19 junho, 2007

O LIVRO NO BOLSO



Começou ontem, na «Sala de Leitura Jorge de Sena» do CCB, mais uma aventura do livro. Do livro em busca de caminhos de sobrevivência e de afirmação em tempos e numa constelação cultural já só «vocovisuais» (como diria Joyce, se cá voltasse), e em que o «verbo» definha a olhos vistos. O verbo pensante ou criador perdeu, aliás, definitivamente visibilidade e aceitação no espaço público da comunicação impressa: pura e simplesmente não temos jornais nem revistas em que o livro mereça a atenção que lhe é devida, em que o pensamento seja actuante.


A aventura que agora começa é a de uma colecção de livros de bolso lançada para um mercado que não tem tradição deste formato, e para as mãos de livreiros que, com raras excepções, não estão interessados em promover o livro, mas tão somente em retirar os seus dividendos da indústria do livro. São três os editores desta aventura, e intitulam-se, já no título da colecção «independentes» — de grupos económicos, do mainstream editorial, da literatura rasca, eufemistica e cosmopolitamente dita light. Testam o mercado com livros de qualidade a preços baixos (de 4 a 14 Euros, consoante o volume).


Os primeiros títulos, saídos dos catálogos de cada uma das editoras — Assírio & Alvim, Relógio d'Água e Cotovia —, espelham apenas em parte o perfil futuro deste «Biblioteca de Editores Independentes», que virá a incluir inéditos e autores contemporâneos: os livros ontem apresentados são clássicos, clássicos antigos e modernos, e cobrem as três grandes áreas da colecção: a ficção, a poesia e o ensaio. Alguns dos títulos escolhidos para o début são inquestionavelmente felizes, outros nem tanto (porquê Sá-Carneiro ou a Mensagem, em vez de um Pessoa múltiplo, na sua verdadeira dimensão?). Mas outros virão. Trinta até ao fim do ano, conforme foi anunciado.


Gosto de livros de meter no bolso e ler no autocarro ou no metro (mais ainda em aeroportos, onde o tempo muitas vezes é mais alargado). Desde os tempos de estudante que os conheço assim, perto do corpo. São aqueles de que(m) não conseguimos apartar-nos, que nos lembram que estão ali quando metemos a mão na algibeira. Mas o que eu gostava mesmo era de dar uma volta por algumas livrarias daqui a um ano (menos, se possível) e constatar que o livro de bolso ganhou direito a lugar cativo nelas, como acontece aqui ao lado, em Espanha, e por essa Europa fora. Era um sinal, um bom sinal, de que vamos sendo — devagar, muito devagar — também nós mais Europa. Por enquanto, vamos esperar para ver. Ninguém arrisca prognósticos confiantes neste domínio e neste país.


17 junho, 2007

FACES DA PEDRA-XISTO





1.

como uma pedra-canto das origens

me chegas projéctil amputado

sibilando no éter regressado

do fim dos tempos para te dares a ouvir

num presente que não te escuta

mostras no flanco a ferida o ADN
de uma raça extinta de aedos e profetas
que em ti alimentaram ilusões
e te ocultaram a cegueira
de tempos por vir



2.

como uma pedra-pássaro
de asas cortadas vences
em voo rasante e triste
o atrito da dor
na massa pesada do ar
no desbotado veneno em que a custo
se ouve ainda o teu lamento______

onde se viu antes um pássaro assim
pálido e lilás e desasado?



3.

como uma pedra-peixe te imagino
em fundos insondáveis
sobrevivente de milénios
prova provada de que o tempo se vence
com as manhas que o corpo aprende
no desprezo da sorte cujos fios
outros poderes tecem e destecem_______

mas é no corpo que se acende a eternidade



4.

como uma pedra-barco que navega
sem medo entre escolhos e baixios ___
porque navegar é preciso e o viver
sem quilha firme mais morte me parece ___
daqui te saúdo negro navio fantasma
sapato voador esporão-promessa
quebra-gelos dos mares da noite escura



5.

como uma pedra-arado feita luz
de relha em riste no sulco da semente
riscas a terra como quem escreve versos
casando linhas que foram separadas
pela desmemória da língua
e a tua ponta de lápis-ferro
volta a inscrever ano após dia
na carne da gleba e da escrita



6.

como uma pedra-arma cais a pique
rachas-me a mente nasce a clari
vidência incendeias-me a alma e
o corpo sabe______ abres-
-me as portas dos lugares da morte
onde outras armas vão extinguindo
todas as luzes _____ e a tua centelha
de Prometeu matéria-prima roubada
por ladrão a ladrão deixará cegos
todos os deuses das trevas e da guerra ______

até ver...

