21 novembro, 2013

A UTOPIA DO HUMANO, 
OU «A MAGNIFICAÇÃO DO FEMININO»

Passou há dias no Festival de Cinema Lisboa-Estoril, depois de ter estado antes num cinema de Lisboa, a magnífica versão cinematográfica do Fausto por Aleksandr Sokurov. Aquando da estreia em Lisboa, falei do filme com Maria Filomena Molder, no cinema Nimas, e apresentei-o depois em Sintra, na «Letra E» do Espaço Llansol, salientando as ligações deste filme com o universo da escritora Maria Gabriela Llansol. Dessa sessão resultou um «Caderno da Letra E» a que os leitores deste blogue provavelmente não terão tido acesso, e por isso transcrevo aqui a minha introdução a essa publicação.




... o segredo da Busca é que não se acha.  
Fernando Pessoa, Primeiro Fausto (Fragmento X) 

À primeira vista, poderá parecer estranha a busca de relações entre um assunto clássico da esfera do mito, como é o de Fausto, e um universo tão centrado na imanência do quotidiano ou em sentidos outros para a História, como é o da Obra de Maria Gabriela Llansol. Mas não foi tanto a busca de ligações, que poderão parecer remotas, entre o universo Llansol e a matéria de Fausto o que nos levou a aproximar os dois. Foi antes o filme, recentemente exibido numa sala de Lisboa, do russo Aleksandr Sokurov, feito a partir da obra clássica de Goethe (e que iremos mostrar e comentar na «Letra E» do Espaço Llansol). O que Sokurov faz ao apropriar-se do texto de Goethe tem, isso sim, muitas afinidades com aspectos determinantes do projecto llansoliano de revolução da estética narrativa e de revisitação da problemática do Humano. O filme de Sokurov é uma adaptação muito livre do grande clássico da literatura, mas ao mesmo tempo muito próxima de alguns núcleos da história tal como ela é tratada por Goethe, em especial na primeira parte da sua «tragédia» – a do «pequeno mundo» preenchido pela matéria amorosa centrada na figura de Margarida, esplendorosamente tratada pelo cineasta; a reconstituição dos ambientes medievais de onde emana o mito; as ambiguidades e subtilezas, mas também o grotesco e a impotência da figura de Mefistófeles; a exploração do substrato utópico que subjaz a toda a acção, consubstanciado nos dois filões maiores do mito de Fausto desde as origens no século XVI: o desejo (e o tabu) do conhecimento e a entrega ao princípio do prazer. 

 Pintura de Ilda David'

Ora, aquilo que interessou a Sokurov (e que ele de facto vai buscar a Goethe, mais do que às origens medievais do mito) é o sentido universal desta matéria: subsumir numa figura e na sua eterna nostalgia, e de uma forma mais crua e menos filosófica do que em Goethe, toda a problemática da «humana geração». É este também o projecto do humano fora da trama dos poderes, que sustenta grande parte da Obra de Llansol desde O Livro das Comunidades. Noutro lugar defini já esse projecto como «uma bio-cracia, qualquer coisa como uma aisthesis universalis sob o signo, não do tempo da história e das suas figuras (porque 'chegou o momento de sair da História e ir viver no mundo de seiscentos milhões e anos'), mas do 'Há' e de uma 'restante vida' transposta para o plano total, cósmico, do Ser». 


O filme de Sokurov dá esta perspectiva, quer na insuportável beleza, transfigurada pela anamorfose e pela luz, do rosto de Margarida, quer finalmente na grande cena da montanha, com os seus ecos de busca infinita e de impossível realização (ao «Para onde?» do eco da voz de Margarida responde aí Fausto com o seu: «Para mais longe»). No filme do russo, o excesso da matéria pura, das sensações, da brutalidade da vida, transforma-se, em momentos chave, na matéria etérea, mas ainda e sempre humana, da paixão. Em Goethe, a questão tem dois momentos. O primeiro, da aspiração sem limites, depois de selado o pacto com o Diabo (que no filme não se chama Mefistófeles, mas Maurício, e é um agiota): 
 
 Pintura de Ilda David'
 
A minh'alma, curada a sede de saber,  
Abrir-se-á agora a toda a provação,
E no mais íntimo de mim quero viver
O destino de toda a humana geração;
Em espírito abarcar alturas, profundezas,
Encher o peito de alegrias, tristezas,
E assim meu ser ao seu Ser alargar,
Para no fim, como ela, soçobrar.

