um foco extremamente vivo (o único verdadeiramente relevante na Madeira) de actividades, exposições, encontros em torno das artes visuais, e no âmbito destas conversas irá também editar um livro com mais de vinte ensaios sobre o tema.
O meu contributo para estes encontros, que reproduzo a seguir, centrou-se num conjunto de teses sobre a situação da arte, das artes, no actual contexto civilizacional, e intitulou-se
SEIS PROPOSTAS PARA O PRÓXIMO... QUARTO DE HORA
1. ... para
o próximo quarto de hora: porque quando sairmos daqui a condição e os
pressupostos da arte e da cultura contemporâneas já terão, aparentemente, mudado. À superfície, o que diariamente vem ter
connosco é um torvelinho mutante, uma
constante novidade, os produtos de uma imaginação delirante e sem limites – ou seja, estratégias (comerciais, de captação de público, autopromocionais,
«espectaculares»), mas não necessariamente obras.
Mas a
verdade é que nem existe uma condição da arte contemporânea, nem os seus pressupostos
mudarão tão depressa – chegaram há décadas e, apesar da turbulência contemporânea,
estão aí para ficar. Os envolvimentos
(mediáticos, comerciais, políticos) tenderão a apagar cada vez mais as obras e a sua densidade
multiestratificada. Exemplo: Rui Chafes é objecto de interesse jornalístico
quando decide incluir as suas obras na delegação cubana da Bienal de Veneza,
para se demarcar de Joana Vasconcelos (mas isto em nada contribui para iluminar
a Obra de Rui Chafes, nem para o fazer chegar a um «público» menos alienado e verdadeiramente mais interessado). Talvez se trate apenas de um fait divers, mas o gesto de Rui Chafes, bem vistas as coisas, é um gesto político, e uma obra sua pode hoje ser, ela mesma, um facto político, um «manifesto mudo», como diria Rancière.
2. É
preciso, neste contexto, distinguir entre o con-temporâneo
e a actualidade. O contemporâneo
rejeita a simples e simplista equiparação ao «actual», que é o real-sempre-em-acto,
aquela versão da realidade que vive de, e exige para si própria, um aggiornamento permanente. Pelo
contrário, a produção artística verdadeiramente contemporânea (i. e. nossa
enquanto seres de memória, uma
dimensão imprescindível na criação artística) é aquela que é capaz de subsumir
em si estratos mais fundos, vários tempos num tempo (ou no espaço da obra),
superando assim o mero circo do visível e do consumível, sempre em busca de
visibilidade, mas pouco actuante a nível profundo, porque sempre em trânsito de
superfície. Neste sentido, o con-temporâneo corresponderá a uma espécie de sincronia diacronizada, ou seja, sincronizada com tempos-outros. A actualidade que se busca a todo o preço, e que tende a amputar essa necessária capacidade de memória, não conhece «a parte da sombra» (Agamben), o «olhar de saber do ininteligível de um
texto» (Llansol), que estão presentes no que é nosso con-temporâneo. Por isso,
ser contemporâneo é raro e difícil, contrariamente à facilidade com que se pode
ser actual. O livro Persistência da Obra,
organizado há tempos por Tomás Maia (na Assírio & Alvim), tematiza a fundo
esta questão. E Herberto Helder faz a sua síntese poética em alguns versos do último livro, Servidões:
olhos ávidos,
olhos ávidos quando tudo tem de ser novo para de novo ser soberbo,
e é esse o êrro de que ressuscito
e depois morro.
