22 abril, 2008

RESTOS QUE NÃO CABEM NAS TVs ....

O que ficou por dizer, entre tantos outros ditos, não-ditos e entreditos, numa Câmara Clara de Março em que participei e se falou de sombras e obscuridade, de poesia e tradução e de Maria Gabriela Llansol...


POESIA E TV


“É muito difícil falar de poesia em TV”?

O poema, como já desenvolvi aqui, é sempre uma hipótese sobre a «geografia imaterial por vir»! Por isso interessa tão pouco a um tempo que vive ingenuamente de certezas e cegamente do presente! E na televisão, mais do que em qualquer outro lugar, vive-se das pretensas certezas dos factos e da «actualidade».
Mas não vejo por que razão a poesia não pode ter aí lugar! O discurso da poesia é concentrado e vivo (é isto o que nos pedem quando falamos na televisão)! Problemático seria fazer passar o romance ou o ensaio (ao vivo) na TV! A poesia é o género por excelência do envolvimento mais imediato. Pode, sem dúvida, ler-se poesia na TV - como fez David Mourão-Ferreira, com comentários q.b. e muita leitura, desde Homero, no programa Imagens da Poesia Europeia. Ou como me lembro de ver em tempos na RAI UNO: Marcello Mastroiani, sozinho atrás de uma estante de leitura, a ler durante meia hora a Divina Comédia (pensei no mesmo cá, com Luís Miguel Cintra e Camões): era o corpo vivo da palavra na boca de um grande actor – que mais se pode desejar em TV?

E mais: a poesia não é necessariamente «delicada», como foi sugerido, remetendo para uma ideia há muito ultrapassada de poesia. Hoje não o é com certeza: veja-se a poesia de Manuel de Freitas, veja-se a ironia cortante de Pedro Tamen, toda a «poesia da experiência» das últimas décadas, ou a densidade reflexiva dos poemas de Manuel Gusmão…
É claro que pode haver experiências mais ou menos felizes com a poesia em televisão. Um exemplo feliz foi o de David e as Imagens..., entre 1969 e 1974. Exemplo menos feliz? O programa de Joaquim Manuel Magalhães em que se falava de poesia, com um título já de si não muito feliz («Os homens [os homens? só os homens?], os livros e as coisas»), e que durou pouco (1968-70 e 1975-76). A poesia não aparecia ao vivo neste programa! E só se ganham leitores para a poesia lendo poesia – na TV ou na a aula, onde cada poema, depois de «descascado» das suas camadas de sentido e dos seus múltiplos efeitos de linguagem, pode iluminar o espírito de estudantes renitentes. Conheço a experiência!


LLANSOL #1

A obscuridade em que está imersa a obra de LLansol foi cultivada ou foi uma fatalidade para a autora?

Dois comentários: a obra de Llansol não está imersa em obscuridade, nem a cultiva. Esta escritora sempre esteve presente, e escreve para que nasça a luz! E ela nasce em cada página que se lê. É assim que se deve ler Llansol: página a página, uma página por dia. Cada página vale por um livro nesta escrita da intensidade e do fulgor, e não da extensão e das histórias sequenciais e sabidas.

Llansol, vista por vezes como autora de culto?

Não o era nem queria ser: apenas pede que se reaprenda a ler.
E não há fatalidade na vida-obra desta escritora: tudo nela nasceu do poder de decisão próprio, de uma escolha da via do isolamento e da «despossessão» (que criou uma comunidade na diáspora, a única possível para ela, que não se confunde com nenhuma espécie de seita nem partido, e que hoje é grande, apesar de não parecer). E isto inclui a despossessão da própria noção de «autor», que Llansol rejeitava, porque nela não há nem posse, nem autoridade.
Por isso, toda a Obra coloca uma exigência única e dupla: reaprender uma estética (do fulgor da palavra e da língua sem impostura) e aceitar uma ética (não de grupos, não social, mas a da liberdade de consciência, a dos «pobres da História» na «geografia de rebeldes» da Europa que os seus livros percorrem desde a Idade Média, a dos inteiros e intensos): é esta a etistética ou a sensualética de Llansol.