Depois, na fala final, antes da morte, o da utopia visionada de um mundo mais humano:

Esta é a ideia que havemos de aceitar,

Esta é do sábio a suprema verdade:
Só quem dia após dia a conquistar
Merece a vida e a sua liberdade.
E assim passam, em perigos sobre-humanos,
Crianças, homens, velhos, duros anos.
Visse eu esse bulício efervescente,
P'ra solo livre pisar com livre gente!
A um momento tal então diria:
Suspende-te, tu que és tão belo!
O rasto dos trabalhos e dos dias,
Nem eternidades podem apagá-lo. —
No antegozo de tão feliz evento
Desfruto agora do supremo momento. 


Se olharmos agora, por um lado para a ideia, por outro para o plano estético do filme de Sokurov, tornar-se-ão evidentes alguns paralelos com M. G. Llansol, o seu mundo e os processos inovadores da sua escrita. Do mesmo modo que Llansol dirá que se situa fora da «literatura», igualmente se poderia afirmar que Sokurov está fora das formas dominantes do «cinema»: Llansol afirma uma textualidade contra a narratividade reinante, e para isso a sua escrita terá de recorrer sobretudo às potencialidades sensíveis e imagéticas da linguagem; por seu lado, Sokurov transformará os seus planos cinematográficos em «telas» de uma beleza quase irreal, através do recurso à anamorfose e à transfiguração (Fausto e Margarida – esta, apesar do seu recorte mais singelo e não complexo – são mutantes, a sua verdadeira natureza é a da metamorfose contínua); não podendo filmar, como diz, a matéria filosófica abstracta do Fausto, é levado a encenar teatralmente, a pintar cenas em movimento. Entre o cinema ascético de filmes anteriores, como Mãe e Filho ou Pai e Filho, e o ornamental, de A Arca Russa, o Fausto de Sokurov explora em cambiantes várias uma estética da composição visual e da sensualidade plástica, sem naturalismos, mas com todos os sentidos (até os cheiros, e com o «brumor» da música em pano de fumo) a emanar da tela, num casamento em que o classicismo dos meios não rejeita as mais sofisticadas tecnologias para obter estes resultados. 

No plano das ideias, os paralelos são vários, e poderiam resumir-se em alguns tópicos mais evidentes:
– a exploração de um reverso da «luz comum» llansoliana (a que ela chama também o «senso normativo» das existências mais ou menos apagadas: Os Cantores de Leitura, 222), estando esta luz sempre presente, em aspectos diversos do quotidiano que, quer o filme, quer os textos de Llansol trazem a primeiro plano;

– a inserção frequente de cenas fulgor no turbilhão do acontecer, epifanias de beleza, aparições da pura matéria sensível, sem metafísica, que no filme emergem, tanto do corpo (rosto) de Margarida (a mulher, o princípio do feminino), múltiplo e finito, como do espaço cósmico ilimitado do «grande mundo» dos glaciares da montanha, e em Llansol podem saltar de qualquer experiência quotidiana;
– a busca da pujança do Vivo – muito para além do «orgânico» –, e do Humano – para além da História dos homens –, que alimentam Fausto, Sokurov e Llansol. Nesta, o momento mais visível deste projecto é o das duas trilogias, «Geografia de Rebeldes» e «O Litoral do Mundo», enquanto o Fausto de Sokurov se insere também numa tetralogia que começa por explorar o tema do Poder e dos seus mecanismos no plano histórico, entre Lenine (em Taurus), Hitler (em Moloch) e Hirohito (em O Sol), para desembocar na utopia concreta da superação desses poderes por meio da afirmação da eterna insatisfação do indivíduo;
– chega-se assim à afirmação do poder do desejo (que abre horizontes sem fim) contra o mero desejo de poder (que cerceia as possibilidades de uma humanidade plena);
– no filme de Sokurov e nos textos de Llansol assistimos a uma tentativa de anulação do tempo, com a consequente espacialização de cenas e planos;

