FILHOS DE MARX E DA COCA-COLA
Os estudantes franceses revoltam-se outra vez. A Fátima Rolo Duarte, sempre atenta ao que se passa na sua rua e no mundo à volta, põe no f-world um elucidativo post em que Manuel Castells (sociólogo que se movimenta entre Barcelona e a Califórnia) procura explicar a situação actual, em que se vive na tensão, ou na indiferença, entre os que estão nas redes e os que estão fora delas. Na sequência desse post, outra amiga mandaa-me um pequeno vídeo em que Philippe Sollers, um soixante-huitard activo, discute com a ministra francesa do Ensino Superior, e lhe diz que quem governa é o dinheiro e que o «espírito» foi pelo cano abaixo.
Eu sou apanhado no meio desta agitação a rever as últimas páginas de um grande fragmento em que tudo isto está dito e redito, há quase um século. O «espírito»? Mas, o que é isso? O que é isso hoje? Nas mil e muitas páginas que acabo de traduzir fala-se, já com ironia e distanciação, daquilo que, pouco antes, outros designavam de «tragédia do espírito» (Georg Simmel, por exemplo). Nas universidades e noutros sectores, essa «tragédia» chegou cá tarde, como sempre, mas chegou. Há muito tempo que as universidades de massas se tornaram manufacturas (de «profissionais»), e hoje estão a caminho de se tornarem empresas (é contra isto que protestam os estudantes franceses e Sollers). Deixaram de ser «escolas de saber livre», como dizia – com alguma ingenuidade, reconheça-se: desde quando o saber é «livre»? – António José Saraiva nos idos de setenta, quando tudo começou a ficar mais claro e nós tentávamos ainda fazer uma Revista da Faculdade de Letras de Lisboa diferente. Saraiva era marxista, hoje já os não há – ou disfarçaram-se. Mas vem dessa altura a raiz da coisa (a semente, claro, é muito mais antiga), é desses anos, na Europa, o advento dos «filhos de Marx e da Coca-Cola». Marx fora virado do avesso muito antes, a Coca-Cola floresceu, está aí para ficar. Nada vai mudar tão cedo, é o novo materialismo sem Marx, todo Coca-Cola – normal ou light, «sabe igual», como diz o anúncio. Ou: a nova forma da instrumentalização, sem capital simbólico, diz a voz de Manuel Castells no f-world da Fátima.
Mas Sollers tem razão: um dia havemos de deixar a espuma de superfície para voltar ao fundo da questão (quando, ninguém sabe). Apesar disso, não é de «espírito» que precisamos – esse anda por aí em todos os fundamentalismos, em seitas de todas as cores, espalhado pelos novos vendedores de banha-da-cobra. O que nós precisávamos outra vez era de pensamento – a sério, a fundo, a nu. O «espírito» – ou a «alma», que também assombra o meu autor, de quem me vou despedir por uns tempos, mas não definitivamente – funciona na casa global como na casa do director de banco Leo Fischel – é tudo uma questão de negociação e de verbas. Cito:
«Sabe como são estas coisas: quando a minha mulher se zanga com uma criada, diz logo que ela mente, que é imoral e malcriada… Só defeitos de alma. Mas se eu prometo em segredo um aumento à criada, para ter o meu sossego, a alma desaparece de repente! Ninguém fala mais da alma, tudo fica bem e a minha mulher não percebe como nem porquê. Não é assim? Claro que é. » (Robert Musil, O Homem sem Qualidades, Livro Segundo/III, cap. 36).
Mas não tenhamos ilusões, nem imaginemos que podemos «explicar» tudo o que está a acontecer (é presunção de sociólogo – embora valha sempre a pena tentar). Pessoalmente, prefiro o cepticismo do filósofo. Como diz outra personagem, nietzschiana confessa (e confusa!): «Se formos a explicar tudo, nunca ninguém irá mudar nada neste mundo»! É uma boa versão pós-moderna da última das célebres «Teses sobre Feuerbach»!
