22 setembro, 2007

CRÓNICA DA CASA FUTURANTE
O plano do mundo à imagem das palavras



(IV)

Os anos da luz e da cal


A memória faz sofrer, a não ser que seja
transformada em matéria para pensar
.
(Bernard Ziegler)


Recordo hoje, não os tempos de chumbo de uma Lisboa salazarenta que não via ainda nitidamente (nem de forma subtil como nos contos e romances de Maria Judite de Carvalho, que não conhecia nesses anos de liceu), não os anos do exílio voluntário na Europa do frio, mas o tempo da inocência feliz, quando o mundo não tem sombras e o corpo conhece apenas o júbilo da luz sobre a cal branca. Os anos da luz e da cal, das caiaduras ao anunciar-se mais uma Primavera. Para nós, nesses anos, só havia primavera.


Hoje posso, sem nostalgia, apenas com o prazer de sobrevivente dos anos, correr, em pensamento ou in loco, ao encontro dessa luz, de uma paisagem que a distância transfigura, mas é mais viva do que nunca, e tem lugar e nome. Aquela local habitation and a name de que fala já Shakespeare (em Sonho de Uma Noite de Verão), condição essencial do sentimento de pertença sem fanatismo nem paroquialismo.


Vejo aí terra e sol escaldante, uma rua e uma casa, rostos que se ausentaram, e outros que ainda podemos ver e tocar. O quadro contém, natruralmente, reminiscências inconfundíveis, farrapos de experiência, cheiros e cores e sons. Transformáveis em matéria para pensar, num momento em que, mais do que a caminho, estamos já a preparar a partida. Serenamente, como quem ouve uma música a chamar ao longe, e sabe que ela vai acabar (como esta que escuto agora, o andante moderato da quarta sinfonia de Brahms). Mas no lugar para onde esta música me leva, o que ouço agora são as cantigas das Maias, com ecos de branco e vermelho. Nesse lugar da infância estão todas as cores e todos os sons. Aí, é o reino onde tudo está no lugar certo, porque o desacerto só vem quando lhe damos nome. Sem nome, é território de sonho, mas palpável como poucos, anos depois. Estou a vê-lo e a cheirá-lo como se fosse hoje.


Eram os campos da Corredoura ou da Tapada dos Fornos, com eiras de brincar e carrinhos feitos de arame e latas de conserva, à beira de searas e favais; as mestras do Álamo e da Rua Larga, onde se aprendiam as primeiras letras, o ponto de cruz no bastidor e a obediência; as brincadeiras de pé descalço na rua, os jogos da «pata», do «eixo» e com a bola de trapos no «cantinho»; os dedos e a boca lambuzados debaixo das grandes amoreiras das Escolas Velhas; as Maias e as touradas à vara larga. Era o cheiro da esteva e do piorno a sair do forno do pão, e a «tiborna» com ele ainda quente, azeite e sal, para aquecer a alma em tempos em que o frio matava. Eram as saídas até ao lago e o medo dos ciganos, as brigas no adro da igreja de Santo António, as mobílias em miniatura feitas a preceito e os terrores da guerra distante, mas presente nas senhas de racionamento.


O mundo era feito de contrastes e injustiças, mas, de algum modo, estava em ordem — mesmo quando o padre Zé Agostinho, de maus fígados, tratava mal o povo e dava bofetadas no pessoal menor, mesmo nas tardes em que eu me encostava à parede na Rua dos Arcos para, com um misto de temor e inveja, deixar passar a charrete do senhor director da C., com os seus luzidios cavalos lusitanos.


O mundo estava em ordem porque ali quase não chegavam jornais — a não ser ao «Grémio», mítico lugar subversivo e onde se ouviam, nas longas tardes de domingo, os empolgantes relatos de hóquei em patins com os «cinco violinos» — Emídio Pinto, Edgar, Jesus Correia, Correia dos Santos e Perdigão —, a arrecadar tudo quanto eram campeonatos da Europa e do mundo.
Aprendi muito mais tarde que o tempo, implacável fonte de rugas, envelhecimento e morte, também pode ser pródigo com quem sabe conservá-lo vivo. A memória é uma fonte de Castália que inspira e rejuvenesce quem bebe da sua água. Quando isso acontece, por poucos momentos que seja, o mundo volta a ser (quase) perfeito. Até que as notícias do dia lhe venham perturbar a superfície límpida. Uma superfície que para mim se fez — e, constato, volta a fazer-se cada vez mais — de uma matéria insifnificante e aparentemente inesgotável como a luz branca nas paredes caiadas. Será nisto que cada um de nós, como diz o filósofo, não sendo imortal como os deuses, pode ser eterno.