(As fotos originais são de Vina Santos. A pedra foi encontrada por mim, que também a trans-figurei nestas imagens).


16 junho, 2007

«UMA INQUIETA CERTEZA...» (6)

A NATUREZA E A PAISAGEM
A POESIA E A PINTURA


(Um tema impossível, com fotografia em fundo)



Paisagens da alma, imagens do corpo

Paisagens da alma: por exemplo em David Mourão-Ferreira, numa poesia da obsessão e da paixão, significa a sobredeterminação (ainda romântica) do sujeito sobre a natureza. Poderia também dizer-se: paisagens na alma, pensando agora no espelhamento das coisas do mundo, criando Stimmungen (estados de espírito: é isso que lhes confere «alma» e duração: «Cada coisa tem o seu fulgor,/a sua música./Na laranja madura canta o sol,/na neve o melro azul.../Só isso faz/com que durem ainda./Assim o coração»; e «a alma /aspira a ter do mundo o melhor dele», Eugénio de Andrade, O Sal da Língua). Neste caso — aquele que me parece, apesar de tudo, ter ainda mais a ver com uma poesia «da natureza» —, a Natureza (no sentido do ente, do ser ôntico, de cada coisa na sua manifestação fenomenal) está aí para ser vista (Eugénio: «Fazer do olhar o gume certo», Matéria Solar); ou também para ser lida (como em Fiama, no orfismo da sua última fase, que recupera o velho topos do livro como mundo, tratado por Hans Blumenberg em A Legibilidade do Mundo). Em qualquer dos casos, o processo é sempre o de uma metaforização (S. Kemal: as apropriações /interiorizações da natureza dão-se através da metáfora; nela, «natural forms articulate inner events»).


David

David Mourão-Ferreira, de cuja poesia se fala a seguir, diz também: «modelar em alma/o que era apenas corpo (...)»; e «o que era apenas alma volve-se agora corpo». Daqui parto, e a este poema — «Corpoema» — iremos dar. A poesia de David, aparentemente clássica e afirmativa, diz o precário — mas agora as coisas do mundo, os objectos luminosos, ou não tanto, convergem num único: a natureza é o corpo, e a sua experiência quase exclusiva é a de Eros, ou melhor, de um arco que vai de Eros a Tanatos, numa permanente oscilação entre «as ancas de Afrodite» e «os olhos das Parcas».


Ou: entre o Corpo e a Morte que o espera, mas que é — ouve-se aqui Espinosa! — a sua Eternidade, como no

Epigrama para uma terceira despedida

Eu vi a eternidade nos teus dedos!
Eu vi a eternidade, e amedrontou-me
saber, tão de repente, tais segredos.
— Eu não mereci, sequer, saber-te o nome.


Natureza é aqui também, ainda mais, um produto da cultura: os corpos da poesia de David são todos atravessados por pulsões culturais de vária ordem (que estão presentes até nas formas perfeitas e classicizantes; ou mais claramente em figuras como a daquela rapariga que se chamava Europa...), e por isso toda a natureza que eles possam representar mais não representa do que o estável desequilíbrio do Ser, expresso no conhecido Haikai de Os Quatro Cantos do Tempo: «Nós temos cinco sentidos:/São dois pares e meio de asas.// - Como quereis o equilíbrio?».


