30 julho, 2007

DIÁLOGOS DA LUA CHEIA

Interrompo a série que vinha fazendo sobre a poesia portuguesa, a natureza e a paisagem (que terminarei com Nuno Júdice e Herberto Helder), para aproveitar a Lua cheia que anda por aí, também ela ardendo nestes calores, antes que se esconda e nos deixe. Vi-a ontem, já tarde, na minha varanda, e hoje as suas imagens, vistas com surpresa no computador, chamaram outras Luas, que li há muito tempo na poesia de Federico Garcia Lorca, talvez um dos poetas do século XX que mais repetido e mágico diálogo entabulou com a Lua. Voltei a ele, sobretudo ao Romancero Gitano (1924-1927), e senti que todas as imagens que eu tinha captado desta nossa Lua cheia de hoje já ele as tinha visto e escrito (só a última, a do poema «Agosto», não é do Romancero, mas das Canciones, 1921-1924). E nasceu um diálogo entre a Lua cheia, a minha varanda, um raminho verde que se interpôs entre mim e Selene, e todas as Luas ciganas de Lorca, lunas luneras em noches platinoches nocheras...

(a sequência pode ser vista em formato maior clicando em cada imagem, ou em formato de slide show aqui).


















29 julho, 2007

UMA INQUIETA CERTEZA...(10)

A NATUREZA E A PAISAGEM
A POESIA, A PINTURA E A FOTOGRAFIA

(Um tema impossível, com Morandi e Cruz Filipe,
Daniel Blaufuks e Jorge Molder em fundo)



B) Naturezas mortas

Ecfrase: Pedro Tamen e Vasco Graça Moura

Onde está a Natureza aqui? Na pretensão ou na nostalgia de a arte ser natureza: em Tamen, o que já é natureza morta no quadro de Morandi potencia-se numa outra, que pretende no poema mostrar como a primeira (aliás, segunda!) é «verdade»! É (diria o velho Pessoa) um «terraço de um terraço de um terraço que dá sobre uma coisa que, ela sim, será linda»? Será! Mas será ela «verdadeira»? A «natureza» aqui — jarras, pichéis, almotolias — é em si já morta: a arte é que a torna viva (cf. verso 7).

Giorgio Morandi

Morandi, Giorgio

Jarras, pichéis, almotolias,
fugazes flores na fuga da atenção;
quase nada em verdade,
salvo a luz de um tempo bem atrás
do tempo do pincel
no tempo deste olhar.
A natureza morta e mais que viva,
varanda resistente ali plantada
sobre o vazio aceso, intenso,
e tanto que o não é:
quase nada e verdade.

(Depois de Ver, Quetzal 1995)


Giorgio Morandi

Em Graça Moura dá-se o cruzamento da arte (e reminiscências subtis de outras obras: o dedo sobre o bico do peito é citação!) com uma nostalgia da natureza que não pode ter lugar neste mundo (em Cruz Filipe estamos num universo da ilusão barroca) — a não ser na pele da mulher? Mas até ela é só da pintura/da cultura/da atmosfera decadente do quadro. Todo o quadro, e os poemas sobre ele, respiram melancolia: melancolia de um universo outro, o de uma Sintra que mal se avista, o de uma natureza mítica de corpos de ninfas e faunos onde esta figura se revê...
O Bildgedicht, o poema que se sobrepõe ao quadro, é o exemplo máximo, e mais refinado, de rarefacção da natureza na poesia de hoje, ou do seu encontro assumido com a arte.

Cruz Filipe, L'ordre des visibilités

crónica feminina

1. entre as dobras da seda

entre as dobras da seda a leva cinza
da fieira de pérolas correndo.
as sombras azuladas vão descendo,
sobre a gaveta aberta, a luz desliza

e a mulher ao espelho, a indecisa,
pousou o pente e pensa por momentos
e no bico do peito os sentimentos
com as pontas dos dedos sintoniza.

de sintra mal se avista o promontório
prateado da lua, o lugar onde
entre faunos e ninfas se revê.

e o gesto longo pára merencório,
enquanto ao fim do mar o sol se esconde
e ela sorri mas sem saber porquê.


Cruz Filipe, Les portes s'ouvrent sur les miroirs


3. estava nua, só um colar lhe dava

estava nua, só um colar lhe dava
horizontes de incêncio sobre o peito,
a transmutar, num halo insatisfeito,
a rosa de rubis em quente lava.

estava nua e branca num estreito
lençol que o fim do sono desdobrava
e a noite era mais livre e a lua escrava
e o mais breve pretérito imperfeito.

só o tempo verbal lhe fugiria,
no alongar dos gestos e requebros,
junto do espelho quando as aves se vão.

toda a nudez, toda a melancolia,
a dor do mundo, a deslembrança, a febre, os
olhos rasos de água e solidão.

