DO POEMA
Passou mais um Dia Mundial da Poesia, assim, com maiúsculas e tudo. Não encontro sentido em tantos dias disto e daquilo, em tanta celebração que só pretende lembrar, em festa colorida e não no dia a dia, o que existe e está à vista. Neste caso, o quê? A poesia? Os poetas que a fazem e neste dia a lêem, mas no resto do ano não gostam de o fazer? Aqueles poetas que já todos conhecemos e as televisões nos mostram, para marcar presença tantas vezes com os piores e os mais estafados? Por mim, não me interessa a poesia nem os poetas, mas o que fala no poema feito: é ele que tem corpo de palavras e pode chegar a tocar a pele, os sentidos e a inteligência do leitor. Chegar aí é a destinação do poema. Destinação e não destino, porque não acredito hoje num destino da poesia (já vai longe o pathos de um Victor Hugo, e os tons mais heróicos da nossa própria poesia já não nos movem nem comovem). Não há destino para a poesia fora das circunstâncias concretas em que ela é – ou não é – feita e consumida.
Para o poema, uma construção material-mental, e não uma abstracção ou uma oração, essas circunstâncias, reduzidas a uma certa essencialidade, serão: para quem escreve, uma oportunidade de agir com as palavras, de dar a ver e ouvir o mundo de uma forma que a civilização e a razão geralmente sublimam ou recalcam; para quem lê, a circunstância (feliz) do encontro com o poema permite-lhe ter acesso, talvez mais profundo ou luminoso, ao que está a acontecer. E com isto não estou, naturalmente, a falar do que passa nos noticiários das televisões – porque isso, para mim ou para qualquer um, enquanto ser singular, não está de facto a «acontecer» (isto é, a «cair sobre mim» com a força de um abalo), porque não me passa pelo corpo (como o poema que leio), simplesmente me confirma nos hábitos e me adormece. O poema que leio ou ouço é coisa e força material e viva, e só esse me transforma e faz avançar, ou tão-somente mudar de lugar por uns instantes. Não necessariamente para diante, que os poetas nem sempre anunciam o mundo por vir. «Nas palavras vou um pouco sempre / adiantado... Não vivo neste instante», escreve António Franco Alexandre (um poeta, de resto, nada enfático nem profético). Hoje sorrimos um pouco de tudo o que soe a missão do poeta. Quem é o poeta? Que lugar ocupa a poesia para querer ser arauto de mundos futuros? Mas quando se diz (dizia?) que a poesia vai à frente do seu tempo, isso tanto pode ser uma sua vantagem em relação à cegueira do mundo, como o sinal da loucura criativa que lhe é inerente – a ela, a poesia!
O que o poema melhor e mais frequentemente faz é intervir no que está a acontecer (se lhe derem oportunidade para isso – e hoje há muitas), e para isso não precisa hoje de se empenhar em pesadas militâncias, nem sequer de interpretar o mundo com filosofias (ambas as coisas estão definitivamente desacreditadas). «Inutilmente exacto» (Gastão Cruz), o poema mostra simplesmente aquilo que é: olhar as coisas (as de fora e as de dentro) e dá-las a ver, é essa a modesta utopia do poema, a sua destinação desde as origens.
Como já escrevi antes, o poema não quer ser mais do que uma hipótese – de conhecimento (outro), de experiência partilhável, do «jogo de relações das coisas entre si» (Novalis). E apesar disso – ou precisamente por isso –, existe uma livre vocação utópica do poema (não da poesia) que, se não lhe concede quaisquer direitos em relação ao futuro, permite-lhe abrir portas que, no presente, dão para lugares onde o mundo – que aqui, afinal, é feito só da matéria tão frágil e tão forte das palavras e do que delas se levanta – pode ser, e certamente é, melhor. Não o melhor dos mundos (essa miragem das Luzes), mas com certeza um mundo melhor que o das esferas, totalmente desacreditadas, mas aparentemente incorrigíveis, dos poderes discricionários (mesmo que democraticamente camuflados) e das guerras.