Este desequilíbrio — que é reflexo da própria instabilidade da natureza enquanto caos de paixões e forças incontroláveis — é dado através de um processo, metafórico por excelência também ele, ou dialéctico, que vive de uma tensão dual, de uma dialéctica de opostos que tem como horizonte ideal um terceiro plano, muitas vezes ausente do poema. Parece atravessar a poesia de David uma obsessão pelas terceiras realidades, ou, para usar uma figura mais exacta e cara a Derrida, uma «ausência significante» que se agiganta entre duas presenças que se retraem no encontro amoroso.


Na sequência «Contrapontos», por exemplo, onde encontramos um conjunto todo construído na base de uma dialéctica Amor-Morte, elementos naturais—oscilações da alma, e de uma alternância construtiva rigorosíssima, por vezes quiasmática, na relação inter-dísticos, ou entre os versos de um dístico (afirmatividade/negatividade, Natureza/«Alma»...), tendendo para a distância indefinida de um «silêncio sonâmbulo», outonal, a «margem taciturna», e mesmo a «náusea»...

Contrapontos

I. Nuvem

Vai desplumando a nuvem - ou as asas? -

a ave que no céu sonhou bebê-la.

Entanto, coração, entre as palavras,
procuras destilar uma certeza.

II. Os amantes nas dunas

Que confidências múrmuras cresciam,
em torno ao verde arbusto desse encontro!

Mas, na praia, gaivotas desenhavam,
com mil pegadas, a palavra Outono.

III. A margem taciturna

Longos rios, as tuas longas pernas;
e remorsos na margem taciturna.

Do teu corpo que tem a cor do mel.
a náusea há-de ficar - não a doçura!

IV. O silêncio

Dos corpos esgotados que silêncio
tão apaziguador se levantava!

(Tinha uma rosa triste nos cabelos,
uma sombra na túnica de luz...)

Para o fundo das almas caminhava,
devagar, o sonâmbulo silêncio.

(Que apertados anéis nos braços nus!)

Mas o silêncio vinha desprendê-los.


A trans-formação, o devir permanente das coisas e dos corpos, em que a morte se vem inserir de modo natural e insistente, será porventura uma das categorias-chave para entender a poesia de David. São múltiplos nesta obra os sinais — na escrita, no amor, no sexo, nos ciclos do tempo e da morte — dessa transformação de tudo em tudo, do corpo em nada, de texto em texto. Transformação que se evidencia também nos mais diversos níveis da tecitura interna do poema, em especial nas imagens e metáforas obsessivas do amor, do sexo e da melancolia.


E, talvez acima de tudo, naquele uso altamente original (e intrinsecamente ligado à presença da temática e dos motivos da relação Amor-Mors) dos mecanismos da rima. Rima imperfeita, muitas vezes, como imperfeitos são os meandros da relação amorosa, nas suas modulações de ambiguidade, do aproximativo, do inacabado e impreciso/imprevisível («Mas entre as espirais confusas quem sabia / se era de novo amor, se era só melodia?»). Também o verso hesita constantemente entre o enlace da rima e a suspensão indecisa da meia-rima, de uma promessa não totalmente realizada. Na rima e no seu uso criativo por David está presente algo de essencial na sua poética (na sua erotica?) como modo de aproximação ao outro, para com ele «coincidir». A rima é aqui, como dizia o Rilke dos últimos anos numa carta à pintora russa Merline Klossowska, «la grande déesse, la divinité des coincidences».


Não sendo à primeira vista uma poesia da natureza, a poesia de David Mourão-Ferreira é um das mais evidentes testemunhos poéticos da ambiguidade do corpo (entre natureza e cultura, physis e alma) e de uma sua metafísica, da sua plenitude e da sua transitoriedade. É uma dialéctica, muito particular, da ausência e da presença, da relação a três — corpo, alma e a morte suspensa, com a qual se convive «naturalmente». Exemplo acabado disso, desse equilíbrio instável da alternância e da sequência de alma/eternidade e corpo/morte, é

Corpoema

Das sílabas a espátula
começa pouco a pouco

a modelar-te em alma
o que era apenas corpo

De sílabas a estátua
De lâminas o sopro

O que era apenas alma
volve-se agora corpo


(continua)