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19 setembro, 2007

CRÓNICA DA CASA FUTURANTE
O plano do mundo à imagem das palavras


(III)

Dar a cada objecto o lugar que lhe pertence é
uma regra
de justiça imanente.
Escrever é a única arte que o permite
.
(Maria Gabriela Llansol,
Lisboaleipzig 1)


Uma casa, ao ser abandonada, sofre? «A casa que vai ser deixada sofre — está a morrer» (M. G. Llansol). Se os lugares falam, por que não hão-de sofrer? Os objectos que ficaram na casa erma falam (de quem os deixou) e sofrem (a passagem das horas, a ausência da mão que lhes toca). Estão ali à espera de quem os salve. Os objectos da casa vivem em contexto, envolvimento, relação. Isolados, morrem, como se morre de inanição da voz. Não falam, definham. Não é o pó que os cobre que nos diz, lhes diz, que estão mortos, é a ausência dos outros.


O ferro de engomar enferrujado e sozinho numa prateleira da despensa olha-me, e vejo pousar nele a mão da criada que, uma vez por semana, passava a roupa a ferro no quarto dos fundos (quantas vezes já vi/li esta imagem em romances de todo o mundo?). A ausência da mão e do calor das brasas é a sua dor. No dia em que o olhei e lhe dei nova vida numa fotografia, estou certo de que se sentiu vivo.


«Para a memória, é essencial reconhecer os lugares em que os acontecimentos se produziram.» (M. G. Llansol). «Engana-se e priva-se do melhor quem se limitar a fazer o inventário dos achados, e não for capaz de assinalar, no terreno do presente, o lugar exacto em que guarda as coisas do passado.» (Walter Benjamin, «Escavar e recordar»).


Para os lugares e os objectos, se não forem de todo apagados da face da terra, é vital regressarem um dia à vida. Para isso, basta que alguém os olhe de novo, e de algum modo sinta como seu o seu abandono, os deixe falar e lhes fale. E o único modo possível deste diálogo é o da escrita, ou da imagem, em que renascem. Essa é, com a dos olhares, a única linguagem que ainda entendem.

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17 setembro, 2007

CRÓNICA DA CASA FUTURANTE
O Plano do mundo à imagem das palavras


(II)

As palavras e as imagens dão-me hoje a ver uma rua que o tempo fez minguar, mas que naqueles anos era o mundo revestido a paralelepípedos, frios no sol coado da Primavera, implacáveis quando a bola de trapos fugia e a «topada» era inevitável.


Os rostos ameaçadores e os capacetes de aço de soldados nazis saltavam das páginas das revistas e invadiam os sonhos dos meus quatro, cinco anos, enquanto lá fora, no campo, se sobrevivia roubando azeitona e trocando as voltas à Guarda. O fim do dia trazia o ritual do banho sumário no quintal, para onde espreitava a figueira do vizinho. Nunca vi um Judas pendurado nela, era sempre só a cor do sol nos grandes figos maduros, com leves revérberos de culpa quando a tentação de puxar a pernada era mais forte.


Do outro lado da rua, mesmo em frente, por baixo da futurante, era a casa de fumo e terra batida, escura e funda, mas sem fantasmas nem medos, das duas mulheres – irmãs? – a quem nunca vi homem a não ser o filho de uma delas, gigante meio idiota, mas pacífico e sempre esfomeado. Ao lado, uma porta estreita e uma pequena escada íngreme davam acesso ao meu Jardim das Delícias, quintal-pomar de família destacada da vila, com maçanicas, romãs e dióspiros.