É claro que sabemos que continuam andar por aí muitos poetas (alguns quase oficiais) que desacreditam a poesia, como já o sabia um poeta semi-oficial, mas lúcido, como Goethe, quando escreve no seu «Livro das sentenças»: «Digo-te que muito me arrelia / Ver tantos cantores e profetas! / Quem espanta do mundo a poesia? / – Os poetas!». Sobretudo nos Dias Mundiais da Poesia. Nos outros, durante todo o ano, seria bom poder ouvir o fio de voz discreto e in-sensato de poemas in-significantes, mas que podem ter repercussões imprevisíveis. Como este do brasileiro Manoel de Barros:
Para encontrar o azul eu uso pássaros. Para o poema, uma construção material-mental, e não uma abstracção ou uma oração, essas circunstâncias, reduzidas a uma certa essencialidade, serão: para quem escreve, uma oportunidade de agir com as palavras, de dar a ver e ouvir o mundo de uma forma que a civilização e a razão geralmente sublimam ou recalcam; para quem lê, a circunstância (feliz) do encontro com o poema permite-lhe ter acesso, talvez mais profundo ou luminoso, ao que está a acontecer. E com isto não estou, naturalmente, a falar do que passa nos noticiários das televisões – porque isso, para mim ou para qualquer um, enquanto ser singular, não está de facto a «acontecer» (isto é, a «cair sobre mim» com a força de um abalo), porque não me passa pelo corpo (como o poema que leio), simplesmente me confirma nos hábitos e me adormece. O poema que leio ou ouço é coisa e força material e viva, e só esse me transforma e faz avançar, ou tão-somente mudar de lugar por uns instantes. Não necessariamente para diante, que os poetas nem sempre anunciam o mundo por vir. «Nas palavras vou um pouco sempre / adiantado... Não vivo neste instante», escreve António Franco Alexandre (um poeta, de resto, nada enfático nem profético). Hoje sorrimos um pouco de tudo o que soe a missão do poeta. Quem é o poeta? Que lugar ocupa a poesia para querer ser arauto de mundos futuros? Mas quando se diz (dizia?) que a poesia vai à frente do seu tempo, isso tanto pode ser uma sua vantagem em relação à cegueira do mundo, como o sinal da loucura criativa que lhe é inerente – a ela, a poesia!
O que o poema melhor e mais frequentemente faz é intervir no que está a acontecer (se lhe derem oportunidade para isso – e hoje há muitas), e para isso não precisa hoje de se empenhar em pesadas militâncias, nem sequer de interpretar o mundo com filosofias (ambas as coisas estão definitivamente desacreditadas). «Inutilmente exacto» (Gastão Cruz), o poema mostra simplesmente aquilo que é: olhar as coisas (as de fora e as de dentro) e dá-las a ver, é essa a modesta utopia do poema, a sua destinação desde as origens.
Como já escrevi antes, o poema não quer ser mais do que uma hipótese – de conhecimento (outro), de experiência partilhável, do «jogo de relações das coisas entre si» (Novalis). E apesar disso – ou precisamente por isso –, existe uma livre vocação utópica do poema (não da poesia) que, se não lhe concede quaisquer direitos em relação ao futuro, permite-lhe abrir portas que, no presente, dão para lugares onde o mundo – que aqui, afinal, é feito só da matéria tão frágil e tão forte das palavras e do que delas se levanta – pode ser, e certamente é, melhor. Não o melhor dos mundos (essa miragem das Luzes), mas com certeza um mundo melhor que o das esferas, totalmente desacreditadas, mas aparentemente incorrigíveis, dos poderes discricionários (mesmo que democraticamente camuflados) e das guerras.
É claro que sabemos que continuam andar por aí muitos poetas (alguns quase oficiais) que desacreditam a poesia, como já o sabia um poeta semi-oficial, mas lúcido, como Goethe, quando escreve no seu «Livro das sentenças»: «Digo-te que muito me arrelia / Ver tantos cantores e profetas! / Quem espanta do mundo a poesia? / – Os poetas!». Sobretudo nos Dias Mundiais da Poesia. Nos outros, durante todo o ano, seria bom poder ouvir o fio de voz discreto e in-sensato de poemas in-significantes, mas que podem ter repercussões imprevisíveis. Como este do brasileiro Manoel de Barros:
Só não desejo cair em sensatez.
Não quero a boa razão das coisas.
Quero o feitiço das palavras.
(Imagens: Edward Hopper)