14 junho, 2007

«UMA INQUIETA CERTEZA...» (5)
A NATUREZA E A PAISAGEM
A POESIA E A PINTURA

(Um tema impossível, com Miranda Justo e Pedro Calapez em fundo)



Egito Gonçalves: a circunstância da paisagem


Egito não é um poeta da natureza no sentido mais estrito do termo: foi sempre mais um poeta de circunstâncias e de lugares. Um dos seus livros mais emblemáticos desta circunstancialidade, a que me reporto aqui, é E no Entanto Move-se (1995), de onde retiro esta

Homenagem a Antonio Machado

Nesta manhã, as águas são ainda jovens
ao banharem Sória. Prata límpida, o Douro
aos versos de Machado me transporta
para buscar aqui o seu espírito, a visão
bucólica, os élitros do estio, o monótono
rodar dos alcatruzes que arrancam
da digerida lição de vida. A pobre terra
é um esplendor solar de verdes choupos,
de caminhos brancos onde o coração vibra
e se expande. Detenho-me na margem,
penso como o rio envelhece no seu curso,
na foz desaguará barrento e dramático
quando o inverno chegar. O seu destino
não é o mar de Collioure, mas o poeta
engrossou igualmente as suas águas, rasgou
o seu caminho, atravessou as sombras
e aqui me conduziu para encontrar referências
na luz forte de Sória, na música que abre
um espaço onde antigos versos vivem.
Um ninho de cegonha está deserto. Quando
o crepúsculo diluir as perspectivas
não estarei aqui. Mas desta luz, um dia,
falarei como um verso indelével que a brisa
modelou, uma janela aberta onde,
como um espelho, o poeta assoma
e o cantar do coração devolve ao viajante.

(21.1.91)


É um exemplo, entre outros, de uma poesia de viagem (wandering poetry, como lhe chamou Rosa Alice Branco) em que a circunstância é sempre um lugar do mundo (por vezes da natureza nesse mundo), com um corpo (quase sempre de mulher) em primeiro plano. Isto transforma o poema em espaço de um cruzamento: de um lugar que se impõe e funciona como o punctum da fotografia (como o descreve Roland Barthes), e ao mesmo tempo recebe uma sobrecarga afectiva que lhe é dada por quem (o) escreve: dá-se um «pacto entre o corpo e o mundo» (Rosa Alice Branco). O mundo nunca é descrito — embora se fale de «realismo» a propósito de Egito Gonçalves —, trata-se de uma troca, de um diálogo com lugares, condição necessária para que eles existam.


Por outro lado, estas paisagens — e trata-se sempre de paisagens, i.é de natureza culturalizada — são muitas vezes dadas através da sua imagem já literária (os campos de Sória através de Machado): Egito escreve e permite escrever (exemplarmente com este livro) uma história cultural da paisagem europeia, que se encontra com frequência na literatura de viagens (já desde os viajantes da Península nos séculos XVIII-XIX) e também na pintura de convenção, de «género», etc. Para reaparecer, surpreendentemente, também numa pintura de paisagens dos nossos dias como foi o projecto de José Miranda Justo durante alguns anos, com as exposições «Reflections on Landscape» (1994), «Paisagens com Nome» (1995) e «Paisagens por pintar» (1997). O título desta última é inspirado em Rilke, que sabe que «perdemos a Natureza», porque há um desconhecimento mútuo que cresce à medida que nós crescemos — e a arte é a via para tentar encontrar uma ligação com ela. Mas Rilke confunde Natureza e Paisagem, quando escreve (no livrinho sobre a colónia artística de Vorpswede) que a paisagem nos é estranha e que nos sentimos terrivelmente sós debaixo de uma árvore, ou que a natureza não sabe nada de nós... E depois escreve ainda, e é a isso que reage a exposição de Miranda Justo: «Há tanta coisa que não foi pintada, talvez tudo! E a paisagem está aí, intacta como no primeiro dia»! O problema é que... a paisagem nunca está aí «intacta», e muito menos «como no primeiro dia»!