Ainda assim, cedo à tentação de explicar, e não resisto a ler mais uma passagem do grande fragmento em que vejo retratadas – a um século de distância – as sociedades actuais das redes e a sua «idiotia do e», alimentada pela bulimia dos factos (na esfera da informação) e por uma razão instrumental limitada (na da política e das grandes decisões):
«... há um certo grau de idiotia em que não se consegue formar o conceito «os pais», ao passo que ainda se domina a ideia de «pai e mãe». Ora, era também por meio deste simples e copulativo que Meseritscher [um jornalista!] ligava os fenómenos de sociedade. Lembramos ainda que, na singela concretude do seu pensamento, os idiotas possuem algo que, segundo a experiência de todos os observadores, apela de forma misteriosa para a alma; (...) o que há de comum a essas situações é um estado mental que não pode ser sustentado por conceitos amplos nem clarificado por distinções e abstracções, um estado mental caracterizado por recorrer a formas inferiores de articulação que se manifestam do modo mais visível precisamente no uso da mais simples conjunção, a pobre copulativa e, que, para os débeis mentais, substitui as formas de relação mais complexas. Ora, podemos também dizer que o mundo, não obstante a grande dose de espírito que possui, se encontra num estado semelhante de imbecilidade – é mesmo impossível não dar por isso quando se tenta entender como um todo, e numa perspectiva global, os acontecimentos que nele se desenrolam.»
(Desta vez – obviamente – não «ilustro» o post).
Mas Sollers tem razão: um dia havemos de deixar a espuma de superfície para voltar ao fundo da questão (quando, ninguém sabe). Apesar disso, não é de «espírito» que precisamos – esse anda por aí em todos os fundamentalismos, em seitas de todas as cores, espalhado pelos novos vendedores de banha-da-cobra. O que nós precisávamos outra vez era de pensamento – a sério, a fundo, a nu. O «espírito» – ou a «alma», que também assombra o meu autor, de quem me vou despedir por uns tempos, mas não definitivamente – funciona na casa global como na casa do director de banco Leo Fischel – é tudo uma questão de negociação e de verbas. Cito:
«Sabe como são estas coisas: quando a minha mulher se zanga com uma criada, diz logo que ela mente, que é imoral e malcriada… Só defeitos de alma. Mas se eu prometo em segredo um aumento à criada, para ter o meu sossego, a alma desaparece de repente! Ninguém fala mais da alma, tudo fica bem e a minha mulher não percebe como nem porquê. Não é assim? Claro que é. » (Robert Musil, O Homem sem Qualidades, Livro Segundo/III, cap. 36).
Mas não tenhamos ilusões, nem imaginemos que podemos «explicar» tudo o que está a acontecer (é presunção de sociólogo – embora valha sempre a pena tentar). Pessoalmente, prefiro o cepticismo do filósofo. Como diz outra personagem, nietzschiana confessa (e confusa!): «Se formos a explicar tudo, nunca ninguém irá mudar nada neste mundo»! É uma boa versão pós-moderna da última das célebres «Teses sobre Feuerbach»!
Ainda assim, cedo à tentação de explicar, e não resisto a ler mais uma passagem do grande fragmento em que vejo retratadas – a um século de distância – as sociedades actuais das redes e a sua «idiotia do e», alimentada pela bulimia dos factos (na esfera da informação) e por uma razão instrumental limitada (na da política e das grandes decisões):
«... há um certo grau de idiotia em que não se consegue formar o conceito «os pais», ao passo que ainda se domina a ideia de «pai e mãe». Ora, era também por meio deste simples e copulativo que Meseritscher [um jornalista!] ligava os fenómenos de sociedade. Lembramos ainda que, na singela concretude do seu pensamento, os idiotas possuem algo que, segundo a experiência de todos os observadores, apela de forma misteriosa para a alma; (...) o que há de comum a essas situações é um estado mental que não pode ser sustentado por conceitos amplos nem clarificado por distinções e abstracções, um estado mental caracterizado por recorrer a formas inferiores de articulação que se manifestam do modo mais visível precisamente no uso da mais simples conjunção, a pobre copulativa e, que, para os débeis mentais, substitui as formas de relação mais complexas. Ora, podemos também dizer que o mundo, não obstante a grande dose de espírito que possui, se encontra num estado semelhante de imbecilidade – é mesmo impossível não dar por isso quando se tenta entender como um todo, e numa perspectiva global, os acontecimentos que nele se desenrolam.»
(Desta vez – obviamente – não «ilustro» o post).