RILKE: SER E CANTO
Deve estar nas livrarias dentro de dias a nova versão das Elegias e dos Sonetos de Rilke por Vasco Graça Moura, acompanhada por este prefácio que escrevi para tentar iluminar mais uma vez esses dois esmagadores ciclos de poemas.
Vasco Graça Moura é um poeta que se assume, e tem todas as razões para isso, como autor das suas traduções de poesia. A capa e a página de rosto dos seus livros de versões de outros poetas (que por norma até nem se apresentam como «versões livres») mais não fazem do que extrair as devidas consequências de um parágrafo da Lei do Direito de Autor em que se diz que o tradutor é isso mesmo: um autor. Pela capa, o leitor sem preconceitos – sem o preconceito que inculca a ideia de que o original é sagrado e a tradução é subalterna, e portanto «inferior» – chega à conclusão de que Vasco Graça Moura escreveu mais um livro de poemas. E, de facto, assim é. Os Sonette an Orpheus e as Duineser Elegien que Rilke escreveu apagam-se – como se apaga, aliás, todo o original que dá lugar a uma tradução – para deixar brilhar esta sua nova encarnação. De facto, nestes casos o apagamento é total: os Sonette e as Elegien de Rilke nem lá estão, se a edição não for bilingue. Para Vasco Graça Moura, fazer edições bilingues de poesia traduzida seria provavelmente algo assim como imprimir, em livro «próprio», nas páginas pares anotações, imagens, fragmentos, experiências (a matéria mais ou menos informe de onde tudo nasce), e nas ímpares a versão final. Puro absurdo, dir-se-á. Mas que dizer, invertendo agora as posições relativas de autor e tradutor, de um poeta pós-moderno como o brasileiro Bruno Tolentino, que ironiza – muito seriamente – sobre esta questão, antepondo ao seu admirável livro de poemas As Horas de Katharina (1994, com claras remissões para o Stundenbuch/Livro de Horas de Rilke) uma nota que tenho de reproduzir na íntegra, e que diz: «Responsabilidades e correspondências: A suposta autora destas páginas, tivesse sido encarnada numa só pessoa física, teria nascido em Veneza, aos 11 de novembro de 1861, como Eliza-beth Katharina Maria von Herzogenbuch, e falecido aos 29 de outubro de 1927, no Convento das Carmelitas Descalças de Innsbruck, como Sóror Katharina da Anunciação e do Suor de Sangue. A não ser assim, poderia ser com certeza qualquer um desses inconfessos filhos bastardos que Deus ama e reclama. Como, por exemplo um que outro hypocrite lecteur ou no caso o inveterado autor, ou tradutor, deste Stundenbuch».
Rilke em 1906 Ainda há quem se escandalize com o óbvio, e com aquilo que é prática corrente desde há séculos, e até Herberto Helder (O Bebedor Nocturno, As Magias), Eugénio de Andrade (Trocar de Rosa) – ou Vasco Graça Moura. Tudo depende, naturalmente, da concepção que se tem do acto de escrita a que se chama tradução, da noção de matéria poética a que se dá forma e dos limites, sempre precários, entre criação e transformação. O século XVII viu já consolidar-se um novo género literário, precisamente o «género da tradução», de que um brilhante prosador francês como o scholar Nicolas d'Ablancourt foi o último representante (depois, a febre pré-romântica da «originalidade» abalou até aos alicerces o sólido edifício da imitação e convenção). Das suas traduções, que deliberadamente recusavam a carga erudita, a pesadez e uma certa pedanteria da tradução literal, se disse então (e a fórmula ficou) que eram belles infidèles, epíteto que muito o honrava. Nos finais desse mesmo século, em 1680, publica ainda John Dryden em Inglaterra um prefácio à sua tradução das Epístolas de Ovídio («Ovid and the Art of Translation»), prefácio que ficaria célebre pela proposta, aí apresentada, de uma tipologia tripartida da tradução de poesia: a meta-frase, para a tradução literal (rejeitada, porque «fidelidade a mais é pedanteria»); a imitação (conceito retomado no século XIX por muitos tradutores, também portugueses, e no seguinte pelo americano Robert Lowell) , vista como forma «libertina» e despudorada de o tradutor se mostrar, só aceitável em casos extremos de poetas «ingovernáveis» numa língua moderna, como Píndaro; e a para-frase, a estratégia preferida para a poesia, porque permite uma «conformidade ao génio do autor», mas «variando a roupagem» e «amplificando o sentido», e assim levando a uma forma de «tradução com amplitude».
