«UM URSO TÍMIDO E DESAJEITADO...»
Walter Benjamin em Ibiza
Jean Selz, a sua mulher e Benjamin em Ibiza (1932)
Neste momento em que retomei o trabalho em mais um volume (Da Linguagem e da Literatura) das Obras de Walter Benjamin, fui dar por acaso, numa busca recente do rasto mais concreto das duas passagens do filósofo por Ibiza, em 1932 e 1933, ao blog do poeta e crítico americano Tom Clark, onde este transcreve, em inglês, um dos testemunhos mais humanos e iluminantes sobre esta fase da vida de Benjamin. Trata-se do texto do escritor e crítico de arte francês Jean Selz, publicado pela primeira vez em 1954 na revista Les lettres nouvelles com o título «Walter Benjamin à Ibiza», e que eu conheço já desde os anos setenta em tradução alemã.
Voltei a ele agora porque um dos comentários a esse post dá, em duas frases (provavelmente sem consciência de tudo o que nelas está implícito), a situação paradoxal da presença – ou ausência – de Benjamin, da sua escrita e da sua vida no mundo de hoje. Transcrevo o original:
I've noticed, among the academics, that Benjamin's name serves almost as some sort of code – that he stands for something or other, but that nobody really appreciates his writings anymore, or deals with it in any substantial way. Which is a real shame, because I constantly go back to him and find astonishing insights and refreshment.
(http://tomclarkblog.blogspot.pt/2011/07/jean-selz-benjamin-in-ibiza.html)
O comentário toca em dois aspectos essenciais: o do secretismo, da valência metafórica do nome, de uma qualquer forma de mistério que ainda envolve a figura, apesar do muito que sobre ela se vem escrevendo há meio século; e o da eventual resistência, nos tempos que correm, a um tipo de escrita filosófica ou narrativa (frequentemente as duas coisas juntas) que criou os seus próprios parâmetros, que é surpreendentemente inesperada e refrescante, e indissociável de uma forma de pensamento vivo e intrinsecamente dialéctico (e – mistério dos mistérios – sem ser estritamente hegeliano nem materialista!) que não se concebe sem essa forma de escrita singular.
O próprio Jean Selz, no perfil que traça do homem e do intelectual que conheceu em Ibiza – e que refere como «um urso tímido e desajeitado» –, destaca claramente estes dois aspectos. Sobre o primeiro escreve, a propósito da última e enigmática carta que recebe de Benjamin, já em Paris, em 1934 (onde este lhe fala, em jeito de despedida, da «funesta constelação que parece pairar sobre nós»): «E assim a nossa amizade se dissipou, encoberta por aquele véu de mistério em que Benjamin tanto gostava de envolver certos fenómenos do mundo intelectual e quotidiano.» E o segundo traço apontado por aquele leitor do blog do Americano, o de uma inextricável, e única, união entre uma forma de pensamento e um modo de escrita infixo, cujo resultado é a mais rigorosa flânerie do pensar, esse segundo traço fica bem patente no parágrafo final do testemunho de Jean Selz: «Walter Benjamin foi um dos homens mais inteligentes que encontrei na minha vida. Ninguém me deu a sentir de forma tão pregnante como pode existir uma profundidade de pensamento na qual, levados por uma rigorosa lógica da faculdade de julgar, os factos da história ou da ciência se situam num plano em que coabitam com o seu duplo poético, um plano em que o poético deixa de ser visto como uma forma de pensamento literário, para se revelar como uma expressão da realidade que ilumina as mais secretas conexões entre o homem e o mundo.»
Jean Selz, o barqueiro, Benjamin e Paul René Gaugin (neto do pintor) em Ibiza
As duas fugas de Benjamin para Ibiza, primeiro num momento em que era já evidente o que viria no início de 1933 (estamos nos meses de Abril a Julho de 1932), depois já em plena vigência da ditadura hitleriana (um ano mais tarde, entre 9 de Abril e 25 de Setembro de 1933), correspondem a uma dessas fases da sua vida em que mais se evidenciam e se acumulam experiências extrafilosóficas singulares, e também os lados mais humanos da figura, que Jean Selz, melhor do que ninguém, capta no seu relato: dos casos amorosos (sem sucesso, com propostas de casamento a duas mulheres já casadas, uma já sua conhecida desde 1928, Olga Parem, a outra uma jovem pintora holandesa que aparece em Ibiza, de seu nome Annemarie Blaupot ten Cate) às experiências com haxixe, ópio e «crock» (cf. Sobre o Haxixe e Outras Drogas, Assírio & Alvim, 2010, na colecção «Alfinete»), da vivência, absolutamente nova, de um universo popular e ainda arcaico ao convívio e às amizades intelectuais mais ou menos duradouras (com Selz, Felix Noeggerath, antigo camarada de Liceu, ou o filósofo Ernst Bloch), da intenção do suicídio (e do estranho e até há pouco desconhecido testamento redigido em 27 de Julho de 1932) à salvação pela escrita do livro de recordações da infância em Berlim (Infância Berlinense: 1900, no segundo volume das «Obras» de Benjamin: Imagens de Pensamento, Assírio & Alvim, 2004)...
Tenciono seguir em breve, em Ibiza, o rasto desses tempos, que precedem os do exílio definitivo de Benjamin em Paris, e a sua morte, também ela envolvida em névoa, em Port-Bou, nos Pirenéus, na noite de 26 de Setembro de 1940. Nessa altura (se não antes) voltarei provavelmente a esta matéria.