Desenho inédito de M. G. Llansol

LLANSOL #2

Porque devemos tentar conhecê-la?

1) Para perceber que a dimensão «gregária» (social), ou a psicológica, que dominam hoje as nossas vidas, nem sempre são as mais importantes, e que a «literatura» (que identificamos quase sempre com o romance realista e social) não existe, ou não tem lugar hoje, se for máquina de produzir narrativas sempre iguais e derrames psicológicos esgotados.
2) Para perceber que nós, humanos, não somos o centro de uma cadeia hierárquica, mas um elo na «grande cadeia do Ser» (já Shakespeare ou Dante têm de ser lidos a esta luz). E que temos a enorme responsabilidade de assumir um contrato com o Vivo (que vem de Espinosa e deveria ir dar hoje ao protocolo de Kyoto e às políticas do ambiente!). Isto é actualíssimo, num momento em que o planeta está claramente ameaçado! E actualíssima é também a pergunta, daí derivada: o que é o humano? (depois do fim de todos os humanismos), pergunta central em Llansol. Quem chega a encontrar a resposta, lendo-a e insistindo na leitura, muda de vida.
3) Para perceber que o mundo não é o que ingenuamente julgamos que ele é, mas existe sempre «em dobra»; que ele é o «desconhecido que nos acompanha» e produz o novo que transforma; que há o visível e o invisível, e que este não é metafísica, mas resulta de olhar o concreto e sentir a potência de um corpo: estamos perante um hiper-realismo da matéria, do carbono, da energia vital de onde tudo nasce! É este o combustível da linguagem de Llansol, são estes os temas dos seus livros, e não as estafadas histórias das vidinhas pessoais ou colectivas.
4) Finalmente, e de um ponto de vista mais exterior: porque é uma escritora que escreveu, só escreveu, escreveu sempre intensamente, como muito poucos: «escrever é o duplo de viver» (e vice-versa: a escrita é uma pulsão vital). Isso está hoje patente no imenso espólio que deixou, manancial para muitos mais livros por vir…


Desenhos inéditos de M. G. Llansol


LLANSOL #3

O mercado, a crítica, os públicos... O que é necessário investir para jogar bem o jogo da visibilidade… («os prémios são uma maneira de me anular tornando-me seus», diz António Lobo Antunes)

Todas estas instâncias são (ou parecem ser) incontornáveis, desde que a arte saiu da protecção do mecenato (o do ancien régime!) e teve de ir em busca do pão para a boca! E no entanto, há aqueles que sabem esperar (Musil com O Homem sem Qualidades, Kafka ou Pessoa, que pouco editaram em vida, Llansol, que esperou anos para editar o primeiro volume da primeira trilogia, Gonçalo M. Tavares, que escreveu para a gaveta durante dez anos...), ou que se retiram das luzes da ribalta, que assumem deliberadamente o «risco» da invisibilidade, mas emitem uma luz mais forte – que, afinal, acaba por torná-los mais visíveis no meio de tanta luz parda e igual. Porque o mistério desperta a curiosidade, o enigma é intrigante, a distância gera aura! É o caso de autores como Llansol (ou Herberto, ou Blanchot) e tantos outros «perdedores assumidos» (born loosers) da criação artística.
Ainda Llansol e a sua «obscuridade»: afinal, ela sempre foi editada (por vários editores); teve, em geral, o que se chama uma «boa crítica» (os nomes dos críticos que reconheceram o valor da obra é de peso: Isabel da Nóbrega, Maria Lúcia Lepecki, Eduardo Prado Coelho, Manuel Gusmão, Silvina Rodrigues Lopes, António Guerreiro, Pedro Eiras…); recebeu muitos prémios, que não a anularam, mas que simplesmente lhe permitiram continuar a escrever, a escreviver, por mais algum tempo!


Desenhos inéditos de M. G. Llansol


TRADUZIR #1

Tradutores: autores invisíveis?