(Sonetos Familiares, Quetzal 1995)



A segunda natureza das cidades:

Joaquim Manuel Magalhães

Uma poesia que, por detrás de uma parede aparentemente prosaica, sem qualquer réstia de emoção ou de «lirismo» (como poderia ser de outro modo, sendo o mundo como é?), é, desde os anos oitenta (Os Dias Pequenos Charcos, 1981), um barómetro que revela uma consciência aguda do processo de desfeamento do mundo à nossa volta — das cidades, dos subúrbios, mesmo dos refúgios «naturais» em que hoje domina a natureza de betão (é esta a dominante nesta poesia). Tudo isto — e o mal-estar derivado deste nosso modo compulsivo de estar (e já de ser) — foi sendo poeticamente descrito em registos que vão do frio e sarcástico (falou-se de «novo realismo») ao melancólico.
Desde Os Dias Pequenos Charcos, J. M. Magalhães cultiva um regresso perverso a uma imagética e aos motivos da Natureza e da sua poesia mais ou menos feliz (vd. os «Idílios»), transmutando-os em visões quase apocalípticas dominadas pelo «baldio dos afectos», o betão, o logro e a morte, «a poeira levada pelo vento». Negativiza todo um instrumentário da tradição e dos seus clichés, vira do avesso todos os «idílios« (vd. «Sloten»), com uma ironia cortante ou melancòlica, e a certreza de não poder fugir à segunda natureza que se apossou de toda a vida (sub)urbana nos charcos dos dias. Desfaz amargamente todas as ilusões de qualquer sentido apaziguador ou reconciliador de Natureza: no plano dos corpos/afectos e no das coisas naturais, campos, céus (vd. «Idílios»; «O cimento...»).

© Jorge Molder

Idílios

Dois

Lavou as mãos na água cinzenta.
Povoado de presságios o olhar
não abre já para nenhuma chama.
Davam-lhe a beber esses venenos.

Era flor e morte e sobre o mar
o esfaimado tigre da tristeza.
O fictício aparelho da razão
guiava um rebanho enfeitiçado.

Uma espécie de vento imperfeito
voltou a soprar. Os dedos
reabrem essas caixas misteriosas
donde antes tiravam as agulhas,
os rebuçados, os botões, a fita grená.

Quatro

Vamos dar-nos ao culto das estrelas
sanções e mais sanções e o absoluto
bem preso dentro da camisa.
O sedutor. Diziam que eras tu, os enganados.

Balas de sombra atiradas sobre corpos
separados doutros corpos vai o meu
correndo de ti por furnas de betão.
Versos e versos para dizer isto, o amor.

Os meus braços iam com os teus.
Desse nó grassou a peste que nos campos
chamam os granizos as geadas.
Posso chamar-lhes o espírito
coberto de tintas, o rubor do ferro,
o anil dos figos, o ocre da testa dos bezerros,
o cobalto minado do amanhecer.

A perversão dos versos conduz-me.
Sedutor exposto ao frio
da casa erguida por seus erros
dou-te uma luz de azeite para te perderes.

Os detritos da vida invadem esta vida.

Cinco

O lance do olhar entre fetos e troncos
corta como as frechas da ternura.
Canas, miosótis, multicores
os pássaros rompem dos refugos.

Vi-os nas fotografias, por serras de cartão,
os cactos e as folhas podres
juncando-lhes os pés.

Faias de cetim no cerro dos telhados,
a mesa com a folha de cerdeira,
as cortinas vermelhas apanhadas
pelo garço gorgorão onde balança
o basalto de teus olhos.

A sombra azul chamada o céu.

(Os Dias Pequenos Charcos, Presença 1981)

© Jorge Molder

O cimento antes de secar


Estou a tentar abrir uma porta.
Não sei para que lado a chave vai quebrar
nem sei como chegou à minha tentativa
o interdito com que de novo procuro.
Alguma coisa está a ser calcada
no interstício dos gonzos, na dobradiça
cercada de estrelas mortas a fulgir.

Atravessou entre pinheiros.
O vento levantava areia,
enterrava-se no côncavo da represa.
Faltava a esse amor a ilusão
do amor. O céu mordente.
Esse rastilho quase animal.
Toda a explosão do mundo.