Em Miranda Justo, pintor de paisagens totalmente culturalizadas (como se pode ver já pelos títulos que dá às obras) acontece um pouco o mesmo que em Egito: são paisagens de paisagens, feitas a partir da citação de outras, pictóricas ou literárias, e «a paisagem deixa de ser em absoluto o cenário de uma representação, para se tornar no território ficcionado de uma acção» (Manuela de Freitas a propósito de Miranda Justo, que, por sua vez, comenta: a paisagem não é um assunto ou tema, é um «funcionamento») — em Egito Gonçalves, cenário de um encontro.


Em «Homenagem a A. Machado» os lugares não existem, antes de um eu/tu que os vê/lê e os transforma em pré-textos que já se nos revelam à luz de outros textos. E a natureza é já uma natureza literarizada, que vem de um livro (Machado), se nos dá a ver num lugar — nunca inocentemente — e regressa a outro livro (Egito). O poeta Egito Gonçalves toma, no final do texto, o lugar do poeta Antonio Machado, pela «memória afectiva do lugar». E o seu texto cria uma ilusão de «realismo» através da força dos deícticos, recurso com o qual o poeta pretende mostrar que a vivência dos lugares não é meramente imaginativa, fantasiosa (mas não será?).


Assim, é a obra (a poesia) que «nos abre verdadeiramente os olhos» para um lugar (lembra Adorno), ao passo que a natureza (é) cega. Para um camponês, uma paisagem é sempre igual (será que ele a paisagem?) — melhor, nem é «paisagem», é apenas natureza bruta, ciclo repetido. Mas a planície da Toscana, ou a serra de Sintra, nunca mais se libertarão de um certo olhar cultural e literariamente marcado do poeta que as vê, e vendo-as, as re-interpreta. E olhar é então pôr em acção uma interioridade que «inaugura uma forma» (Rosa Alice Branco).
Para entender isto nem precisamos de recorrer a paisagens com séculos de peso literário: basta ler um segundo poema de Egito, que fala do «dia» de Verão.

O dia apareceu ornado com cavalos de sombra.
As pessoas queixam-se. O Verão escasso desanima-as:
as coisas estão feias. O sol
poderia ajudar a esquecer. Também eu
me sinto um pouco desamparado — escrevo o poema
para ver nele um vestido claro, um lírio
na duna, uma qualquer imagem que permita
receber a chuva como se estivesse a nascer a luz.


Aqui fica ainda mais claro como o poema é o lugar que faz (onde se faz) o mundo, e que esta é a sua finalidade. Habitando os lugares — da proximidade ou da distância — de uma forma inquieta (é esta «a qualidade levemente amarga desta poesia»), Egito Gonçalves não escreve propriamente sobre lugares e pessoas neles, mas trá-los à escrita, reactiva-os — para si próprio e para o leitor.

(continua)

Calapez, Abstract landscape (2003)

«UMA INQUIETA CERTEZA...» (4)
A NATUREZA E A PAISAGEM

A POESIA E A PINTURA


(Um tema impossível, com Ilda David' — Tábuas de pedra — e Turner em fundo)


Paisagens do mundo e da alma

Lembro alguma poesia focalizada no mundo, dado sob a forma das suas paisagens (imagens culturalizadas da natureza) e dos seus lugares (projecções ou manifestações da «alma» de um Eu que os habita). Em todos, a natureza é metonimicamente dada.
Em Torga, por exemplo, pela Terra (mais concretamente: terra da Ibéria, do Douro, da Galafura...). Aparentemente, também pelo Mar: mas o mar é o Outro da Terra, o espinho ibérico de Torga.
Em Sophia, pelo Mar, arquétipo do ser inteiro (Grécia/Mediterrâneo); ou símbolo civilizacional de um «projecto» (o Atlântico português, que não me interessa aqui, porque é civilização, não natureza: leia-se, de Sophia, Ilhas).
Em João Miguel Fernandes Jorge ou, melhor exemplo, Ruy Cinatti: pela Ilha (os Açores ou Timor). Aí, a natureza historiza-se, natureza, mito e cultura confundem-se, o Eu ausenta-se mais do que em Torga e Sophia, que são mais «órficos». Nem num nem no outro caso a ilha é lugar de idílio, nem tão pouco metáfora, como nos exemplos que Rui Coias vem comentando no seu blog.