Rilke na Rússia (1900-1901) A fórmula aplica-se bem ao Rilke de Vasco Graça Moura. O próprio tradutor-autor o explicita, numa nota sobre a génese, a motivação e os procesos da sua versão da integral dos Sonetos a Orfeu – a primeira em Portugal, já que Paulo Quintela, inexplicavelmente, não traduziu todos os sonetos do ciclo. Aí se diz que se procedeu «por aproximações» e se recorreu a uma estratégia de «infidelidades interactivas». Excelente formulação para designar aquilo que também entendo dever/poder ser a tradução do poema: uma orquestração de soluções próprias e uma rede funcional de traições, para que o resultado seja, como se costuma dizer e como convém nestes casos, um poema em português. É claro que no caso vertente a matriz estava aí, já configurada no original, e o barro respirava já, animado por um sopro inconfundível (e se há poesia à qual esta imagem se ajusta, ela é certamente a de Rilke, em especial a das Elegias). E mais: tanto os Sonetos como as Elegias deram já origem a uma razoável série de versões, em várias línguas, desde os anos trinta. Esta questão é essencial, porque traduzir Rilke hoje, quer se queira, quer não, é construir de novo sobre alicerces já existentes, que, podendo não servir sempre à nova traça, planta e volumetria, facilitam a construção – ou perpetuam erros e falsas leituras! Pelo menos porque as versões existentes são também formas de interpretação activa do edifício original, ou porque funcionam, à semelhança do dicionário de sinónimos ou de rimas, como um apoio para quem busca alternativas.
Rilke em Moscovo (por Leonid Pasternak) Mas é curioso constatar que, construindo Vasco Graça Moura o seu Rilke também «sobre» (o francês diria melhor aqui: d'après e après) os de Quintela ou de Maria Teresa Dias Furtado (e de tantos outros, incluindo David Mourão Ferreira, para a Primeira Elegia), quase não vemos nestas versões uma linha que repita as de traduções anteriores, nomeadamente as portuguesas. O que era de esperar, já que os processos construtivos, as preferências lexicais, a capatação dos efeitos rítmicos, são radicalmente diferentes, se não mesmo opostos. De qualquer modo, a «comparação» com as traduções anteriores em Portugal revela-se incontornável. Não para aplicar rótulos valorativos, mas para evidenciar propósitos e resultados muito diferentes. Ao fazer uma tradução de sentido, muito fiel à letra do original – o que, enquanto «tradução de serviço», é aceitável e útil –, Paulo Quintela tornou este grande poeta mais prosaico: por isso me parece que nas suas traduções se salva o Rilke do pathos religioso, neo-romântico, dos primeiros livros, ou o objectivismo classicizante de alguns dos Novos Poemas, mas se perde muito da sublimidade do Rilke tardio, o das Elegias e dos Sonetos. Este tipo de «perda» poderá ser melhor entendido como indesmentível desvantagem, se pensarmos que um dos grandes princípios da poética rilkiana desses últimos anos era o da redução mútua de Ser e Canto, a indissociabilidade de significação e linguagem.
Manuscrito da Primeira Elegia Ora acontece que a estratégia desta nova versão – apesar dos «terríveis problemas técnicos que a tradução do original coloca» ao tradutor d' Os Sonetos a Orfeu, e do «verdadeiro desafio» que é sempre o da passagem da densidade semântica, de formas de linguagem intrinsecamente germânicas e das implicações ontológicas das Elegias de Duíno para outra língua – é a de «salvar» também essa unidade na tradução. Vasco Graça Moura consegue-o como talvez ninguém o conseguiria hoje em Portugal. Em parte, porque está em condições de ler Rilke no original (e o faz há muito tempo). Mas acima de tudo porque segue um caminho – certamente de mais alto risco que o de Quintela ou Teresa Furtado – que é o de se libertar desse original (libertação indispensável na relação com uma língua hiper-estruturada, impositiva, como é o alemão), depois de ter interiorizado temas, Leitmotive, o sintáctico, as inflexões mínimas das vozes que falam (n)os ductusSonetos e (n)as Elegias. Depois, e tendo presente o princípio de que aqui a medida, a rima, a forma em geral, deixou de ser um formalismo para se tornar um imperativo ditado por uma necessidade interior, um impulso para a contenção ou a expansão (princípio que foi o do próprio Rilke, ao libertar-se da forma estática do soneto clássico, transformando assim os Sonette em poesia moderna, e da solenidade ainda antiga de paradigmas anteriores como as Elegias Romanas de Goethe, para criar um poema «filosófico» com poucos paralelos na poesia do seu tempo, talvez apenas no Eliot dos Quatro Quartetos e em algum Pessoa) – depois