De golpe incendiaram-se as plantas,
as que de mês a mês vemos crescer
até às flores as que dão flor,
a novos ramos as que só dão folhas.
Mês a mês, ramo a ramo, flor a flor,
a mentira bate na lagoa e dança
no tecto com as venezianas corridas.

Ficámos a falar por muito tempo.
Tinha o corpo de betão.
Mostrei-lhe livros, discos, labaredas
que falham quando procuramos
as palavras que já os olhos disseram.
E há umsilêncio entre gestos cegos.

O mármore pulsa com os pontos cardeais.
Parece o coração. Bátegas
de encontro ao fechamento, obscuras.
Escuta, continua a escutar, a treva
solta-se da terra inacessível
onde os diamantes prefiguram
a nossa petrificação.

Vivíamos no canal de lava da rua,
no último café a fechar,
as solas sobre um vidro em ebulição
e perdíamos.

É muito de manhã. Acorda
a dor humana que me faz companhia.
Estou a sair de tua casa
a caminho de lugar nenhum,
a minha casa, esse vazio
com a música arrumada,
o cinzeiro, o aspirador, a cortina míope,
a gelatina da cama
onde não mais queria voltar.

© Jorge Molder

Sloten

Às vezes acordamos felizes. A casa
está sossegada, o quarto
dá para um ancoradouro com cantarias caídas
e árvores rentes e muretes de socalco.
O burel da cortina antepara o céu
opaco sobre prédios urbanos.
O universo, submisso, parece disposto
para proteger; acolhe na manhã
as fachadas com os andares de três janelas,
de duas, de uma apenas; terminam
em triângulos difusos na neblina.
O aquecimento irradia dos tubos, a chuva
acaricia os barcos parados, um homem com vara
debruça-se para retirar detritos.
Bandos de pássaros, brandos ventos, tudo pousado.
Abro a blindagem do quarto e ouço
os tijolos, a tinta, as escadas, o corrimão
a sangrar.

*

Barcos, velas colhidas na esquina de rua.
E o seu corpo vibrante de placidez
no abandono ordenado da periferia;
os regulares, milimétricos, prensados
blocos de arrabalde da trucidação industrial.
[...]

(A Poeira Levada pelo Vento, Presença 1993)


© Daniel Blaufuks

António Franco Alexandre

O «núcleo urbano» da poesia de A. F. Alexandre é um aspecto do seu universo poético deliberadamente artificial: a natureza não tem lugar aqui, a não ser como em J. M. Magalhães. Mas há um fundo matérico desta poesia que tem a ver com natureza: escreve-se a partir de uma lúcida fenomenologia do impreciso que sustenta um jogo com a qualidade quase matérica da experiência e vive de incisões sobre o pormenor, a única coisa que é poeticamente habitável. Mas toda esta poesia (do Als-Ob, de um «como se» como estratégia poetológica) assenta num grande paradoxo e dele vive: escrevendo ao fio do corpo, não escreve com nenhuma pretensão de autenticidade, mas «como quem mente». A natureza morre, porque aqui se dá ao mundo uma ordem de despejo e se faz o luto da mimese.

A questão urbana

1.
estas cidades, grés animal, as garrafas de sangue nos passeios,
prenunciam devagarmente um acordar translúcido. o que
movimentam no espaço, e aos bandos
os pássaros decifram sobre o musgo e a hera,
é o mesmo ar que na traqueia queima; e o cimento,
translúcido, o mesmo que nos braços percorreu as veias,
que nos olhos foi lava, que nos brilhou na boca
dizendo: estas cidades, grés animal, um acordar sem boca.

2.
movem nos muros, a vagina mineral das mães
adormecidas, entre os apitos trémulos do aço
e lenços verdes onde ocultam a cara. prenunciam, é certo,
algum visível afastamento das madeiras, algum
pensamento violentado, porisso as coisas permanecem sentadas
e compreensíveis, afastadas de súbito pelo vento oco.

3.
arrebanhados, como cães feitos de água, os dentes
entendem, decifram sobre o grés as patadas da terra,
espalham na violência um musgo que prenuncia a
transparência. foram construídas, assinaladas sobre o mapa por
bandos de pássaros, respondem a algum ódio decisivo,
algum afastamento da violência; o grés, os olhos,
e o próprio desenho aéreo das lágrimas, aonde
se perde pé muito de repente e se afundam as asas
como uma lava dividida, um vidro, a soar junto à boca.

4.
separam, mas esse
é o seu rancor exaltado, a madeira onde furam
as gengivas dos cães, e muito depois brilha o calcário dos dentes.
nasceram de um modo diferente de pousar os ossos
contra o peso da tarde, alguma raiva, algum pedal minucioso,
como quando a sombra do pianista oculta um muro baixo
onde está sentada, ausente ao musgo, a mulher que um dia desejámos.
[...]