– em ambos, no ritmo do filme e nas constantes saídas do «real» do texto de Llansol, torna-se evidente uma vertigem do alucinatório que lança o espectador e o leitor para insuspeitadas e por vezes assustadoras zonas do Ser (Llansol lembra muitas vezes que não há escrita sem medo, e que é necessário sair da luz comum e entrar na «metanoite», a zona de risco indissociável de toda a criação). 



O lugar último do encontro possível destes dois transgressores poderá ser, ainda na esteira de Goethe, o do Eterno Feminino como objecto decisivo de uma busca que coloca no lugar do valor de troca, que rege os destinos humanos na História, o valor do Eros, categoria na qual convergem, em Goethe, como em Llansol e Sokurov, o Amor e a beleza, o «dom poético» e a mais radical «liberdade de consciência» (em Inquérito às Quatro Confidências encontramos o Anjo de Eros, cuja função é «defender-se do não-ser»). O poder dizer ao momento de vivência plena, pura manifestação da imanência, «Fica, tu que és tão belo!», constitui, segundo o filósofo Ernst Bloch, «a mais rigorosa utopia do ser», «figura suprema da inquietação» e do desejo que move o mundo, em Fausto ou nas figuras dos livros de Llansol, que «'criam' seres futuros que não são projecções imaginárias, mas apenas necessidades insuficientes, a que também chamo reais não-existentes» (Onde Vais, Drama-Poesia?, 198). Com o seu sentido apurado do concreto, Goethe encerra o Fausto com as linhas, de registo profano e espinosista: «O Indescritível / Realiza-se aqui. / O Eterno Feminino / Atrai-nos para si.» Para Llansol, o horizonte último da sua espiritualidade imanente é o do sexo (de ler/escrever) sem género, espécie de anima mundi ou energia que tudo faz vibrar. Nela, é isso que «nos atrai para si» – mas não necessariamente para cima, já que aqui tudo se passa na ordem da imanência, ou do seu reverso ainda e sempre sensível. Mas o Eterno Feminino, ou a estrita experiência da Mulher (Margarida ou Helena de Tróia) no Fausto tem também a sua correspondência em Llansol naquilo a que, inspirada no místico sufi Ibn' Arabi, chama a «magnificação do feminino» (Finita, 193), «fornalha na qual os homens cairão para se sublimarem» (Livro de Horas II, 256). Estamos muito para além da oposição dos sexos, no campo de uma androginia universal em que «o feminino é chamado a tornar-se espírito» (Livro de Horas II, 68). É este o sopro ideal que anima a paisagem da utopia concreta, da atopia e da ucronia do filme de Sokurov e do universo Llansol.
 Pintura de Ilda David'

18 novembro, 2013

CRÓNICA DA «CRÓNICA DE UMA NOSTALGIA»
Sobre o filme de Edgar Reitz, Die andere Heimat