disso, o refazer de cada soneto como um todo com leis e ecos e ritmos próprios em português transforma cada um deles naquilo que noutro lugar já designei de «holofrase», i. é um discurso poético global e coerente em si mesmo; e a fluência prosódica das elegias, que se ouve em alemão como uma melopeia sublime que tanto atinge alturas metafísicas como desce aos vales das mais elementares experiências, ecoa em diferido no texto português. Estamos aqui num plano da (re)escrita em que os complexos problemas técnicos e expressivos se não colocam ao nível da palavra nem da expressão em si (nas Elegias ainda poderá ser esse o caso, mais do que nos Sonetos, mas o dicionário há muito que está arrumado, nunca são essas as unidades operatórias quando se traduz poesia). As soluções a encontrar situam-se, pelo menos, ao nível de toda uma estrofe, de uma sequência, e da sua inserção na globalidade de um ciclo, quase nunca são de ordem pontual, mas sempre globais e «interactivas», quando menos «pontuais alargadas» – a todo um bloco de sentido vazado numa forma própria (e em Rilke esses blocos são muitas vezes versos, ou conjuntos de versos, «de uma enorme e irradiante concentração semântica e expressiva», como reconheceu o próprio Graça Moura na primeira edição dos Sonetos).
Vera Ouckama-Knoop, a quem Rilke dedicou os Sonetos a Orfeu Em Os Sonetos a Orfeu são muitos os exemplos absolutamente conseguidos desse espantoso equilíbrio entre a linguagem própria de uma forma que, para lá de todas as variações, está em casa na língua portuguesa (os reenvios à nossa tradição são frequentes), e o mais devoto (mas não servil) respeito pelo universo rilkiano. Excrescências, amputações, quando as há, quase nunca são arbitrárias, mesmo quando se sente, por detrás do enorme virtuosismo verbal do poeta que maneja soberanamente a língua, o leve forçar de uma linha para conseguir uma rima, o contorcionismo da sintaxe, a perturbação criada por algumas ambiguidades, os maneirismos de estilo – mas aqui, e sem «trair» Rilke, o poeta Vasco Graça Moura reencontra a sua própria obra! Não há, porém, verdadeiramente desvio ou violentação de sentido do original: trata-se sempre, mesmo nos casos de liberdades mais ousadas, do desenvolvimento, da acentuação ou da variação de um determinado núcleo semântico que era já de Rilke.
Rilke no castelo de Muzot, 1923 É claro que há momentos em que um «rilkiano» atento sentirá a perda – sem compensações – de um ou outro elemento de sentido ou figura expressiva cuja manutenção seria importante (nisso, as versões de Paulo Quintela não transigem). Não sendo eu propriamente um rilkiano (ainda os haverá?), impuseram-se à minha atenção de leitor interessado algumas dessas perdas, que não importa agora escrutinar em pormenor. Destacaria apenas momentos fulcrais como o da figura rilkiana da «relação» (visível/invisível, real/mais real) e da dialéctica dual que atravessa estes ciclos e os seus «dois reinos»; ou os muitos conceitos-chave construídos em Rilke sobre a dupla valência do verbo sein (ser/estar), com implicações hermenêuticas (filosóficas) e consequentes escolhas vocabulares que se podem facilmente perder quando a tradução é excessivamente interpretativa ou obscurecedora de uma relação mais clara expressa no original. Mas isto são as contingências de qualquer passagem.
Sobre as Elegias de Duíno, o que hoje ainda podemos dizer, depois de décadas de exegese por vezes mais filosófica do que literária, será provavelmente melhor dito através do palimpsesto da tradução. Prova terrível, mas, como o próprio anjo, incontornável e necessária para quem quiser aceder, sem mediação, ao Outro. Entre Paulo Quintela (1969), Teresa Furtado (1993) e a nova versão que agora surge abre-se o mar de escolhos deste texto maior da reflexão poética sobre o Ser no nosso século.
Castelo de Duíno Os comentários que se limitam a situar a grande síntese de pensamento e linguagem poética proposta nas Elegias contra o pano de fundo externo das relações de Rilke com princesas e castelos, de alguns textos epistolares auto-explicativos (como a célebre carta ao tradutor polaco Hulewicz sobre as Elegias), ou as tentativas, nem sempre convincentes, de recuperação do poeta para o espaço de uma positividade (cristã) ou de uma tradição poética nacional – tudo isso muito pouco contribui para a penetração e revelação da verdadeira dimensão poética das Elegias de Duíno. A força e a importância dos testemunhos externos ou dos lugares terá de ser sempre menor do que a própria matéria dos grandes textos com que nos confrontamos e que, ainda e sempre, nos inquietam, nos envolvem e nos dividem.