Os tradutores ficam na sombra? Hoje nem tanto. São eles quem, com toda a justiça, e no caso dos autores que merecem a «glória», estão na primeira linha, porque são eles realmente que são lidos: toda a gente sabe hoje que o Proust português é de Pedro Tamen! Ou seja: sem Tamen, não há Proust português (nem Proust tout court, para quem não leia francês)! Vasco Graça Moura não distingue obra própria de traduzida, Tamen também não; eu faço alguma distinção, por pudor de não-escritor que sou!
A «invisibilidade» do tradutor vem da tradição anglo-saxónica (nada germânica, aquela que hoje mais me guia): nem sempre dá os melhores resultados, implica que o tradutor seja grande autor… Exemplo acabado disto entre nós são os Seminários Colectivos de Tradução de Poesia Viva, iniciados iniciados por Pedro Tamen na Casa de Mateus há dezoito anos. Participei em vários, e sei que o que se pretendia era que dali saíssem poemas acabados, e todos nós, que não existíamos individualmente, nos apagávamos neles! Daí também a recusa de edições bilingues…
Hoje, não vou por aí (aliás, nunca fui muito): quero deixar as marcas da tradução (do outro que trago á casa da minha língua, em especial na poesia) bem à vista. O exemplo maior disto será, espero (se o conseguir), a tradução da poesia toda de Hölderlin: sem concessões, estranha, com todos os cotovelos da sintaxe e do sentido à mostra! Este sim, é o caminho do tradutor que quer ficar na sombra, deixando transparecer a fisionomia do outro!

Babel (França, séc. XIII)

TRADUZIR #2

Os tradutores e a tradução: opiniões e pontos de vista...

São imensos, desde as metáforas agrícolas ou guerreiras de S. Jerónimo para a tradução. Para Tamen, é sempre um jogo de gato e rato, o burro atrás da cenoura com que lhe acenam (ou, diria eu, como o burro de Buridan na história antiga, tantas vezes indeciso entre dois fardos de palha!). Ou uma gaguez da linguagem. Todos os poetas são gagos, disse um dia Pedro Tamen. Todos tropeçam nas palavras, lemos em Baudelaire. Para Goethe, os tradutores eram «zelosos alcoviteiros que nos querem aliciar com o louvor que fazem de uma beldade meio velada: e despertam em nós uma irresistível apetência pelo original» – se isto acontecesse sempre, seria bom sinal.

Escola de Toledo

TRADUZIR #3

As dificuldades singulares da tradução de poesia...

A tradução de poesia e a sua dificuldade é um mito! Para mim, foi sempre um prazer e um desafio (alguns bem grandes: Fausto, Celan). E é mais fácil traduzir sonetos barrocos do que Musil – mas menos aliciante, porque mais mecânico! Os meus desafios foram muitos, e na poesia as escolhas praticamente sempre de minha iniciativa. As minhas reacções ao universo da poesia moderna e contemporânea, que traduzi muito, têm sido as mais diversas. Um dia, numa aula que me pediram para fazer sobre o tema, fiz uma escala das minhas aventuras com os poemas/poetas que traduzi, e que resumi em seis tipos de relação que dizem tudo sobre as motivações que me levaram a escolher este ou aquele, e também sobre os resultados:
1) os amores à primeira vista (poetas expressionistas; Cassandra, de Christa Wolf, Agamben, Benjamin);
2) a combustão em lume brando (Celan, Bobrowski, Bachmann);
3) os fogos de palha (virtuosísticos) (Ulla Hahn, poesia barroca);
4) as grandes pedradas (o verbo faz-se carne!) (Trakl, Hölderlin);
5) os de pedra e cal, sólidos, grandes monumentos (Goethe, Musil);
6) os amores contratuais (essencialmente as traduções para o teatro)…



TRADUZIR #4

As encruzilhadas do tradutor?