Torga:

Não levo em conta a prosa (embora ela faça parte de um projecto global, mais «inteiro», de Torga na sua relação com Terra e Natureza). Mas associo à temática da Natureza um aspecto particular, que serve o tratamento desta matéria (Terra-Mar): a vertente do Iberismo, em que a terra da Ibéria é o centro de um «nacionalismo sem nação», todo só «coração, mito e chão» (é a Pátria no sentido ciceroniano: patria est ubicumque est bene).
De facto, nos Poemas Ibéricos a metonímia da terra (= chão) para a Ibéria (ou da Ibéria para a Terra?) é um leitmotiv proliferante, «palavra-semente», lugar e agente de uma «História Trágico-telúrica» (título de uma secção): na relação terra-Homem assume-se a estrutura do trágico; a terra é raiz/semente/chão «duro e ruim», mas de que não se descrê, é pólo de tensão trágica: em si mesma, e na permanente relação com o Mar. No poema «Ibéria» lê-se:

[...]
Terra-tumor-de-angústia de saber
Se o mar é fundo e ao fim deixa passar...
Uma antena da Europa a receber
A voz do longe que lhe quer falar...

Terra de pão e vinho
(A fome e a sede só virão depois,
Quando a espuma salgada for caminho
Onde um caminha desdobrado em dois).
[...]



São três as dimensões da terra em Torga:

Telúrica: a mais evidente:

A Terra

Como ondulada capa de miséria
A cobrir de negrura a cor das chagas,
Assim és tu, crosta de velhas fragas
Sobre o corpo da Ibéria.


Marítima: o mar é como que outra metáfora da terra, o seu prolongamento na Ibéria? Sim, mas não um prolongamento natural, antes sempre motivo de tensão, angústia, tragicidade: «Quando chegar a hora decisiva, / Procurem-me nas dunas, dividido / Entre o mar e a terra. / Marujo e cavador, tanto me quer a espuma / Como a folhagem.». A tensão Terra-Mar é dada nos poemas por uma relação positivo-negativo, e a terra sai dessa tensão com sinal de mais — o mar é, quando muito, uma esperança, a terra é uma certeza: «Marujo e cavador, terei o mar inteiro / Das esperanças humanas, / E a terra universal / Da redonda e alada perfeição.»

Espiritual: a dimensão do céu, esse sim, o verdadeiro prolongamento da terra. Mas as grandes figuras da terra (portuguesa e espanhola) são mais da terra que do céu, mesmo quando muito espiritualizadas (vd. «Santa Teresa» e as invocações à terra no começo de cada estrofe desse longo poema; e Viriato, que «namora o chão em vez do céu»).


Sophia:

Nesta poesia, Mar é arquétipo do ser inteiro, e metonímia de Natureza no seu mais amplo sentido. Há, é claro, outras figuras para Natureza, não tão presentes, e só naturais por contágio: casa, cal, campo. Por isso, é ao mar que se associa:

1- uma visão do mundo (e uma forma muito particular de religiosidade):
Surgem aqui as
grandes obsessões, os Leitmotive de Sophia, que a levam a escrever muitas vezes «o mesmo» poema, convergindo em algumas figuras dominantes: origens, início, o (Ser) inteiro/limpo, os elementos, e o poema como entidade mítica que é tudo isso («E os poemas serão o próprio ar»):

Como o rumor do mar dentro de um búzio
O divino sussurra no universo
Algo emerge: primordial projecto


2- uma poética (e um ideal de vida (cf. «Tolon»): e as duas coisas não se distinguem, nisto Sophia é como Hölderlin (ou Rilke, que conhece mais): Ser é ser poeticamente. A poética de Sophia (vd. «Arte Poética» I-V) é uma metafísica da arte/da poesia, uma religião e uma ética, revelando o seu sentido clássico, grego, apegado à crença numa Totalidade última: «A beleza não existe em si, mas é apenas o rosto, a forma, o sinal de uma verdade...».
O mundo da verdade poética (das coisas, do Ser) contrasta com o mundo comum lá fora, «onde a aliança foi quebrada», mundo não «religado», um habitat mas não um reino; e «o reino é o que buscamos nas praias do mar verde». No fundo, uma poética romântica (do poema como dádiva, epifania), não moderna (do poema como artefacto, construção mental). Há em Sophia ainda uma mitologia organicista, órfica: na importância atribuída à nomeação e na noção do poema como natureza, utopia e resto.