No piso superior da grande casa, as bandeiras das janelas, de vidros coloridos, eram a fronteira do mistério. Nunca uma janela se abria (ou era eu que não olhava para cima?), a não ser talvez para deixar pender as colchas quando passava alguma procissão, talvez a de um Senhor dos Passos roxo e ensanguentado, aterrador, figura de um outro inferno onde os olhos do menino o viam conviver com o padre odiado.


A riqueza da burguesia rural mostrava-se pouco nesses dias. Eu via a casa como um poço de silêncio, ou um lugar que me era indiferente, porque inacessível e incompreensível. O lugar mais exposto do poder do dinheiro era talvez a igreja ao domingo de manhã (a de Santo António, hoje fechada, enquanto o convento deu lugar a um belo hotel). Os seus ícones mais visíveis: a chegada, de automóvel ou charrete, dos senhores e senhoras, poucos, ao adro onde brincávamos sem cuidar de rezas; as almofadas de família, em veludo vermelho, na primeira fila de bancos, ou a pose grave do gordo Caldeira ajoelhado no confessionário a desfiar pecados com que eu não sonhava.



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15 setembro, 2007

CRÓNICA DA CASA FUTURANTE
O plano do mundo à imagem das palavras


(I)

A vida não deve ser um romance que nos é dado,
mas um romance
que nós próprios construímos.
Do mundo buscamos o plano – e esse plano somos nós próprios.

(Novalis, Fragmentos)



A crónica nasce, como tinha de ser, de uma casa que poderia ter sido lugar de matéria romanesca – foi-o, com certeza, ao menos como cenário de trivial crónica familiar, como todas as casas de gente abastada num lugar pobre de há meio século. Hoje, porém, na revisitação acidental e proibida que aconteceu por um impulso irrefreável de trazer o passado ao corpo do presente, essa casa tornou-se depósito de ícones e índices de uma existência – a minha, metonímia de tantas outras – e de um tempo, meu e da História. Cada um desses ícones, descobertos décadas mais tarde, é um foco de incêndio da memória que me leva para o outro lado da rua de uma infância que, como sempre, só mais tarde podemos interpretar. Não vou apagá-los, vou atiçá-los, para que o fogo arda, lento e sereno como um sonho distante e insusceptível de correcção. O negativo não permite retoques. E «quando se lê como se deve ler [esses índices e ícones], desabrocha dentro de nós um mundo real e verdadeiro, feito à imagem das palavras.» (Novalis). Palavras que podem saltar do abandono de um objecto ou escorrer da música de Mahler que as acompanha hoje (o adagio da segunda sinfonia), ou remanescer, translúcidas, do freudiano «bloco mágico» da memória, não accionado durante mais de meio século, e que agora traça na sua película o arco futurante que aproxima dois pontos distantes no tempo e ligados por linhas quebradas e sinuosas.


Não sei quantas vezes me encostei a estas paredes para apanhar o primeiro sol da Primavera. Não sei quantos golos sofri neste portão-baliza, nem quantas grandes defesas fiz (lembro um único mergulho picado, para apanhar uma pequena bola de borracha – luxo inaudito em tempos de bola de trapos – que alguém, bem maior do que eu, rematou). Não sei já quem morava neste primeiro andar que a minha memória me diz estar sempre desabitado (os ícones e os índices que fui encontrar nas suas ruínas dizem-me que não foi assim). Não foram já meus os dias e os anos que abriram as cicatrizes desta fachada e as coseram com aqueles cabos eléctricos que a desfeiam. Sei que não estavam lá quando eu pisava as pedras da rua, de pés descalços, mal apareciam os primeiros calores.


Sei que a casa futurante é hoje parte de uma memória deste lugar que recordo sem grande emoção, apenas com alguma melancolia que me traz imagens de pai e mãe, tempos felizes, mas duros, histórias de uma guerra que não entendia e me aterrava nas fotografias do Século Ilustrado (mas havia o Cavaleiro Andante para me levar para outras geografias).


Sabia que tudo isso já não era meu, até ao dia em que, furtivamente, pisei as tábuas desse lugar adormecido e coberto pelo pó dos anos. Nesse momento, tudo parecia colar-se de novo à pele.