[Os Objectos Principais, 1979]

**

Emersoniana

a oeste são os planaltos, a vida selvagem
que um céu de água recolhe,
um horizonte de coisas por dizer, por acontecer
mas a verdade mais abstracta é a mais prática:
let him look at the stars. tão longe
do seu próprio quarto como da multidão.

porisso os selvagens, que não têm mais
que o necessário,
conversam em figuras.
esta dependência imediata da linguagem
esta radical correspondência das coisas visíveis
nunca perde o poder de afectar-nos.

devemos ir sós, vivos e sós. i must
be myself.
tudo quanto Adão teve, o céu a terra a sua casa,
tudo podes e tens.
keep thy state; come not into their confusion.
constrói, sim, o teu reino, o teu mundo: natureza.

[As Moradas, 1987]

(Poemas, Assírio & Alvim 1996)

22 julho, 2007

UMA INQUIETA CERTEZA...(9)

A NATUREZA E A PAISAGEM

A POESIA, A FOTOGRAFIA E A PINTURA


(Um tema impossível, com cal e sombras,
pedras e Rothko em fundo)


Da natura naturans à natura naturata

Ou seja:
a) de poetas nos quais a natureza é uma presença activa que se manifesta em focos de grande intensidade (o corpo, o pó, os elementos em Casimiro de Brito), como centro de uma sabedoria que se funde, no Tempo, com a do Homem e da Arte numa espécie de religião da Natureza (António Osório), ou como objecto de uma consciência ecológica e nostálgica que constrói toda uma teia de motivos poéticos a partir das naturalia (Francisco Duarte Mangas)...
b) até outros nos quais a natureza se ausentou, e surge só como Natureza morta e sob formas de segunda natureza: na ecfrase (sobre naturezas mortas — Pedro Tamen — ou «vivas» no quadro — Graça Moura), na poesia urbana e na metapoesia, que a si própria se toma como natureza.
c) Por fim, há poetas nos quais estas distinções fazem pouco sentido: são aqueles (Herberto Helder e algum Ramos Rosa) nos quais a poesia aspira à fusão total de tudo em tudo, e por isso é atravessada por uma energia visionária e vital, por um sentido da Natureza enquanto força que tudo informa, incluindo a linguagem...


A) A natureza viva


António Osório

Exceptuando o caso de Heraclito e outros pré-socráticos, que podem, hoje, ser lidos como poetas da natureza, o grande modelo da poesia antiga da natureza para o Ocidente foi Lucrécio e o De Natura Rerum. Entre os poetas portugueses de hoje, quem o leu? António Osório parece tê-lo feito (cf. o título Ignorância da Morte, e referências concretas dispersas pela sua poesia): também aqui, é a natureza, e não uma qualquer metafísica abstracta, que constitui, juntamente com o campo dos afectos (cf. o título A Raiz Afectuosa), a referência fundamental desta poesia feliz, e não trágica: como em Lucrécio, ela quer destruir os temores humanos, o medo dos deuses e da morte, provar que a alma é mortal como os átomos do corpo, e apesar disso, ou por isso, está aí à mão e, como diria Espinosa, pode ser «eterna» (veja-se o final do poema «Peso do mundo»):

Peso do mundo

A poesia não é, nunca foi
uma enumeração ou composto
de exuberância, bondade,
atitude, nem arado
ou dádiva sobre chão
prenhe de mortos.

Nem o arrependimento
de Deus por ter criado o homem
com o rosto da sua memória,
ao lado dos seus vermes.

Tão-pouco fôlego dos que amam
abrindo a porta límpida
do corpo e chovendo sobre a terra,
ou carregam como tartarugas
o peso do mundo.

Nem reverência por um tigre,
pela leveza maligna de todas as patas,
pela sonolência junto à estirpe
aprisionada também
na dureza de ser tigre.

É o milagre de uma arma
total, de uma só palavra
reduzindo o átomo à completa inocência.

[Ignorância da Morte, 1978]


A Natureza de Osório é a da Terra, de uma terra já moldada pela mão humana e pelo Tempo (o que é a mesma coisa) e livro em que Deus está inscrito. Panteísmo? — cf.«Onde o limite?»; ou o topos do livro como mundo («legendas da película da terra»), em «Aparições no poço» —, espelho de uma sabedoria ancestral («Candeio»).

Onde o limite?