3- uma metafísica dos «deuses exilados» e do mundo às escuras, dos dias des-sacralizados. Resta a arte, numa postura, ainda, de romantismo puro.
O «exílio dos deuses» é tema dominante: exílio de uma utopia de vida inteira, primordial, como em Hölderlin, na sua imagem ideal da Grécia. Mas em Sophia não se encontra a figura do «Deus por vir» do poeta alemão, porque os dias foram quase irremediavalmente des-sacralizados — mas há a arte:

Projecto II
[...]
Porém restam
Do quebrado projecto de sua empresa em ruína
Canto e pranto clamor palavras harpas
Que de geração em geração ecoam
Em contínua memória de um projecto
Que sem cessar de novo tentaremos.
(O Nome das Coisas, 1977)


Este grande tema engloba muitos outros: a Hélade, a casa, a cal, a arte, o Mar. Tudo lugares de re-ligação com um sentido primeiro e último das coisas, lugares de um possível regresso a casa, num tempo de exílio da casa, do Ser e da linguagem como casa do Ser.
O Mar em Sophia é, desde sempre, um desses lugares do princípio, força maior da natureza, «limpo e liso», inteiro, lugar sagrado (o Mar como utopia). Mas há também a visão cultural/civilizacional do mar como estrada da civilização, senda da navegação e das descobertas (das «Ilhas»): ciclos inteiros, ou mesmo livros se ocupam desta outra vertente, num evidente paralelo com a Mensagem de Pessoa. As duas encontram-se talvez, mais tarde, num livro como O Búzio de Cós.

(continua)

12 junho, 2007




Memorando de umas sombras

Termina o dia. O melro, a mulher e as sombras repartem

entre si o que resta. Ela dança, a preparar a mesa,

como em redor de Vesta. O melro, a olhar o sol vago,

escolhe a folhagem para cumprir o destino.

Ociosas, as sombras perseguem gestos e as formas.


(Fiama, Epístolas e Memorandos, 1996)

10 junho, 2007



«UMA INQUIETA CERTEZA...» (3)

A NATUREZA E A PAISAGEM
A POESIA E A PINTURA

(Um tema impossível, com as variações da Montanha Sainte-Victoire, de Cézanne, em fundo)


Há que olhar ainda um pouco para os conceitos. «Natureza» é um desses que nem de longe é unívoco ou óbvio, e que entra permanentemente em contaminação — nomeadamente na poesia — com os de paisagem, corpo, alma, ou os pares interior-exterior, natura naturans-natura naturata.... É preciso clarificar ainda algumas distinções:

Natureza (ente fenomenal) versus Mundo (Ser, Empiria) ou
Natureza versus Paisagem.


Para o filósofo e sociólogo Georg Simmel (no ensaio «A filosofia da paisagem») a paisagem é um todo unitário, é um estádio intermédio a caminho da segunda natureza da obra. Na natureza manifesta-se «a conexão infinita das coisas, a permanente gestação e destruição de formas, a unidade do fluxo do acontecer que ganha expressão na continuidade da existência no tempo e no espaço».


É já esta, aliás, a concepção «materialista animada» dos pré-socráticos — os primeiros poetas da natureza. Tales de Mileto imagina uma natureza fervilhante e viva, o universo tem uma alma, o mundo está cheio de deuses. Já Anaximandro veicula uma imagem mais opaca e brumosa da natureza, sustentando a physis no Tó apeiron — o Indefinido —, princípio e elemento primeiro das coisas que existem, «espacialmente infinito«.