3. O ponto
anterior abre para duas grandes contradições deste tempo, de que também a arte
é vítima: a incapacidade da experiência
do tempo, de tempos diversos num tempo aparentemente homogéneo – a Ungleichzeitigkeit des Gleichzeitigen (a
diferença de tempos num mesmo tempo) de que falava o esquecido filósofo Ernst Bloch: o presente visto como uma reactualização de passados vários em novos contextos, e como «grávido de futuro», movendo-se e configurando-se assim entre os dois pólos da ideia blochiana de uma «utopia concreta», um em-devir ancorado no presente. Por outro lado, parece haver também
uma certa incapacidade de suspensão da temporalidade, que a obra exige, num contexto
civilizacional em que o tempo (material, cronológico, ele mesmo um «valor») é tudo e tudo depende do tempo. Na civilização do
trabalho – com a sua angústia do desemprego – quase ninguém consegue «cair em
si», concentrar-se, isolar-se, imaginar a espacialização do tempo (e a obra
pede tudo isso); por outro lado, assistimos, na era da imagem e do ruído, ao desaparecimento da capacidade de ver e ouvir.
4. Este último
aspecto parece-me central, e por isso me detenho nele. Há trinta anos, quando já
eram visíveis todos os sinais do processo político e cultural que explica o
ponto a que as coisas chegaram hoje (na crise que assola a Europa e na situação
da arte), uma revista alemã então muito importante – a Literaturmagazin – publicava um número dedicado a este tema: Das Vergehen von Hören und Sehen, que se
poderia traduzir, tanto por: o desaparecimento da capacidade de ver e ouvir,
como por: o crime, a transgressão de ver e ouvir! Ou seja: querer ver e ouvir
para além, ou aquém, do ruído e da poluição visual dominantes, no limite do
invisível e do silêncio, tornaram-se impossíveis, ou são vistos como algo de
inaudito, quase um crime (como no célebre poema de Brecht no exílio: «Que tempos são
estes / Em que um poema sobre árvores / É quase um crime...»). Estigmatiza-se a
capacidade de ver e ouvir porque se impôs o paradigma do paroxismo das imagens
e do ruído, uma forma de poluição que elimina progressivamente uma faculdade e
uma forma de saber que é a de reagir, com tempo, a estímulos da percepção
(Georg Simmel já se apercebeu disso há cem anos, no ensaio «As grandes cidades
e a vida do espírito»). Agora, num momento em que o acesso à produção artística
e cultural poderia ser quase ilimitado e livre (mas não é, porque é objecto de
manipulação determinada), o caminho da retirada
e do silêncio (de que fala Pascal
Quignard em La barque silencieuse,
2009) não está à vista da maioria das pessoas, que não conseguem ver «esse mais
que se dá a ver» nas obras, mas que «não tem imagem», é «o rosto por detrás da
face». Este, o grande paradoxo: estamos, na civilização
das imagens que nasceu há um século e se foi amplamente oferecendo a massas
que não sabem ver, nos antípodas de uma cultura
da imagem: na indústria da cultura dessa civilização que, paradoxalmente,
trouxe consigo o progressivo desaparecimento da capacidade de ver e ouvir, a imagem é pura superfície, o ver não
gera a reflexão.
5. O ver
que gera a reflexão proporciona a verdadeira experiência, produtiva e formativa, da obra (que é muito diferente
da sua vivência superficial, festiva
e mais ou menos exuberante). Dou, a título paradigmático, três exemplos de
experiências seminais, transformadoras (mas o que está a acontecer no campo da
produção artística oferecerá muitas mais):
a) Uma
experiência puramente estética, um
«manifesto mudo» (Rancière) da força libertadora, emancipatória no sentido mais
profundo do termo, da criação artística: o ciclo de cinco curtas de Abbas
Kiarostami, Five, uma homenagem ao
despojamento, à fruição do tempo e à beleza dos planos no cinema de Yazujirô
Ozu. Ou: Uma experiência alternativa, e ainda mais funda, inquietante e
transformadora é a de quem sai da última exposição de Rui Chafes, Tranquila ferida do sim, faca do não.