A cobra cascavel
rojando-se
e tomilho, louro,
segurelha, os princípios
solúveis
das ervas aromáticas;
o rebento
da silva, sua páscoa,
e as árvores
que são parasitas
suspensos de outras árvores;
as lancinhas
de um centeal
e o sangue por Cristo
suado (Deus sofrendo de terror):
tudo imbricado como telhas,
e persistente, adventício, sem perdão.

[Décima Aurora, 1982]

Aparições no poço

Quando chegam as primeiras nêsperas
ao lado florescem as cilindras
e as folhas dos bambus amarelecem.
O mirto aguarda, entre laranjeiras
elevam-se famílias daninhas.
Há quem chame Deus às legendas
que acompanham a película da terra.
Dentro (isso é certo) nas entranhas
de tudo existe um cronómetro sádico.

Candeio

Candeio de olivedo
na paz de rochas,
e faval junto,
limpa, pelo estrume,
a terra, caracóis
imutáveis, coelhos
escavando
sua perigosa pátria.

Revolvidos séculos,
nascentes cachos de azeitona.
Sabedoria de crescer,
dar, cair varejados.

[Ignorância da Morte, 1978]


Tudo isso — do infinitamente pequeno ao infinitamente grande, num eco da grande «cadeia do Ser» — tem «Um sentido» (contra a poesia do desespero ou do desencanto, as certezas do eterno retorno e do seu «cronómetro sádico»): como a Arte, que a natureza aqui não rejeita ser (vd. os «Aforismos do Cavalo» em Aforismos Mágicos), como me escrevia uma amiga bela e inteligente, num tempo nada distante em que se escreviam cartas, depois de eu lhe recomendar a leitura de António Osório: «Aquilo cheira muito bem a Siena e Florença... tem a vantagem de abafar o enjoativo apelo do mar, que é a única natureza que teimamos em conhecer» (Llansol dar-lhe-ia razão, tem-lhe dado razão com a sua «estética hidrofóbica», desde Da Sebe ao Ser, até O Senhor de Herbais).

Um sentido

Porque há um sentido
no lírio, incensar-se;
e no choupo, erguer-se;
e na urze arborescente,
ampliar-se;
e no cobre, primeira cura,
que dou à vinha,
procriar-se.

E outro, pressago,
sentido há na memória,
explodir-se.
E outro, imensurável,
no amor, entregar-se.
E outro, definitivo,
na morte, render-se.

[O Lugar do Amor, 1981]

Poesia simultaneamente simples e classicizante (cf. a sintaxe, o léxico). Mas no essencial quer ser limpa e despojada como a natureza — conhecendo, naturalmente, as «astúcias do poeta»: limpar as palavras da sujidade; simplificar sempre, usar poucos adjectivos; dizer o inominável de uma forma brutal: o máximo de violência num mínimo de retórica, vulcânica orquestração de pianíssimos («Entrevista apócrifa»).



Francisco Duarte Mangas

Um autor que não perseverou, hoje já esquecido. O mais lucreciano destes poetas? Como o Ponge de Le Parti Pris des Choses, mas num registo mais poetizado e menos descritivo ( e também sem o trabalho sobre as palavras e seus jogos). Poesia epigramática (como a de Casimiro de Brito, e alguma de A. Osório) feita com as coisas da natureza animal e vegetal, e contendo, como o epigrama em geral, o seu toque «moral» (ecológico). É talvez o único caso de uma poesia ecológica (ecopoesia) em Portugal, com paralelos talvez apenas na de Cinatti sobre Timor.


Também como em Ponge, há aqui (e em Osório) um sentido de didactismo e uma ética que a natureza pode ensinar ao Homem. «Natureza» é aqui o animal, a planta, tal como o são o ferrador de António Osório ou os corpos de Casimiro. Marca humanista? De qualquer modo, parece haver nestes três poetas formas diferentes de humanismo, ou de poesia humanizada, contra a corrente dominante, mais fria. Um novo classicismo (como em Ponge)?. Em Francisco Duarte Mangas é também de uma nova forma de poesia de intervenção que se trata, algo nostálgica, por vezes, em relação ao processo de degeneração ou domesticação da natureza (basta inverter um provérbio: «morrer como tordos»), atravessada por uma certa ironia e pela presença de um franciscanismo ecológico (vd. final de «Especiarias»).