«A cotação da experiência está em baixa», escrevia Walter Benjamin em 1936, constatando já então a incapacidade do seu tempo para criar ou fruir plenamente objectos artísticos fundados na experiência. Expliquemo-nos: a experiência vive numa dimensão alargada do tempo, e não se encontra com a mera vivência, a sucessão ininterrupta de acontecimentos num agora que se divorciou da memória. Benjamin falava do desaparecimento da figura do contador de histórias, dos seus mundos e dos seus ritmos, face ao aparecimento do romance social e ao surto da era da informação. Eu falo do último filme de Edgar Reitz – Die andere Heimat. Chronik einer Sehnsucht [tradução possível: Outras Pátrias. Crónica de uma nostalgia] –, que vi e comentei com o realizador no Festival de Cinema Lisboa-Estoril.
Não sei se o nosso tempo está preparado para assimilar plenamente este filme, para lá da película de superfície de uma aura romântica ou do «pitoresco» de algumas cenas e ambientes. E quando digo «o nosso tempo» estou a pensar num tempo que deixou para trás a experiência do tempo que este filme veicula, de um tempo refém dos tempos sem memória que são os das TVs, dos ritmos desumanizados da competitividade selvagem, da intolerância e de vidas que se iludem com padrões de «qualidade» que lhes são impostos por interesses destruidores do equilíbrio planetário. Os aparelhos ideológicos mais activos hoje em dia, que se tornaram completamente abstractos e opacos, não estão interessados em avivar ou manter a consciência de um tempo com tempo, e os seus prolongamentos na vida.

O filme de Edgar Reitz faz-se claramente contra a corrente (também da grande indústria cinematográfica, apesar da sua dimensão épica), indo deliberadamente em busca do tempo perdido – nos lugares reencontrados, no ritmo das estações, da natureza e dos ritos quotidianos do nascer e do morrer, do amor e do trabalho, e sobretudo nos rostos das personagens e nos seus olhares: para dentro de si ou para o mundo à sua volta, para passados comuns ou para a distância, a do espaço ou a da imaginação. Esta busca do tempo perdido entende-se no sentido do que tenho vindo a dizer, mas também no de um tempo histórico perdido, pouco conhecido e muito esquecido: os anos de crise de uma Alemanha e de uma Europa entre o Congresso de Viena (1815) e as revoluções de 1848-49. É um tempo decisivo para a história da Europa, e também do Novo Mundo, uma época de fomes, miséria, epidemias e repressão, da Irlanda à Alemanha, da Itália a Portugal, que leva à emigração em larga escala para as Américas, do Canadá à Argentina e dos Estados Unidos ao Brasil independente. Mas é também um tempo que vê nascer e consolidar-se a ideologia e as práticas liberais, e, para além delas, o pensamento marxista e uma ideologia democrática já moderna (o espírito dessa época transparece um pouco num poema revolucionário («A canção da fome» de Georg Weerth) que João Gil canta, em tradução minha, no disco conjunto que gravou com Luís Represas em 2011).

Tudo isto está também subtilmente presente neste filme de Reitz, apesar de a sua matéria narrativa viver quase só das grandezas e misérias, das dificuldades e dos sonhos de uma comunidade humana situada numa aldeia com o nome fictício de Schabbach, reconstruída de raiz para o filme até ao mais ínfimo pormenor, durante meses antes das filmagens, como documenta o livro que o realizador me deixou, subtitulado «O meu livro pessoal do filme». O lugar situa-se numa região de fronteira com a França (Hunsrück), de onde é originário o realizador, um triângulo entre os rios Mosela e Reno – curiosamente, dois rios que poderiam simbolizar as duas vertentes de sentido deste filme: a das formas comunitárias de vida humana, nas vindimas, na festa (o Mosela), e um fundo histórico, aqui menos visível, que determinou os destinos da Alemanha (e da França) em vários momentos, uma rivalidade que o Reno materializa (e que passou para canções patrióticas como «Die Wacht am Rhein» / A guarda do Reno, de algum modo o contraponto, na mitologia deste rio, da lenda romântica e universal da «Lorelei», a história da eterna atracção das águas, da beleza e do amor).