A paisagem, por seu lado, é delimitação, enquadramento: tem uma base nas coisas da natureza, mas exige um ser-para-si — óptico, estético, «atmosférico». Stimmungshaft lhe chama Simmel, e Cézanne traduziu pela mesma altura essas atmosferas em pintura, com as imensas variações, quase obsessivas, com que representa a Montagne Sainte-Victoire, mostrando com isso à evidência como a pintura, ou a poesia, não pretende ter valor epistemológico, mas tão somente hermenêutico: o seu ver não é o ver que conhece, mas o ver que, simplesmente, vê — o mesmo (?) objecto em momentos e a luzes diferentes.


A paisagem é uma parcela da natureza vista agora como unidade; o sentimento da paisagem é moderno, e de algum modo eurocêntrico, e a diferenciação Natureza—Paisagem é parte daquilo a que Simmel chama a «tragédia do espírito» no mundo moderno, porque se desfez o sentido totalizante primitivo, e ainda Antigo, na relação com a Natureza.


Quer isto dizer que na arte moderna, desde o Romantismo, não existe natureza, nem em termos de representação? Os Românticos propuseram um regresso a um sentimento totalizante da Natureza como força / energeia / Vontade / Alma (do mundo), talvez mais na filosofia do que na poesia e na arte; nesta, a natureza já é paisagem, i. é convenção (nos românticos, a do sublime) que enquadra/lê subjectivamente a natureza, para tornar belo o que era terrível.


De qualquer modo, paisagem é desde sempre um resultado da interferência de categorias estéticas na nossa interpretação da natureza, produto de uma história cultural da natureza, na pintura como na literatura de viagens ou na poesia, que, como também Adorno já vira, são o único lugar possível para o belo natural: «Nature's beauty became accessible in part because poets and painters made it clear through their work and made it plausible"; "Beauty in nature seems too nebulous; the decline in talk of beauty coincides with the emphasis on art" (Salim Kemal, Landscape, Natural Beauty and the Arts, 1993).


Dicotomias associadas (e que adiante se aplicarão a alguma poesia portuguesa):

Mundo exterior versus mundo interior:

O primeiro parece ser sempre mais paisagem, ou «lugar», espaço com rosto próprio; o segundo é aquele espaço de uma «natureza» que desloca o Eu para as coisas, qué muitas vezes é referido em termos de alma, corpo, e Ser, e sempre resultado de um processo de metaforização: as apropriações/interiorizações da natureza dão-se através da metáfora; nela, «formas naturais são sustentáculo de acontecimentos interiores» (Kemal).


Natura naturans versus natura naturata:

Na poesia contemporânea: presente nas tentativas de regresso à expressão de uma natureza viva (natureza naturante), que pode encontrar-se no recurso ao mundo natural ou ao corpo/amor/Eros, em alguma «poesia feliz», na revisitação que faz do epicurismo, do Zen e do Tao, até às mais frequentes transposições consequentes, para o centro da poesia, da natureza segunda: a da obra de arte enquanto objecto exterior (na ecfrase, em Graça Moura, Tamen, Echevarría, e já Jorge de Sena) ou a da obra construída do homem (as cidades: em Franco Alexandre ou Joaquim Magalhães), ou ainda a própria poesia como construção que se substitui à natureza (nos muitos poemas intitulados «Poética»/«Arte poética» em Nuno Júdice).

(continua)




Canto do Génesis

Ao princípio era a luz, depois o céu
azul porque a luz se embebe
nas camadas de ar que olhamos.
[...]
E da argila
ou terra adâmica formou-se a Natureza
e o Homem, banhados pela luz
que recortou linhas e volumes vagos.
[...]

(Fiama, Cantos do Canto, 1995)


[...]
E os poemas serão o próprio ar
— Canto do ser inteiro e reunido —

Tudo será tão próximo do mar

Como o primeiro dia conhecido.


(Sophia de Mello Breyner, Geografia, 1967)

09 junho, 2007






O branco branquíssimo do muro:

a beleza concreta, acidulada,

do rigoroso espírito do sul.

(Eugénio de Andrade, Pequeno Formato, 1997)