Espécies

Os tordos voam
em bando

morrem um a
um

**

O lince
tem os olhos em extinção

**

O furão
viola a última
privacidade possível

o caçador seduziu-o
para esse fim

**

Paraíso pintado de fresco

A morte é o único bem
que se possui
no paraíso branco

tudo o resto é gratuito

Especiarias

Deve existir uma outra
noite
onde caibamos todos

inocentemente felizes
a comer laranjas
e a discutir problemas de aromas
de flores

(O Pequeno Livro da Terra, Teorema 1996)



Casimiro de Brito

O caminho de Casimiro de Brito é de há muito o de uma poesia de experiências (quase sempre do corpo, dos sentidos, da morte tida como natural), depuradas e amplificadas a dimensões últimas, explorando pouco mais que o instante pleno/vazio, intensidades, fulgurações (respira-se a lição do Zen, como também em António Osório, e o quietismo do Tao).


Como a pedra na água: cai, marca um centro, desce ao fundo, deixa à superfície linhas ténues, círculos que se vão apagando, dando lugar a outros. Poesia muito consciente dos seus meios (influência do haicai, do imagismo, umas vezes puro — vd. poema 39 —, outras conceptualizado ou metaforizado), em que o branco alastra, à espera da sua apoteose, sob a ameaça sempre latente da palavra («O melhor que escrevo / é quando apago»). E com o Eu, um Eu que se agiganta, sempre à vista — talvez a grande contradição desta poesia de inspiração oriental, que tem alguma dificuldade em não ser egocêntrica. A Natureza: uma filosofia, servida nos exemplos que escolhi entre muitos possíveis por uma cadeia isotópica de palavras-chave inconfundíveis: depuração, o invisível, fundo/caos, silêncio, apagamento/o Nada...


Intensidades

4.

Afago a taça de chá

como se fosse uma laranja

de sangue. O teu seio. Concha
depurada
por mil gerações.

11.

Amor flui onde parece

não haver amor apenas

água que se respira

invisível.



13.
Leio as cicatrizes

da água — papiro crispado

como convém à arte
que vem do fundo.


25.

Sofro não sei de quê

mas sei o que amo — este

momento — o prazer contaminado

pela nostalgia do caos.


39.

Manhã de outono: a sombra

do ramo de flores

na parede branca.


51.

De canto em canto

vou caindo

no charco do silêncio.


69.

Não me pisem,

já não danço —

o melhor que faço

é quando descanso.

Não me louvem,
estou cansado —
o melhor que escrevo

é quando apago.


(Intensidades, Limiar 1995)

19 julho, 2007

UMA INQUIETA CERTEZA... (8)

A NATUREZA E A PAISAGEM
A POESIA E A FOTOGRAFIA


(Um tema impossível, com fractais em fundo)



Carlos de Oliveira: o poema-fractal

Carlos de Oliveira representa um caso muito particular de um autor que vem de um neo-realismo em que terra e natureza eram instrumentos de um trabalho ideológico, mais que poético (até Cantata, 1960). Por exemplo ainda num poema como «Imagem», onde são legíveis os últimos estertores do neo-realismo nas metáforas heróicas, ou pelo menos de sentido colectivo:


Imagem

Cardos
em teu louvor
pisados por quantos já vieram
de pés nus
lacerados
cantar-te antes de mim
cardos
à tua imagem
pátria
de tojo.


Nessa fase, a imagética da natureza invade o campo ideológico, e serve-o, como depois irá servir o de uma Poética. É uma «deslocação», já pós-modernista, que ficcionaliza a teoria e a transporta para dentro do próprio campo da escrita poética. Nesta linha se insere também a importância da personagem do «inventor de jogos» (contraposta à do cientista), típica da atitude de radical perspectivismo em Carlos de Oliveira. É isto que acontece em «Estrela», «Cinema» ou «Papel», poemas de Sobre o Lado Esquerdo (1968):

Papel

Pego na folha de papel, onde o bolor do poema se infiltrou, levanto-a contra a luz, distingo a marca de água (uma ténue figura emblemática) e deixo-a cair. Quase sem peso, embate na parede, hesita, paira como as folhas das árvores no outono (o mesmo voo morto, vegetal) e poisa sobre a mesa para ser o vagaroso estrume doutro poema.


Aqui, o trabalho poético encaminha-se para uma metapoesia que se serve da Natureza e a metaforiza, sugerindo analogias para a criação — lenta, em slow motion como no «grande e infinitesimal cinema do mundo» (Osvaldo Silvestre): veja-se o paralelismo entre as folhas e a analogia natureza-poema através das metáforas do bolor e do estrume, metáforas, ainda organicistas, de vida, germinação, fertilidade, analogias que evocam a imagem dos fractais (naturais e construídos) e confirmam a vertente altamente «construtivista» desta poesia.