A primeira questão que se me colocou ao ver o filme de Edgar Reitz foi, a partir deste contexto, a do seu sentido e da sua intenção. Trata-se de mais uma tentativa de compreender (e justificar ou rejeitar) uma história acidentada e controversa como a da Alemanha nos últimos dois séculos? Voltamos à velha temática de tantos livros e filmes do pós-guerra, a da «Bewältigung der Vergangenheit» (a «superação do passado» que se tornou um estigma e um desafio ainda hoje actuais), à busca de caminhos para enfrentar e resolver um passado colectivo presente no velho tema já cantado por um poeta proscrito como Heinrich Heine (precisamente na época em que se passa o filme) da Alemanha como espinho e motivo de sofrimento («das Leiden an Deutschland»), do «Conto de Inverno» alemão, da «Alemanha no Outono» (o filme feito a várias mãos, também com participação de Reitz, em 1979, sobre os retrocessos democráticos na sequência do «terrorismo urbano» do grupo Baader-Meinhof)?
Ou terá o filme motivações de ordem mais privada, quase sentimental, de regresso à terra natal (Heimat) e às suas raízes? Dificilmente imaginável, num realizador que filma sem réstia de psicologismo nem dramatismo, deixando figuras e acontecimentos falar por si – e ao fazê-lo põe, de facto, a grande História em acção. Há antes, até pela recuperação de uma palavra estigmatizada e carregada de sentidos negativos e sentimentais como Heimat, uma deliberada recusa da tradição suspeita do Heimatfilm e do Heimatroman, o cinema e o romance que idealizam os motivos da terra natal e da pátria, e que deram resultados artística e ideologicamente desastrosos desde o século XIX até ao segundo pós-guerra, com grande destaque para a apropriação e instrumentalização ideológica do termo pelo nazismo.

Prefiro, por isso, ver este filme à luz de uma tensão e de uma dialéctica de negatividade e esperança, na linha do conhecido verso de Hölderlin «Wo aber Gefahr ist / Wächst die Rettung auch» («Mas onde há perigo / Cresce também a salvação»). Esta seria uma leitura mais propriamente alemã. Mas há outra, mais universal, e que nos toca a todos hoje: o regresso ao espaço de um mundo local como sinal e aviso diante da catástrofe do mundo global. As razões, também aqui, até poderão ser de ordem pessoal ou meramente artística. Mas a decisão de regressar a um lugar específico, a figuras inconfundíveis e a uma época de crise e emigração permitem a Reitz – de uma forma absolutamente conseguida – dar o salto para a grande História a partir de um pequeno mundo (como tinha de ser, já que o cinema não suporta a abstracção – Sokurov fez o mesmo com o seu Fausto). E sugerindo claramente, no modo de narrar essa pequena história e na economia do filme, que a alternativa para os grandes males da História tanto pode estar na fuga (aqui quase inevitável, pela emigração) como no (re)encontro de si e das raízes – que não têm de ser as da «terra e do sangue», de famigerada memória, mas podem também ser as da curiosidade intelectual e da sede de saber que está em nós, como acontece com a figura central do filme, o jovem Jakob Simon, que troca o sonho do Novo Mundo (que também chega a sonhar, embora de modo menos pragmático que todos os outros que acabam por emigrar) pela nostalgia do saber, sustentada nos afectos humanos mais elementares.

Tudo isto me levou a perguntar a Edgar Reitz, durante a nossa conversa, se existe um «princípio esperança» na sua Obra, e em particular neste filme. Ao que ele respondeu que o seu princípio, a havê-lo, é o da «utopia concreta» (como ainda se poderia dizer com Ernst Bloch) de um mundo em que os olhares se encontrem, a coexistência com os outros seja possível  a solidariedade não seja palavra vã.

O novo filme de Edgar Reitz não é uma «prequela» da série televisiva Heimat (terminus horribilis, este de «prequela», inexistente em português e decalcado da série americana da Guerra das Estrelas por uma crítica e uma propaganda acéfalas), mas – e o realizador insiste desde sempre neste ponto – uma obra autónoma concebida e feita para cinema, e não para televisão. Destaco do título completo — Die andere Heimat. Chronik einer Sehnsucht – que traduzo como traduzi, apesar da resistência das palavras no original, por Outras Pátrias. Crónica de uma nostalgia, três termos que podem levar-nos a questões que me parecem importantes, tanto de conteúdo como formais.