São as das camadas de sentido, das valências múltiplas da palavra, das «naturezas» diferentes das línguas (mas todas as europeias têm raízes comuns, e as formas poéticas são as mesmas). Por vezes são as palavrinhas mais insignificantes e aparentemente inofensivas que nos deixam na encruzilhada. Dois exemplos: o começo de Cassandra, de Christa Wolf (e a primeira frase de um romance é decisiva, há estudos longos sobre isso): Hier war es. Da stand sie. [Foi aqui. Ela estava ali.] O «refrão» de um poema de Celan, Mandorla: Da steht er und steht [Aí está e está]. Várias versões para frases tão elementares, muitas vezes um regresso à primeira, e uma sensação de insatisfação final!
Outras vezes, na encruzilhada das línguas, resolvemos os problemas recorrendo ao que é próprio da nossa: com «correspondências dinâmicas», como no exemplo do poema (de amor, irónico e sardónico) de Ulla Hahn em que aparece o título de Goethe «Boas-vindas e despedida», que nada diz ao leitor português! Solução: um verso de Camões que diz tudo a muito leitor português: «aquela triste e leda madrugada»!
E depois há os «invisíveis dos textos»: traduz-se também o que não está lá, mas respira neles. Existe um ar próprio de cada texto em que as palavras respiram. E há que fazer passar esse sopro...

18 abril, 2008


O HOMEM SEM QUALIDADES



Sairam os dois primeiros volumes do grande romance de Robert Musil O Homem sem Qualidades (D. Quixote, 843 + 451 pp.). Deixo aqui os primeiros parágrafos do prefácio que escrevi para esta nova edição, que prosseguirá ainda com mais um volume que inclui o espólio deixado inédito por Musil.


No próximo dia 28, às 18,30, os actores Diogo Dória e Sara Ribeiro lerão uma montagem de excertos do romance no Goethe-Institut / Instituto Alemão.

Um não-romance genial...

Esta é sem dúvida uma obra singular. E única no panorama da ficção do século XX. Mais do que um romance, O Homem sem Qualidades é o maior projecto romanesco, deliberada e quase necessariamente inconcluso e inconclusivo, da literatura do século passado. Um rio sem limites nem margens, que não desagua em nenhum mar conhecido, objecto inclassificável, para lá do «literário» e da ficção – o que poderá explicar, mas não legitimar, o total silenciamento deste exemplo maior da literatura por vir em O Cânone Ocidental, de Harold Bloom, cujo objectivo parece ter sido o de cristalizar, sob a égide sacrossanta de Shakespeare, os seus clássicos, já canonizados, do eurocentrismo literário. No momento da morte inesperada de Musil em 15 de Abril de 1942, no exílio de Genebra, O Homem sem Qualidades é verdadeiramente o «livro por vir», aquele cuja essência – no seu protagonista acentrado, no processo da sua génese, no cerne do seu pensamento – é a de uma dialéctica do retardamento e de um laboratório de possibilidades que o transformarão na obra aberta por excelência e na «tarefa criadora [mais] desmedida» (M. Blanchot, em O Livro por Vir) da história da literatura moderna. O Homem sem Qualidades será, durante mais de duas décadas, a obra em processo de criação e transformação que se autonomiza e se impõe de forma obsessiva e implacável ao próprio criador, aprendiz de feiticeiro que a controla cada vez menos à medida que ela se vai transformando numa rede rizomática de possibilidades de crescimento e de perspectivas de finalização sempre adiada, que parece querer reflectir o próprio feixe aleatório de possibilidades que é aquilo a que chamamos «realidade». Se a ironia é neste livro, como diz Blanchot, «um dom poético e um princípio de método» que modula, não apenas a palavra mas também a própria composição romanesca, na oposição contrapontística permanente e irresolvida entre «a exactidão e a alma», a reflexão e os sentimentos, o indivíduo e o seu mundo, essa mesma ironia haveria de determinar todo o acidentado e contraditório processo de génese e de publicação deste objecto literário esquivo que, contrariamente ao que frequentemente se tem dito, será mais um não-romance do que um anti-romance. (...)