04 janeiro, 2016

A VIAGEM A ITÁLIA 
EM NOVA EDIÇÃO

Está já disponível a nova edição, com a chancela da Bertrand, da minha tradução (e introdução) da Viagem a Itália de Goethe, saída pela primeira vez em 1992, no Círculo de Leitores. Com um novo envólucro (a bela capa com a aguarela de Goethe à janela da casa do Corso Romano, por Tischbein), este livro fascinante que regista, décadas depois da viagem, o périplo do autor por tantos lugares da Itália e da Sicília, pode agora ser relido com o mesmo entusiasmo com que o trouxe para português há mais de vinte anos.
Deixo aqui duas passagens da minha introdução que poderão abrir algumas das veredas de acesso a um país que, para lá dos altos e baixos da política e da tragédia ainda e sempre viva dos que aportam, e mais ainda dos que não chegam, a Lampedusa, continua a ser uma «escola do olhar» par quem o percorre.



«Deixar aos olhos a sua transparência…»

Há três «grandes regiões» que Goethe, retrospectivamente, destaca na sua experiência italiana: a Natureza, a arte e a sociedade e a História. A Natureza, o grande livro — e isto não será novo em Goethe —, fornece os princípios que permitirão encarar os outros domínios, não como distintos, mas como afins, e mesmo parte de uma única totalidade ideal. O processo seguido por Goethe é sempre o de, numa progressão e elaboração típicas, elevar a diversidade empírica, bruta e caótica, ao nível de uma síntese ideal: isto, quer se trate da Urpflanze (a planta primordial, cujo «conceito intuitivo» se vai formando, e como que volatilizando, entre Pádua e o regresso da Sicília), das leis da arte antiga progressivamente destiladas a partir das ruínas romanas, das grandes linhas de desenvolvimento da existência humana, intuídas no meio do caos do Carnaval romano, ou do próprio processo de passagem das anotações e reflexões feitas durante a viagem para a sua elaboração final, décadas mais tarde. Goethe recorre, neste contexto, a um conceito de Ser que fundamenta uma concepção ontológica da «verdade» que o seu pensamento estende a todos os domínios. A conhecida exclamação, à vista da luta pela sobrevivência de crustáceos e moluscos no molhe do Lido: «Wie wahr! Wie seiend!» («Como são verdadeiros, realmente existentes!»), aplica-se, se pensarmos nas inú- meras passagens sobre a vida nas cidades italianas, com a mesma pertinência aos caranguejos e ao povo! E, claro, mais ainda à arte, «grande e autêntica», da Antiguidade ou do Renascimento, que representa, do ponto de vista do classicismo de Goethe, «a Natureza no seu nível mais elevado»: aí, nesse plano outro da Natureza, Ser e forma fundem-se, o particular e o universal entram numa mediação natural, fenómeno e Ideia encontram a manifestação mais perfeita do seu perfeito sincretismo. A História, sempre tão presente na Viagem, será também um organon da própria Natureza, uma manifestação da sua lei da «perenidade na mudança» (Dauer im Wechsel) transposta para o plano da temporalidade das coisas humanas: no ciclo da história de Veneza, sobre o qual reflecte, a cidade submete-se à lei do tempo, como «tudo o que tem uma existência no mundo dos fenómenos» (29 de Outubro de 1786). Por isso a História acaba sempre por ser subsumida num olhar antropológico, e «naturalizada»: «a concepção da História em Goethe é o contraponto clássico das suas concepções da Natureza e da Arte, e forma com elas um todo indivisível» (Herbert von Einem, edição de Hamburgo, vol. 11, p. 568).

Desenho de Goethe (Villa Medici, Roma)

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A Viagem a Itália de Goethe estaria destinada a assumir, durante mais de um século, o lugar paradigmático de guia para escritores e artistas — e foram muitos — que se dirigiam para o Sul. Nos textos de autores alemães sobre Itália, até hoje, quase não se ouvem vozes críticas, embora não sejam raros os mixed feelings, as posições ambíguas ou contraditórias em relação a esse lugar de fascínio, à «inocência do Sul» que atraiu até espíritos tão lúcidos como Nietzsche, e dividiu outros, como Gottfried Benn ou Ingeborg Bachmann, que oscilam entre a atracção da «palavra meridional» e o notturno finale do eterno vazio e dos «fragmentos de morte no ar cálido» desse «país distante» (G. Benn), dessa «terra primogénita» «onde a pedra não é morta» (I. Bachmann).
De pedras vivas, na natureza e na arte, fala Goethe constantemente. Há nisso, e de um modo geral na relação com Itália, como escreve o fotógrafo Michael Rütz num belo volume em que, de câmera atenta, fixa os lugares pisados e as atmosferas evocadas pelo velho clássico, um «erotismo contido», que também atravessa o texto de Goethe, e terá tido um peso não desprezível na transformação desse texto em objecto de uma mitologia estética — que o século XX, mas só ele, acabaria a custo por ir minando e corroendo. Já Rilke desmitifica Roma, retirando-lhe o estatuto de excepção que tinha desde Goethe, ao escrever: «... há muita beleza aqui, porque em toda a parte há muita beleza»! O mito da Itália criado por Goethe e por alguns dos seus companheiros da colónia artística de Roma no século XVIII foi diversamente assumido como herança pela mais importante «colónia artística» alemã do pós-guerra em Roma: os escritores e artistas bolseiros da Villa Massimo. Por esta instituição passaram e continuam a passar, com Goethe na mala ou na cabeça, nomes conhecidos e menos conhecidos da literatura alemã contemporânea, e grande parte deles deixaria uma imagem não propriamente idílica, antes problemática, ou mesmo negativa, do «país dos limoeiros em flor». Mas talvez nenhum deles tenha sido tão cáustico e iconoclasta como Rolf Dieter Brinkmann, que no seu diário romano (Rom, Blicke / Roma, olhares), foi destruindo de forma feroz e desencantada os clichés do idílio cultural em que Goethe e os seus seguidores transformaram a «capital do mundo»: «Vou andando pelas ruas com uma má vontade crescente — cada vez mais longe das pessoas? — São uma verdadeira peste, pobres ou ricas / Mas o que é aquilo que ainda ali vejo? / Só automóveis, amore nem vê-lo, lixo entornado e pizzas / E mais um pôr de Sol — na verdade só o Sol trabalha de graça, a Lua, as nuvens, o vento, estrelas, plantas, animais — Toda a vida uma confusão desordenada / Para onde ir? Em frente! / O quarteirão todo sem vida, adolescentes roçando-se pelas esquinas, sacos de plástico pretos cheios de detritos espalhados / Vendo bem, tropeçamos apenas em ruínas, e no meio dessas ruínas a vida quoti- diana esgaravata no lixo à procura de algum bocado digno de vida (...) — uma vida no meio dos restos poeirentos da história do Ocidente (...) Cenas de rua que são um filme de terror dos sentidos e das sensações, em sessões contínuas. 'Et in Arcadia ego', Göthe.» (R. D. Brinkmann, Rom, Blicke, Hamburgo 1979).
Se o tom é outro, nem por isso o fio condutor da experiência de Itália é muito diferente do de Goethe. É a mesma escola do olhar, e a mesma predisposição e abertura para receber «o que, literalmente, nos deixa o dia-a-dia» (was täglich abfällt, R. D. Brinkmann), é o mesmo hábito «de deixar aos olhos a sua transparência» (Goethe, Roma, 10 de Novembro de 1786). 

Aguarela de Goethe em Itália (Vista de S. Pedro, Roma)