Alguns dos maiores intérpretes (intérpretes, e não «especialistas») de Rilke e das Elegias – Heidegger e Blanchot, Paul de Man e Jacob Steiner –, partindo obviamente daquele pressuposto poetológico e existencial, órfico e totalizante, do Rilke tardio, que funde o Ser com o Canto (Gesang ist Dasein), acentuaram, como se disse, a indissociabilidade de significação e linguagem nas Elegias, em vez de, como escreve Paul de Man em Allegories of Reading, sacrificarem a dimensão poética (que não é aqui mera forma) ao impacto filosófico dos temas. Há, na verdade, em Rilke uma crença («cega», segundo Heidegger) na linguagem e nas suas qualidades de instrumento adequado da «transformação» existencial exigida pelo poeta, que a torna uma categoria constitutiva do sentido nas Elegias de Duíno (num sentido muito diferente, menos «moderno», do de contemporâneos em permanente tensão com a palavra, sem apaziguamento possível, como foi o caso de Georg Trakl). A linguagem é o momento de verdade que permite que o exorcismo da alienação ontológica praticado por Rilke se abra para uma possibilidade de «salvação» (com um cariz de religiosidade estetizante) aqui e agora: porque «estar aqui é muito», porque «estamos aqui para dizer...», porque «aqui é o tempo do dizível» (Nona Elegia).
Duíno visto do mar, à noite Extraio destes pressupostos uma conclusão: esgotados os caminhos da exegese crítica, resta-nos sempre a via da reconstituição activa desse saber de linguagem feito. Essa via é a da tradução, que no caso das Elegias de Duíno repetidamente tem (re)actualizado este texto já mítico, assumindo um lugar central na globalidade do trabalho hermenêutico que sobre ele se vem realizando. Quero com isto dizer que, se é verdade que os abismos do Ser e a esperança do habitar com a linguagem este «mundo explicado» (Graça Moura diz «interpretado»), que nas Elegias se nos abrem, nos remetem hoje para a nossa condição de humildes devedores de uma tradição de exaustiva leitura filosófica, já a necessidade de redizer noutras línguas textos como este nos pode legitimamente desafiar a novas aproximações. A tradução de uma matéria verbal densa e animada do sopro da necessidade e do génio, como são As Elegias de Duíno, é certamente o mais implacável, porque pode também ser o mais falível, dos desafios hermenêuticos. Mas o que há a dizer sobre este texto poderá ser dito no palimpsesto da tradução, se rigorosa e poeticamente eficaz. O confronto aqui é corpo a corpo, numa fantasque escrime (Baudelaire) em que certamente tropeçaremos muitas vezes, mas em que cada palavra, cada conceito, cada cotovelo da sintaxe, tem de se ir configurando materialmente no outro texto, inexorável espelho apontado ao primeiro, de modo a que nenhum ângulo fique ausente. É uma prova terrível, mas, como o próprio anjo, incontornável e necessária para quem quer aceder, sem mediação, ao Outro, para fazer ecoar a pregnância da linguagem e a especificidade inconfundível da conceptualidade que estrutura a isotopia ontológica e existencial das Elegias de Duíno, que não dão ao tradutor margem para devaneios ou inconsequências. Vasco Graça Moura sabe disso, e põe uma vez mais esse saber à prova com estas suas versões da mais exigente poesia de Rilke. Na sua tradução respira-se, em geral, aquele sopro sublime da linguagem de um Eu possuído do élan do Invisível, ou reconhecem-se os contornos precisos da forma linguística desse impulso, manifestação da sua própria materialidade ontológica.
O que o leitor dos Sonetos a Orfeu e das Elegias de Duíno de Vasco Graça Moura reterá, para além do pormenor, é um conjunto notável que veste estes dois ciclos de Rilke como uma segunda pele. A pele visível, e a mais actual, de Rilke em Português. O princípio orientador que o poeta Graça Moura parece seguir nesta sua nova aventura pelo «espaço interior do mundo» da grande poesia de Rilke poderia ser o que o próprio autor dos Cadernos de Malte nos dá, pela boca do seu narrador: Er war ein Dichter und hasste das Ungefähre – à letra: «Era um poeta e detestava a imprecisão».