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13 setembro, 2007

ARABESCOS


Uma noite de Lua cheia iluminou e revelou um mundo de arabescos naturais, nos rebentos de trepadeiras que se recortavam contra o céu negro. Mundo da deriva infinita, sem centro. Um labirinto sem Ariane, sem Teseu, sem Minotauro, feito só de formas e vibrações. Como o Amor sem objecto, só tensão, em Rilke; como o Objecto-de-Amor no misticismo sufi de Ibn-Arabi, fusão de todos os objectos e corpos do Amor fundidos em dois: a Mulher e deus. O arabesco é, no mundo árabe, um padrão interminável que se expande para lá do mundo visível e material, símbolo do infinito presente na criação do deus único (do amor total), e que por isso não tem centro. Não tem centro, mas terá fulcro, o ponto em que há acesso ao Uno nascido do diverso. O trabalho do arabesco – como o da caligrafia, sua irmã gémea e sua forma dotada de significação, também ela toda feita da energia do ser e do Amor nos grandes calígrafos – visa levantar alguns dos véus que nos separam da perfeição, e que podem esconder, não apenas uma inacessível divindade, mas a Objecto-de-Amor, não inacessível, mas insondável e sempre esquiva, figura que desaparece sob véus, mas sem nunca se apagar – como sugere a poesia místico-amorosa de Ibn Arabi. Do sagrado ao profano é apenas um passo – ou o desvio de um olhar. A Nizam do místico sufi, a mulher emblemática, é manifestação suprema de Alá, a sua expressão mais perfeita e múltipla. E é ela própria, na espiritualidade material do seu corpo.

De Ibn-Arabi (A Harmonia Perfeita), numa edição com belas caligrafias do iraquiano Hassan Massoudy:



O meu coração abriu-se
Para acolher toda a forma.
É pastagem de gazelas
E abadia de monges.

É templo para ídolos
E Kaaba para quem o percorre,
É as tábuas da Tora
E recebe os versículos do Corão.



Pergunta pela morada
Da mulher de corpo dócil.
Aquela que te faz ver o esplendor
Do Sol a nascer do seu sorriso.

E a minha versão escrita/dita dos arabescos lunares:

11 setembro, 2007

A GRANDE ALEGORIA: TT


Foi há seis anos. Algum tempo depois, tendo de pensar "o estado do mundo", a minha visão dos acontecimentos era, e continua a ser, a que se segue:

... Há um século estavam ainda activos os restos da metafísica, a dialéctica niilista, visões dualistas das «duas culturas», coisas que entretanto se desvaneceram do nosso horizonte cultural apaziguado, indiferente e relativista. E que nem a grande alegoria que abriu ao novo século as portas de mais uma série infinita de guerras conseguiu abalar: a do espectáculo de fogo que arrasou em 11 de Setembro de 2001 o templo da glória mercantil do mundo, o skyline do poder de uma divindade abstracta e cega que não conhece «fiéis» e está neste momento a instalar santuários maiores na China e noutras «economias emergentes» do mundo.