1. Crónica:
O termo implica desde logo uma intenção narrativa muito particular, que deixa de lado o «filme histórico» para se situar num plano épico de perspectiva pessoal e fundo humano, dando a ver, na transparência da vida quotidiana, uma problemática (a grande vaga migratória numa Europa depauperada e em muitos casos oprimida pela nova ordem instaurada depois de Napoleão), um tempo (o de uma fase decisiva, de transição do ancien régime, não para regimes liberais, mas ainda de passagens várias entre impérios e casas reinantes) e um mundo (o do caso paradigmático de uma aldeia e de uma família apanhados nestas teias da História). O resultado é um filme que se move com grande saber dramatúrgico e fílmico entre a ficção e o documentário (que nunca chega a ser propriamente), entre uma saga familiar e a grande saga da História posta diante do espectador através de uma série de destinos privados e cruzados. Ou seja, um filme com traços e momentos épicos (a grande caravana dos carros dos emigrantes no final, a lembrar John Ford, a respiração ampla dos grandes ciclos, nascimento e morte, poder político e condição humana), e com um fundo ético e humano. Focando ainda mais a objectiva, vemos um filme que se serve do simbolismo (ou sentido quase parabólico) das situações individuais, que ganham um estatuto representativo em relação a um estado de coisas muito mais amplo, o da situação histórica da Alemanha e da Europa entre revoluções (respira-se este estado de coisas em algumas das figuras masculinas). Não propriamente a grande Revolução Francesa (que não deixa de ecoar no grito de Liberté! no final da primeira parte), mas outras, mais próximas, as revoluções de Junho de 1830 em Paris, e as revoluções de Março de 1848-49, um pouco por toda a Europa (a acção do filme concentra-se entre as duas, nos anos de 1840 a 1843).


2. Uma outra «pátria»:
É quase inevitável a relação com a longa série televisiva anterior de Reitz, em três partes e com 52 horas de projecção, e que cobre, também a partir de histórias familiares da mesma região, a história do século XX, entre 1919 e a viragem do milénio. E a ligação faz-se por essa palavrinha carregada de história e de ideologia, Heimat (era este o título geral das séries). Perguntamo-nos: onde está a diferença, onde reside a «alteridade» desta nova «pátria»? Visto hoje, este novo filme traz um olhar crítico sobre o tempo histórico da «miséria alemã», tal como o viram Marx e Engels no tempo da narrativa, e que irresistivelmente associamos ao da Europa de hoje. Mas a outra Heimat do novo filme é mais do que isso: vem lembrar-nos que nós somos hoje, em grande parte, o que começou naquela época histórica, filhos degenerados de um liberalismo que na sua versão «neo» se tornou egoísta e desumano, e que as Luzes que se tinham acendido pouco antes em França entrariam num irreversível processo de «dialéctica negativa» que deu no que deu. Pelas perversões da História e pela ingenuidade dos povos. Isto percebe-se na primeira parte do filme, no episódio da festa do fim das colheitas e na rebelião que se segue. Os gritos de Liberté!, e o outro, mais especificamente alemão, de «Viva a Jovem Alemanha!», são testemunhos dessa sã e fatídica ingenuidade: os tempos não estavam ainda prontos para a Liberté, que, atirada assim á cara dos gendarmes, só podia ter como resultado a prisão. Marx e Engels, ou mesmo a «astúcia da razão» de Hegel, não tinham ainda chegado à região do Hunsrück, onde tudo se passa. E cá fora, a «Jovem Alemanha» era, então, ainda a versão romântica e idealista – que poderia ter os seus paralelos com os nossos Maios de '68 – de uma liberdade que começava a dar os primeiros passos. Os ideais democráticos e proletários viriam depois, para também eles soçobrarem, deixando atrás de si (depois de 1848, ou de 1968) aquele travo de «liberdade de bobos da corte» que é novamente a que nos concedem nas democracias formais do nosso descontentamento. Estava longe, e continuamos sem a descortinar, aquela outra liberdade de que por essa altura falava o poeta exilado, autor do longo poema Alemanha, um conto de Inverno, Heinrich Heine. A sua liberdade, «Freiheit, die ich meine» («a liberdade em que penso, e que é a minha»), não era a pequena liberdade de uma esmola dada a contragosto, mas a outra, a liberdade plena e responsável. Nesses anos, mais exactamente em 1833, publicava Heine em livro uma série de crónicas de teor político explosivo para a época, de onde a censura prussiana cortou, entre muitas outras, a seguinte passagem – que parece ter ido escrita para este país e este continente nos dia de hoje:
«Nunca um povo foi mais cruelmente desprezado pelos seus governantes. Não é só o facto de aqueles decretos partirem do princípio de que podem fazer connosco tudo o que quiserem. Não, ainda nos querem convencer de que o que está a acontecer não nos traz dolo nem injustiças. Mas se é certo que vocês podiam contar com o conformismo servil, isso não vos dá o direito de fazer de todos nós idiotas. Uns quantos senhores da terra, que mais não aprenderam do que uns truques para domar cavalos (...), com que, quando muito, conseguem enganar os campónios nas feiras, acham que podem com isso dar cabo da vida de um povo inteiro, ainda por cima um povo que inventou a pólvora, a imprensa e a Crítica da Razão Pura. Este insulto, o de nos querer fazer passar por mais estúpidos do que vocês próprios e de imaginar que nos podem iludir, é o insulto mais baixo a que nos submetem perante todos os povos vizinhos.»
Uma tal situação, que o filme faz passar de forma nítida na primeira parte, levará na segunda a dois caminhos de «saída», que são os de ontem e continuam a ser os de hoje: o conformismo triste e acabrunhado, ou a saída para o desconhecido da emigração.
A segunda parte mostra de forma ainda mais clara a dureza da situação, que a própria natureza parece empenhada em tornar ainda mais insuportável, com os invernos rigorosíssimos, colheitas de miséria e epidemias devastadoras. «O mundo saíu dos eixos, está tudo virado do avesso», diz o médico de aldeia numa das cenas. E o jovem Jakob Simon, o grande sonhador das miragens do Novo Mundo do bom selvagem e das suas fascinantes línguas, que estuda e domina ao ponto de discutir com o grande sábio Alexander von Humboldt, altera a orientação da sua grande nostalgia e, contra todas as expectativas, fica na aldeia, conforma-se com um destino que, não lhe tendo sido imposto de cima, ele aceita e segue. O filme tematiza, neste caso exemplar, mais uma dialéctica: a das tensões entre destino e História, a «pátria» e o Novo Mundo. Ou, se quisermos, entre as forças do sangue e da pertença que determinam o destino, e a tirania dos poderes (e da natureza) que move a História. Na sua assumida imparcialidade, o filme não diz quem sai vencedor desta tensão. Provavelmente, ambos os lados, mas cada um de modo diferente. Há cenas que documentam a vitória da História e das forças trans-individuais, quer se trate das filas de carros que, no horizonte, iniciam o caminho da emigração, quer da máquina a vapor que traz o «progresso» para a aldeia, quer dos livros, janelas abertas para o grande mundo que «não nos deixam ficar sós» nem na mais remota aldeia.


Ou será que vence o senso comum? Jakob fica, casa com a rapariga que não ama. Mas isso não constitui tragédia de maior neste universo desdramatizado e não burguês, tudo menos operático. Neste plano, o filme segue, de facto, uma linha diametralmente oposta à do romance burguês e da ópera do século XIX, com as suas cargas excessivas de psicologia, dramatismo e individualismo. No «Livro do filme», Reitz esclarece: «Não pretendo contar nenhuma história de amor no sentido habitual. Naquele meio rural pobre, aonde ainda não chegou o sonho romântico dos amores avassaladores, o amor é uma poderosa emanação do céu, talvez também uma força da natureza, mas também se pode aprender o amor... É possível uma aliança entre o amor e a razão.» E quando assim é, como acontece com Jakob e a Florindinha, subitamente uma espécie de ordem natural das coisas impõe-se, o mundo está em ordem no meio das desordens da política e da natureza, e todo o universo está ali, naquele espaço limitado e sem limites de Schabbach, microcosmo de todas as experiências humanas possíveis e imagináveis, e de todas as nostalgias, na tranquila aceitação da tradição e dos rituais colectivos em que aí assenta a condição humana. Porque há mais mundos dentro de nós do que todos os Novos Mundos podem oferecer.


3. A nostalgia:
Que nostalgia é esta, que nos chega do título do filme? A do Novo Mundo e da esperança de uma vida «melhor», sem mais? Não será essa a orientação determinante deste filme de Edgar Reitz, que parece querer ir mais no sentido de uma reconciliação do que da crítica radical (que nele é mais subreptícia do que explícita). E voltamos à questão do tempo e da experiência, e com isso a mais um fio de ligação a este nosso tempo.
A experiência, já o disse, ao contrário da vivência imediata, precisa de tempo. A narrativa (aqui: a crónica) e o seu universo primordial têm um ritmo que o mundo contemporâneo terá dificuldade em compreender e acompanhar. E este filme pede uma relação especial com o tempo, uma disponibilidade e uma lentidão que o mundo de hoje não tem. O gesto de Edgar Reitz, ao fazer, com muito tempo (quatro anos, ao todo) e uma invulgar atenção a todos os pormenores, um filme como este, é um gesto de demarcação clara que o leva a afrontar o tempo da informação, um tempo incompatível com o tempo, quer dizer, com a experiência e a lentidão. Retomar o ponto de vista e tomar o partido destas faculdades perdidas é um gesto ousado que se aventura por paisagens de um humano, demasiado humano, que pouco a pouco fomos perdendo.


 Este regresso à experiência – do tempo e seus ciclos, da beleza do elementar, de sentidos apurados ao longo de séculos, dos corpos para lá da sua mera exploração teatral ou voyeurista – é também sensível em vários planos estéticos do filme: nas irrupções de pequenos focos de cor no preto-branco da película, na música que se funde com os sons naturais e acentua o substrato de nostalgia; na pregnância e beleza dos planos, no rigor da sua construção e montagem, na intensidade das imagens. Em vez de acumular cenas sentimentais e tantas vezes deslavadas, repetíveis e ocas (a que a matéria narrativa poderia levar facilmente), Reitz distancia a câmara e deixa falar os rostos, os corpos, os gestos, as situações. E quando, num determinado plano, uma pequena zona foi deixada na cor original – a ferradura incandescente, a pedra de ágata, na transparência dos seus horizontes sem fim, a parede interior que subitamente se ilumina de um azul vindo dos sonhos de Novalis, a bandeira tricolor a invocar a democracia nascente, á deriva, ou com destino à vista, numa jangada que desce o rio, um «Louisdor» cujo brilho de ouro é promessa de salvação, ainda que transitória, os olhos de Jakob que se abrem no fundo indistinto do preto-branco e deixam ver a cor da esperança –, quando a cor assim se eleva da bruma cinzenta, ou também luminosa, do fundo das casas ou dos espaços abertos da natureza, sabemos que ela tem uma função para lá do seu impacto estético: a de servir de pólo de referência para a memória, a histórica e a simbólica, para que o olhar não se perca na indistinção do preto-branco, e para que fiquem mais claros os caminhos da História ou do destino. Para nos ensinar a ver um filme, e para que o cinema, como quer Edgar Reitz, não deixe de ser uma escola do olhar, numa incessante «busca das imagens interiores» – pela senda do visível, que é a via natural do cinema e da sua permanente festa de luz e sombra.