Nesta exposição de cinco peças que, pela luz (ou pela sua ausência) transformam
um espaço comum no mais enigmático e inominável lugar dos corpos confrontados
com a sua origem, o escultor acentua algo que age ostensivamente a contrapêlo
do espírito do grande circo da arte que nos submerge dia a dia: a total
«ausência de encenação» das cinco peças expostas em quase absoluta obscuridade,
todas iguais e todas autónomas. De facto, essas cinco peças esguias e as suas
frestas de luz nada encenam, são pura presença, a princípio indiscernível, de
onde, se o espectador tiver o saber do tempo necessário para assistir a um
nascimento, emerge progressivamente a luz.
b) um
momento, não puramente estético, mas artístico-performativo,
e mais local (mas o local e o global confundem-se hoje, com a diferença de que
na economia o local é anulado, enquanto na arte ele continua a afirmar-se na
diferença): a exposição colectiva de uma galeria (ainda) alternativa, uma das
muitas pequenas luzes da resistência aos holofotes da indústria da cultura, a
Galeria Zé dos Bois, em Lisboa. A exposição intitulava-se «Tem calma, o teu
país está a desaparecer», e era a manifestação, agora algo estridente e
irónica, do político através da
produção da diferença pela arte, num contexto sistémico que impõe o
sempre-igual e uma inequívoca vontade de formatar a invenção.
c) O
terceiro exemplo é o do fenómeno disperso, rizomático, mas insistente da cultura a mostrar-se e a afirmar-se pela
presença dos corpos de quem a faz, numa manifestação pública (como a que, em
Setembro de 2012, levou muitos agentes culturais à Praça de Espanha, em Lisboa).
É o sinal, ainda mais abertamente político,
de uma «multidão» no seio do «Império», como diria Toni Negri, uma vaga sem
centro que, não correspondendo à clássica noção das «massas», é o seu
equivalente «acéfalo», mas extremamente móvel, que resolve «encenar e ensaiar a
revolta». E, ao fazê-lo, dá a ver uma forma de activismo político contemporâneo
como «arte em tempo real», uma espécie de oficina artística de uma nova narrativa
política que está a gerar novos modos de intervenção colectiva. A manifestação
tem hoje, até pela apropriação imediata e generalizada, pelas televisões, de
todo o processo que a envolve, enormes potencialidades de se ver transformada
em «obra de arte total» performativa e militante. A arte está na rua, manifesto
silencioso ou ruidoso, arte performativa feita de corpos e vontades – e, neste
caso, muita encenação!
6. Nesta
diversidade, a arte não tem de estar hoje necessariamente submetida à política,
à cultura e ao negócio. No próprio reino das indústrias da cultura e dos
poderes, financeiros ou outros, existindo (mas não convivendo) com ele, instalou-se
uma fértil e muito viva an-arquia
criativa que veio substituir, em vários campos de intervenção, o antigo
poder da palavra, discursivo-argumentativo
(que se revelou ser bastante ilusório, em grande parte porque jogava no terreno
do poder e com as mesmas armas). Não estamos, como pergunta uma série de
conferências de Bernard Stiegler disponíveis na Internet, numa «sociedade sem
arte e sem cultura». Estamos longe de mais uma proclamação da «morte da arte». Nem é isso o que os políticos-políticos propõem (e não
digo os políticos da cultura, porque já os não há): eles toleram a arte na
sociedade e para a sociedade (o sistema há muito que tem um grande estômago,
como sabemos); o que eles toleram menos, e não entendem, são aquelas formas de
arte que voltam costas à sociedade dos meros consumidores, ou a afrontam pelo
simples facto de estarem aí. Os mais eficazes (e hoje já nada subtis) modos de
contrariar estas formas de arte «desinibidas da doxa» (Quignard) são os do seu
silenciamento nos media (para além
dos cortes de financiamento): nos media
só passa a) o que não dá que pensar; b) o que confirma o que todos já conhecem
(e conhecem pela repetição, à exaustão, nesses mesmos meios de comunicação). É
a «arte para todos», numa situação de pretensa «democratização da arte», o slogan mais cínico e enganador dos
nossos tempos, filho do puro populismo demagógico, hoje presente numa política
da cultura inexistente e numa indústria cultural que é só indústria sem
cultura. São as novas formas de totalitarismo
pós-moderno e «pós-burguês», que, como já escreveu Hannah Arendt (em As Origens do Totalitarismo), são filhas das
«convicções políticas [e mais ainda estéticas] da burguesia, que sempre foram
totalitárias».