Essa alegoria não é abstracta, produto de uma projecção imaginativa, qual impossível fotografia do mundo, mas historicamente concreta, símbolo do novo século. Foi visível em «tempo real», mas isso não deixa de a tornar duplamente irreal. Num primeiro momento, pela estupefacção perante um evento que superava todas as ficções, claramente visto num meio virtual que já assumiu o estatuto de única realidade, a televisão. Depois, porque o acontecimento («o súbito aparecer do informe»), que alguns tendem a ver como a referência decisiva para a avaliação do estado actual do mundo, se viu continuado, para além do choque inicial e de mais uma guerra santa do petróleo por ele desencadeada, essencialmente no plano do «simbólico», e a dois níveis, comunicacional e ideológico: o da ensurdecedora repetição dos discursos sobre o evento (a forma preferencial de repercussão e actuação dos acontecimentos no mundo de hoje, da sua «legibilidade»); e o de um ritornello da História, depois das proclamações do seu fim e de um período relativamente longo de «greve dos acontecimentos» (Baudrillard), pelo menos para a América e a Europa, sem guerras portas adentro desde 1945. A queda do Muro de Berlim não abriu, de facto, nenhum novo ciclo, limitou-se a encerrar a fase da guerra fria, cujo lugar viria a ser ocupado no novo milénio pela «guerra infinita» (Foucault) em que vivemos. À greve dos acontecimentos, apenas animada pelo fim dos últimos regimes totalitários e colonialistas da Europa, a uma existência de abundância e de segurança garantida pela paz armada do segundo pós guerra, seguiu-se um período de ânsia de acontecimentos, que caracteriza o momento actual, com uma série de traços que lhe conferem o perfil de um tempo de cultura do radical e, em certo sentido, afim desse, também do sublime, se por isso entendermos um acontecimento que a si próprio se supera, por ser mais real do que a própria realidade: nos limites históricos da nossa contemporaneidade, e numa espécie de relação especular invertida, esses dois momentos de uma «sublimidade» que é o começo e o fim do terrível, foram Hiroshima e o seu pendant, o WTC, dois símbolos de ordens imperiais abaladas e de uma outra ordem, fálica e patriarcal, que desde os começos da civilização se viu representada por torres, portas, zigurates e metrópoles, materializações de uma «verticalidade culturalista» que se sobrepõe, e se impõe, à «horizontalidade naturalizada» (Fernando R. de La Flor).