Tudo isto irá «esfriar» nos últimos livros, em Micropaisagem e Pastoral (e isto é sinal inequívoco de uma modernidade nova). Primeiro, na rigorosa analogia traçada entre a formação da «Estalactite» e do poema:

[...]
III
Se o poema

analisasse

a própria noscilação

interior,

cristalizasse

um outro movimento

mais subtil,

o da estrutura

em que se geram

milénios depois
estas imaginárias
flores calcárias,
acharia
o seu micro-rigor.

[...]


No ciclo com este título, o mais acabado exemplo deste trabalho analógico, a natureza fornece o material para a construção de uma poética: é uma lentíssima e minuciosa indagação dos processos da natureza como símile do processo poético, com o rigor frio de um olhar sem sujeito em que o próprio poema se analisa no seu micro-rigor, para «determinar com exactidão o foco do silêncio», numa «caligrafia de pétalas e letras», caindo de um duro «céu calcário de verso em verso» para chegar à «tensa construção de algo mais denso»: o texto é então verdadeiramente como um fractal (se quiser ver uma sequência de fractais em slide show, clique aqui), um cristal de palavras que alcançam um «grau de pureza extrema, insuportável, quando o poema atinge tal concentração» — e o mundo se retira.


Em «Chave» (1976), iremos já encontrar a dureza (vd. as imagens de uma natureza pétrea, vítrea, férrea, de esmalte, glaciar), o frio de uma poética sem réstia de afectividade nem sentimentalismo, o poema à imagem do glaciar.

Chave

Se uma película de vidro
adere à pele da pedra; se algum
vento vier,

Afere-lhe o esplendor [...]

Rodar a chave do poema
e fecharmo-nos no seu fulgor
por sobre o vale glaciar. Reler
o frio recordado.


Esfria, de facto, a olhos vistos em Pastoral (como no Celan dos últimos livros e da poesia do espólio — cf. as traduções portuguesas Sete Rosas Mais Tarde. Antologia Poética e A Morte é uma Flor. Poemas do Espólio, editadas por Livros Cotovia —, ou também nos últimos poemas de Johannes Bobrowski, em Como Um Respirar. Antologia Poética, igualmente da Cotovia), não só pela imagética dominante, mas também porque o poema se torna coisa cada vez mais distante e menos de um sujeito, como se lê no final de «Chave» («Reler o frio recordado») e em «Musgo», onde a ideia do poema é remetida para «alguma ideia disto», ou seja do poema já só recordado, coisa de um tempo onde se acumulam imagens de ruína, decomposição e silêncio, já só acessível através do «musgo», (formação que exige muito tempo!), com o seu «discurso esquivo de água e indiferença» (Pastoral, 1976). Neste Carlos de Oliveira, como no de Finisterra (1978), a Natureza vem substituir a História da fase inicial; mas é uma natureza que só existe no texto, «o mundo só é atingível (se o for), pela mediação de uma textualidade que se tornará ela mesma representativa da (des)ordem da Natureza» (Osvaldo Silvestre).


18 julho, 2007

UMA INQUIETA CERTEZA... (7)

A NATUREZA E A PAISAGEM
A POESIA E A FOTOGRAFIA

(Um tema impossível, com gomas bicromatadas em fundo)




Fiama

A poesia de David (vd. post de 16 de Junho), com um alto sentido da forma, como que encerra a experiência (dos corpos) nessa forma; Fiama, nos livros dos últimos anos, e numa linha inconfundivelmente órfica, pratica uma poesia da contaminação de tudo por tudo — ou do desejo disso —, incluindo o próprio poema, que não objectiva o mundo, mas entra em ligação (re-ligação) com ele. Há um derrame, um sopro que informa e rege também o próprio poema (e que é visível na forma discursiva e torrencial de alguns), e com ele os corpos vivos, as coisas mudas e os ritmos eternos do cosmos.


A lei do poema é a lei de um monismo essencial, em que cada «imagem» (vd. «Canto das imagens») é a manifestação da concretude única das «coisas parcas, poucas, singulares», que, sendo únicas, participam de uma unidade perdida («Ao princípio era só uma em cada olhar»), de uma anima mundi que a fotografia — escreveu Baudelaire em «Le public moderne et la photographie», de 1859: mas a sua relação com a fotografia, e com fotógrafos seus contemporâneos como Nadar, é ambígua) — terá vindo profanar e destruir (as fotografias que aqui se incluem talvez provem precisamente o contrário!).


