19 junho, 2013

DE RILKE A MUSIL
ou
O FIM DAS METONÍMIAS

Reencontro uma pequena folha com uma anotação, já com anos (aqueles em que comecei a fazer a grande edição de Musil que foi suspensa pela editora), em que me propunha estabeleer uma relação entre um poema de Rilke e uma pequena narrativa de Musil, do quarto volume das Obras, que devia ter saído há sete anos e – juntamente com o quinto, também já entregue nessa altura – continua à espera de... não sair. O estado de coisas no mundo dos livros é este, parece não haver lugar neste país, nem para projectos mais ambiciosos, nem para obras de alguma exigência.
Os grandes textos da literatura nunca foram plenamente inteligíveis, transparentes, ou limitadamente presos ao seu tempo. O modo de expressão mais frequente dessas obras maiores (ainda que por vezes de modesta dimensão, como é o caso) é alegórico, indirecto, alusivo, polissémico e aberto. É esse modus alegórico que lhes permite viver para além do seu tempo e activar a experiência e a imaginação dos leitores.

Por outro lado, há momentos-charneira da nossa história do último século, na viragem do XIX para o XX, ou, mais ainda, no período entre as duas Guerras Mundiais, que parecem ser particularmente propícios ao aparecimento de tais textos. Tomo como exemplo, não O Homem sem Qualidades, o que seria por demais óbvio, mas uma pequena história de Robert Musil, uma alegoria a um tempo rememorativa e antecipatória, intitulada «O papel mata-moscas», que abre a colectânea de narrativas Espólio em Vida, organizada pelo autor em 1935. História aparentemente anódina, ela resiste ao tempo como os grandes clássicos, e Musil parece já sabê-lo quando escreve na «Nota» de abertura: «quando me foi proposta a edição deste livro, e quando tinha à minha frente todos os fragmentos que deveriam fazer parte dele, pareceu-me reparar que, afinal, resistem muito melhor ao passar do tempo do que eu temera».
A história descreve, com a exactidão, o pormenor e a visão ampla de Musil, a aterragem e a lenta agonia de uma mosca no papel viscoso, marca canadiana, destinado a servir de armadilha e cemitério, tal como muitos outros espaços da Europa e do mundo o haviam sido entre 1914 e 1918, e voltariam a sê-lo pouco depois, entre 1939 e 1945.
Para Musil, céptico e moderno, o mundo, tal como o conheceu, reduz-se à crueza daquela faixa de papel viscoso, de onde não há saída. As imagens da narrativa remetem claramente para um cenário de campos de batalha, e não há nelas nenhum aceno a uma qualquer intenção salvífica, a uma pars pro toto ou deus ex machina que salve moscas e homens dos desastres do século XX, que foi o seu – simplesmente porque, então como hoje, não há «Todo» a que recorrer. Nesta história não há metonímias nem metáforas – apenas, como na gravura de Dürer, uma Melancolia que penetra os tempos com o seu olhar fixo e sombrio.
Três décadas antes – tal como neste tempo que nos coube a nós viver, em que os últimos trinta anos geraram todas as ilusões e levaram à hecatombe actual –, um outro grande autor, também ele austro-húngaro, de seu nome Rainer Maria Rilke, órfico e crente, escrevia mais um poema sobre o Outono, que um crítico e biógrafo de Musil (Herbert Kraft) põe em confronto com «O papel mata- moscas» e a sua terrível clarividência, repassada da grande História e de todas as suas técnicas mortíferas, hoje espalhadas um pouco por todo o mundo, onde muitos vão também «morrendo como moscas» diante dos olhos dos que ainda vêem as TVs.
Em Rilke, contrariamente a Musil, só há metafísica, e o mundo está em ordem. No poema «Outono» (um de vários com este título, este com data de 1902), o lugar central é atribuído a uma mão salvadora que assume a função metonímica de uma parte que é um Todo e salva todos os que «parecem» cair, desmoronar-se, perder o pé. Mas em Rilke não se perde o pé. De 1902 a 1935 vai a distância que separa o mundo da segurança burguesa (tal como o descreve Stefan Zweig na sua autobiografia O Mundo de Ontem, Assírio & Alvim, 2005) e a lucidez desencantada de quem está entre duas guerras e viveu directamente uma delas. Hoje, estamos no meio de muitas, presos neste lodo viscoso em que nos vamos afundando por obra e (des)graça de políticos medíocres e especuladores que eles não travam, ou com os quais se confundem.
Deixo aqui alguns fragmentos da pequena narrativa de Musil (que, pelos vistos, não chegará tão depressa aos leitores portugueses) e o poema de Rilke. O choque entre ambos não precisa de mais comentários.

R. M. Rilke

(clique na imagem para aumentar)

De: R. Musil, «O papel mata-moscas»

O papel mata-moscas "Tangle-foot" tem aproximadamente trinta e seis centímetros de comprimento e vinte e um centímetros de largura; é revestido de uma cola amarela e envenenada e vem do Canadá. Cada vez que uma mosca pousa nele – não por grande curiosidade, mais por convenção, por já lá haver muitas outras – primeiro fica só presa pelos membros mais exteriores e mais dobrados de todas as suas perninhas. Uma sensação muito silenciosa, estranha, como se caminhássemos de pés descalços no escuro e pisássemos algo que ainda mais não é do que uma resistência macia, quente, difusa e logo a seguir algo que a pouco a pouco é inundado pelo horror humano, o ser reconhecido como uma mão que está ali não se sabe bem como e nos segura com cinco dedos cada vez mais nítidos.  
[...]
Assim que superam o cansaço espiritual e quando retomam a luta pela sua sobrevivência, depois de um pequeno intervalo, já estão presas a uma situação bastante desfavorável, e os seus movimentos tornam-se pouco naturais.
[...]
Mas o inimigo continua apenas a ser passivo e só ganha com os seus momentos de desespero e desorientação. Há um Nada, um Algo que as puxa para dentro. Tão devagar que mal se consegue acompanhar, e muitas vezes com uma aceleração repentina no final, quando o último colapso interior se abate sobre elas. Deixam-se então cair de súbito para a frente, de caras, sem força nas pernas – ou então de lado, com todas as pernas esticadas e afastadas. Ou ainda, e muitas vezes, de lado e a espernear para trás. É assim que elas ficam ali deitadas. Como aeroplanos despenhados, com as asas a apontar para o ar. Ou como cavalos mortos. Ou com gestos infinitos de desespero. Ou como uma pessoa adormecida. Às vezes ainda acontece haver uma que acorda no dia seguinte e que começa a tactear um pouco com a perna ou a zunir com a asa. Às vezes este movimento percorre todo o campo, e depois afundam-se ainda mais um pouco na sua morte. E é só no flanco do seu corpo, na região junto à perna, que elas possuem um pequeno órgão que vibra e que continua vivo durante bastante tempo. Fecha-se e abre-se e não se consegue descrever sem recurso ao microscópio. Parece um minúsculo olho humano que abre e fecha sem cessar.  


Sem comentários: