21 novembro, 2013

A UTOPIA DO HUMANO, 
OU «A MAGNIFICAÇÃO DO FEMININO»

Passou há dias no Festival de Cinema Lisboa-Estoril, depois de ter estado antes num cinema de Lisboa, a magnífica versão cinematográfica do Fausto por Aleksandr Sokurov. Aquando da estreia em Lisboa, falei do filme com Maria Filomena Molder, no cinema Nimas, e apresentei-o depois em Sintra, na «Letra E» do Espaço Llansol, salientando as ligações deste filme com o universo da escritora Maria Gabriela Llansol. Dessa sessão resultou um «Caderno da Letra E» a que os leitores deste blogue provavelmente não terão tido acesso, e por isso transcrevo aqui a minha introdução a essa publicação.




... o segredo da Busca é que não se acha.  
Fernando Pessoa, Primeiro Fausto (Fragmento X) 

À primeira vista, poderá parecer estranha a busca de relações entre um assunto clássico da esfera do mito, como é o de Fausto, e um universo tão centrado na imanência do quotidiano ou em sentidos outros para a História, como é o da Obra de Maria Gabriela Llansol. Mas não foi tanto a busca de ligações, que poderão parecer remotas, entre o universo Llansol e a matéria de Fausto o que nos levou a aproximar os dois. Foi antes o filme, recentemente exibido numa sala de Lisboa, do russo Aleksandr Sokurov, feito a partir da obra clássica de Goethe (e que iremos mostrar e comentar na «Letra E» do Espaço Llansol). O que Sokurov faz ao apropriar-se do texto de Goethe tem, isso sim, muitas afinidades com aspectos determinantes do projecto llansoliano de revolução da estética narrativa e de revisitação da problemática do Humano. O filme de Sokurov é uma adaptação muito livre do grande clássico da literatura, mas ao mesmo tempo muito próxima de alguns núcleos da história tal como ela é tratada por Goethe, em especial na primeira parte da sua «tragédia» – a do «pequeno mundo» preenchido pela matéria amorosa centrada na figura de Margarida, esplendorosamente tratada pelo cineasta; a reconstituição dos ambientes medievais de onde emana o mito; as ambiguidades e subtilezas, mas também o grotesco e a impotência da figura de Mefistófeles; a exploração do substrato utópico que subjaz a toda a acção, consubstanciado nos dois filões maiores do mito de Fausto desde as origens no século XVI: o desejo (e o tabu) do conhecimento e a entrega ao princípio do prazer. 

 Pintura de Ilda David'

Ora, aquilo que interessou a Sokurov (e que ele de facto vai buscar a Goethe, mais do que às origens medievais do mito) é o sentido universal desta matéria: subsumir numa figura e na sua eterna nostalgia, e de uma forma mais crua e menos filosófica do que em Goethe, toda a problemática da «humana geração». É este também o projecto do humano fora da trama dos poderes, que sustenta grande parte da Obra de Llansol desde O Livro das Comunidades. Noutro lugar defini já esse projecto como «uma bio-cracia, qualquer coisa como uma aisthesis universalis sob o signo, não do tempo da história e das suas figuras (porque 'chegou o momento de sair da História e ir viver no mundo de seiscentos milhões e anos'), mas do 'Há' e de uma 'restante vida' transposta para o plano total, cósmico, do Ser». 


O filme de Sokurov dá esta perspectiva, quer na insuportável beleza, transfigurada pela anamorfose e pela luz, do rosto de Margarida, quer finalmente na grande cena da montanha, com os seus ecos de busca infinita e de impossível realização (ao «Para onde?» do eco da voz de Margarida responde aí Fausto com o seu: «Para mais longe»). No filme do russo, o excesso da matéria pura, das sensações, da brutalidade da vida, transforma-se, em momentos chave, na matéria etérea, mas ainda e sempre humana, da paixão. Em Goethe, a questão tem dois momentos. O primeiro, da aspiração sem limites, depois de selado o pacto com o Diabo (que no filme não se chama Mefistófeles, mas Maurício, e é um agiota): 
 
 Pintura de Ilda David'
 
A minh'alma, curada a sede de saber,  
Abrir-se-á agora a toda a provação,
E no mais íntimo de mim quero viver
O destino de toda a humana geração;
Em espírito abarcar alturas, profundezas,
Encher o peito de alegrias, tristezas,
E assim meu ser ao seu Ser alargar,
Para no fim, como ela, soçobrar.

Depois, na fala final, antes da morte, o da utopia visionada de um mundo mais humano:

Esta é a ideia que havemos de aceitar,

Esta é do sábio a suprema verdade:
Só quem dia após dia a conquistar
Merece a vida e a sua liberdade.
E assim passam, em perigos sobre-humanos,
Crianças, homens, velhos, duros anos.
Visse eu esse bulício efervescente,
P'ra solo livre pisar com livre gente!
A um momento tal então diria:
Suspende-te, tu que és tão belo!
O rasto dos trabalhos e dos dias,
Nem eternidades podem apagá-lo. —
No antegozo de tão feliz evento
Desfruto agora do supremo momento. 


Se olharmos agora, por um lado para a ideia, por outro para o plano estético do filme de Sokurov, tornar-se-ão evidentes alguns paralelos com M. G. Llansol, o seu mundo e os processos inovadores da sua escrita. Do mesmo modo que Llansol dirá que se situa fora da «literatura», igualmente se poderia afirmar que Sokurov está fora das formas dominantes do «cinema»: Llansol afirma uma textualidade contra a narratividade reinante, e para isso a sua escrita terá de recorrer sobretudo às potencialidades sensíveis e imagéticas da linguagem; por seu lado, Sokurov transformará os seus planos cinematográficos em «telas» de uma beleza quase irreal, através do recurso à anamorfose e à transfiguração (Fausto e Margarida – esta, apesar do seu recorte mais singelo e não complexo – são mutantes, a sua verdadeira natureza é a da metamorfose contínua); não podendo filmar, como diz, a matéria filosófica abstracta do Fausto, é levado a encenar teatralmente, a pintar cenas em movimento. Entre o cinema ascético de filmes anteriores, como Mãe e Filho ou Pai e Filho, e o ornamental, de A Arca Russa, o Fausto de Sokurov explora em cambiantes várias uma estética da composição visual e da sensualidade plástica, sem naturalismos, mas com todos os sentidos (até os cheiros, e com o «brumor» da música em pano de fumo) a emanar da tela, num casamento em que o classicismo dos meios não rejeita as mais sofisticadas tecnologias para obter estes resultados. 

No plano das ideias, os paralelos são vários, e poderiam resumir-se em alguns tópicos mais evidentes:
– a exploração de um reverso da «luz comum» llansoliana (a que ela chama também o «senso normativo» das existências mais ou menos apagadas: Os Cantores de Leitura, 222), estando esta luz sempre presente, em aspectos diversos do quotidiano que, quer o filme, quer os textos de Llansol trazem a primeiro plano;

– a inserção frequente de cenas fulgor no turbilhão do acontecer, epifanias de beleza, aparições da pura matéria sensível, sem metafísica, que no filme emergem, tanto do corpo (rosto) de Margarida (a mulher, o princípio do feminino), múltiplo e finito, como do espaço cósmico ilimitado do «grande mundo» dos glaciares da montanha, e em Llansol podem saltar de qualquer experiência quotidiana;
– a busca da pujança do Vivo – muito para além do «orgânico» –, e do Humano – para além da História dos homens –, que alimentam Fausto, Sokurov e Llansol. Nesta, o momento mais visível deste projecto é o das duas trilogias, «Geografia de Rebeldes» e «O Litoral do Mundo», enquanto o Fausto de Sokurov se insere também numa tetralogia que começa por explorar o tema do Poder e dos seus mecanismos no plano histórico, entre Lenine (em Taurus), Hitler (em Moloch) e Hirohito (em O Sol), para desembocar na utopia concreta da superação desses poderes por meio da afirmação da eterna insatisfação do indivíduo;
– chega-se assim à afirmação do poder do desejo (que abre horizontes sem fim) contra o mero desejo de poder (que cerceia as possibilidades de uma humanidade plena);
– no filme de Sokurov e nos textos de Llansol assistimos a uma tentativa de anulação do tempo, com a consequente espacialização de cenas e planos;

– em ambos, no ritmo do filme e nas constantes saídas do «real» do texto de Llansol, torna-se evidente uma vertigem do alucinatório que lança o espectador e o leitor para insuspeitadas e por vezes assustadoras zonas do Ser (Llansol lembra muitas vezes que não há escrita sem medo, e que é necessário sair da luz comum e entrar na «metanoite», a zona de risco indissociável de toda a criação). 



O lugar último do encontro possível destes dois transgressores poderá ser, ainda na esteira de Goethe, o do Eterno Feminino como objecto decisivo de uma busca que coloca no lugar do valor de troca, que rege os destinos humanos na História, o valor do Eros, categoria na qual convergem, em Goethe, como em Llansol e Sokurov, o Amor e a beleza, o «dom poético» e a mais radical «liberdade de consciência» (em Inquérito às Quatro Confidências encontramos o Anjo de Eros, cuja função é «defender-se do não-ser»). O poder dizer ao momento de vivência plena, pura manifestação da imanência, «Fica, tu que és tão belo!», constitui, segundo o filósofo Ernst Bloch, «a mais rigorosa utopia do ser», «figura suprema da inquietação» e do desejo que move o mundo, em Fausto ou nas figuras dos livros de Llansol, que «'criam' seres futuros que não são projecções imaginárias, mas apenas necessidades insuficientes, a que também chamo reais não-existentes» (Onde Vais, Drama-Poesia?, 198). Com o seu sentido apurado do concreto, Goethe encerra o Fausto com as linhas, de registo profano e espinosista: «O Indescritível / Realiza-se aqui. / O Eterno Feminino / Atrai-nos para si.» Para Llansol, o horizonte último da sua espiritualidade imanente é o do sexo (de ler/escrever) sem género, espécie de anima mundi ou energia que tudo faz vibrar. Nela, é isso que «nos atrai para si» – mas não necessariamente para cima, já que aqui tudo se passa na ordem da imanência, ou do seu reverso ainda e sempre sensível. Mas o Eterno Feminino, ou a estrita experiência da Mulher (Margarida ou Helena de Tróia) no Fausto tem também a sua correspondência em Llansol naquilo a que, inspirada no místico sufi Ibn' Arabi, chama a «magnificação do feminino» (Finita, 193), «fornalha na qual os homens cairão para se sublimarem» (Livro de Horas II, 256). Estamos muito para além da oposição dos sexos, no campo de uma androginia universal em que «o feminino é chamado a tornar-se espírito» (Livro de Horas II, 68). É este o sopro ideal que anima a paisagem da utopia concreta, da atopia e da ucronia do filme de Sokurov e do universo Llansol.
 Pintura de Ilda David'

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