Cada poema (vd. Epístolas e Memorandos, 1996) é agora um pequeno e perfeito ritual celebratório que se inscreve numa genealogia órfica: a do poeta que se dispõe a ouvir para dar voz (vejam-se os finais de muitos poemas), e com isso traçar a ponte que une começo e fim, as pequenas coisas e os ecos cósmicos da Criação, em Cantos onde «todos os contrários são unidos». Em Epístolas e Memorandos essa sabedoria dos elementos e das coisas últimas da natureza parece que se refina e a pose poética torna-se ainda mais «franciscana»: foi um livro escrito «nos intervalos da respiração» do outro (Cantos do Canto, 1995), e nele se encontram registos do olhar dirigidos ao Ser e à memória dele, em poemas do ocaso do dia (vd. «Memorando de umas sombras»), últimos cantos, cantos do fim: porque são cantos de quem sabe ou busca as coisas últimas do mundo e da natureza, a escrita de cada coisa que nela está à espera do oficiante que lhes confere existência real.


Cada canto quer-se, assim, um «poema para o não-tempo», para uma dimensão que se evola da presença enigmática mas irrecusável das coisas: o bandolim em cima de uma mesa, sem o canto (órfico) que o anima, não sabe onde tem a alma. Como no Rilke das Elegias, atravessa as epístolas e os memorandos o impulso da nomeação (porque «aqui é o tempo do dizível»: Rilke), em dias feitos de «presenças sempre fortes e iguais» («melro, mulher e sombras»). São quadros vivos das criaturas sem voz, com um certo franciscanismo poético na humildade com que se celebra cada uma delas, para a elevar a um sentido que a transcende, de acordo com um princípio (ainda e sempre romântico) de «analogia universal». A esta luz, todo o poema é um poema da Natureza total, presente ainda no mar, que, no seu vai-vem eterno, permite «ouvir o som do início».


Três poemas

Canto das imagens

Ao princípio era só uma em cada olhar

após a grande divisão das águas

e mesmo, segundo disse Baudelaire, a imagem

até ao seu século do real múltiplo

era una, única e própria. Dementes

chamou este cantor aos fotogramas

que roubavam à alma a unicidade
e deram aos olhos frívolos as figuras

plurais, idênticas, dispersivas.

Era somente uma a imagem mística,

dos entes naturais aos transcendentes.

Só uma esta vermelha afelandra

embora as suas irmãs se lhe assemelhem
e desassemelhem, cada uma, sempre.

O concreto pulsava neste ritmo

das coisas parcas, poucas, singulares.

E de repente, nos olhos do poeta

cada coisa reproduziu a imagem

inumeradamente, e a ideia

decaíra no banal prolixo.

Antes, podia hesitar-se entre o modelo

e as sombras de Platão, agora as flores

malignas podem reproduzir-se no mundo

nítidas, iguais, supérfluas.

Eu ainda vejo o olhar antigo de Baudelaire

e cada coisa vibra no seu mito,
e cada imagem cria o seu espírito,

e cada cópia fotográfica muda

na liminarmente máxima diferença.

Ao crítico e amante da Pintura

as dúbias imagens decerto deram

a cada rosto um só outro rosto,

a cada paisagem uma só tela.
Já os vidros, a água, a prata traziam

a incerteza nos traços, como se os olhos
que nos deu a Natureza nos fossem

infiéis. E o poeta pôde resistir
a esta perda das formas consagradas

e consubstanciais das coisas que ainda

ecoam a Criação como o eco cósmico.


[30/10/93]
(Cantos do Canto. Relógio d'Água 1995)


Canto do Génesis


Ao princípio era a luz, depois o céu

azul porque a luz se embebe

nas camadas de ar que olhamos.

Ao princípio era a Paixão e engendrou

do seu sangue os animais, da sua

Cruz as plantas. Era, ao princípio,

o animal-vegetal minúsculo, oculto

no Paraíso, mas omnipresente

desde o ante-princípio. E da argila

ou terra adâmica formou-se a Natureza
e o Homem, banhados pela luz

que recortou linhas e volumes vagos.

Ao princípio era o martírio

e a bênção daquele que trabalha

o seu corpo e o seu pão de sol a sol.
E os frutos fulguraram nessa luz
quando as águas se apartaram

e o mar, até hoje, quebra e requebra a onda

para eu ouvir o som do início.


[30/11/93]

(Cantos do Canto. Relógio d'Água 1995)



Memorando de umas sombras

Termina o dia. O melro, a mulher e as sombas
repartem
entre si o que resta. Ela dança, a preparar a mesa,

como em redor de Vesta. O melro, a olhar o sol vago,

escolhe a folhagem para cumprir o destino.

Ociosas, as sombras perseguem gestos e as formas.


(Epístolas e Memorandos. Relógio d'Água 1996)