O acontecimento de Nova Iorque não abre nenhuma cesura radical no rio da história contemporânea, não instaura um antes e um depois. Caindo sobre nós como um choque inaudito, um apocalipse profano muito diferente da ideia do «fim da História» antes proclamada por Francis Fukuyama (que correspondia mais a uma estagnação num modelo conhecido e pretensamente inultrapassável), veio, isso sim, repor no nosso horizonte imediato algo que já conhecíamos, abrindo de novo o discurso da separação depois da guerra fria. A isso chama-se agora (na fórmula infeliz de Samuel Huntington, só explicável por mais um regresso, o do fundamentalismo de cariz religioso deste novo tempo de cruzadas) «o choque das civilizações», que Edward Said corrige para «o choque dos preconceitos», com a intuição certeira de que civilizações e identidades não são entidades fechadas, mas processos resultantes de cruzamentos e contactos, historicamente fundados em práticas de tolerância e convivência. O estado do mundo está hoje novamente marcado pelo regresso do religioso na frente política (ainda que por vezes sob formas camufladas, que não chegam para esconder a osmose entre monoteísmo e absolutismo no universo dos impérios), contra o fundo pardacento, mas todo-poderoso, da economia globalizada. E é isso que explica os novos discursos da separação, da radicalização maniqueísta da tendência para a teologização do político e para as «alternativas compulsivas» nesse domínio. Tendência muito ocidental, escrevia o filósofo Karl Jaspers nos anos cinquenta, no rescaldo do nazismo, mas igualmente oriental, nas práticas terroristas dos soberanos da Arábia Saudita e de tantos Estados árabes do Golfo, «amigos» das democracias ocidentais, e na pregação e na actuação actuais dessa figura tão genuinamente americana que é o «profeta electrónico» Bin Laden, «alguém para quem o que importa é a riqueza e o poder, não se olhando aos meios» (como assinalava Alain Badiou numa conferência feita logo em Outubro de 2001). E a riqueza e o poder, por enquanto, vêm do petróleo. Estamos a assistir, nesta alegoria histórica que poderia ser uma reposição da Tetralogia de Wagner, a uma nova maldição do ouro, agora não do Reno, mas do Golfo, uma das grandes maldições modernas. A teologização do político, hoje visível na «instrumentação política da religião» pelas monarquias do Golfo, por sua vez instrumentada pelos próprios Estados Unidos (é ainda Badiou quem o lembra), não é nova, e recebeu, entre os anos vinte e trinta do século passado, um dos seus suportes teóricos mais importantes na filosofia política de Carl Schmitt, com as suas teses da necessidade, política e antropológica, de criação de imagens do inimigo e do «inimigo providencial» (que reencontramos hoje, tanto na política americana desde a Guerra do Golfo, como nos excessos fundamentalistas de um Islão desfigurado) e a sua teoria salvífica (instrumento ideal de todos os totalitarismos) que exige a anulação das consciências individuais em nome de interesses colectivos, contra um inimigo absoluto e absolutamente «necessário». A partir daqui, todas as guerras podem ser legitimadas como necessidade inata, quando elas, na verdade, são artefactos culturais. É também este o fundamento de todas as polarizações maniqueístas de fundo nebulosamente religioso, com a instituição de «eixos do mal» e o hipostasiar de um «nós» (em relação ao qual se fica logo preso no dualismo do pró e do contra) que se desdobra hoje, ao sabor das conveniências, em «o Ocidente», «as nossas sociedades» ou «as democracias». A cultura contemporânea pode estar a resvalar para este declive perigoso, a vários níveis: na paranóia anti-terrorista gerada pelo 11 de Setembro, na proliferação das seitas, na apatia política generalizada, também em certas formas de literatura hoje dominante, mítica, mitificadora e alienante, e até no reverso positivo da perversão do político, na presença indesmentível de formas diversas de voluntariado, de filantropia e de «espírito de missão». E, naturalmente, nas figuras de políticos conservadores e com propensão absolutista, enredados nas ligações perigosas, à la Carl Schmitt, entre poder e salvação.
Para fazer frente a esta nova constelação salvífica será preciso reanimar a cultura do conflito produtivo, aquela que é criadora e não destruidora, a que radica na comunicação e não na violência, e que já Hesíodo, num poema do século VII a.C., contrapunha aos «maus conflitos», os que precisam de inimigos e não de rivais. A história colonial europeia e todas as formas contemporâneas de neocolonialismo, bélico e mercantil, fazem parte de uma cultura da não-comunicação e do extermínio cujas raízes o historiador sueco Sven Lindquist tem vindo a investigar numa série de livros em que procura mostrar como a primeira exportação da Europa foi a violência, e como o extermínio foi a consequência de uma noção de cultura baseada na relação hostil e xenófoba entre povos e culturas. É uma história de «progresso» com um preço altíssimo. Para uns, uma linha recta interminável e triunfante, para outros um círculo vicioso ou viciado em que a humanidade «marca passo» (estranhamente, é já este o ponto de vista de um revolucionário da Comuna de Paris, Louis-Auguste Blanqui, em L'éternité par les astres). Provavelmente, nem uma coisa nem outra correspondem à realidade, mais complexa e vertiginosa, do ser do mundo no tempo. Para um filósofo do progresso humano como Hegel existe uma vontade da História, de sentido teleológico; mas «os heróis da História», diz hoje Peter Sloterdijk no livro Weltfremdheit (Alheamento do Mundo), «não são os homens, mas os ritmos e as forças do nascer e do pôr-do-mundo, onde os homens encontram o seu lugar». E se, como diz uma personagem d' O Homem sem Qualidades, de Musil (o aristocrata, conservador e católico conde de Leinsdorf), «na história da humanidade não há retrocessos voluntários», não é menos certo que nela tem havido sempre estrondosas quedas nos abismos da barbárie.


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09 setembro, 2007

ADENSAR A PALAVRA

Um dia hei-de traduzir assim a Poesia Toda de Hölderlin, na letra e no espírito desta amostra, o poema Wie wenn am Feiertage...










Então, frente ao espelho de versões anteriores, Hölderlin soará talvez mais a saído da terra e mais serenamente próximo do deus por vir que buscava, natureza e poema serão feitos do mesmo barro, como queria. Então, o «dia santo» será «dia de festa», o «trovão que ruge ao longe» será «a portentosa vibração dos ares», os que «pressentem sempre» serão «sempre futuro» e a natureza que anticipa estará «futurando»; o «entusiasmo» torna-se «o júbilo da alma», a «força dos deuses» é «pujança viva dos deuses», o canto que era «patente ao infinito» torna-se «hóspede da casa do infinito», o «espírito» que nele sopra é o «ruah», e os «poetas» – palavra abastardada – serão aqui sempre «aqueles que adensam a palavra» (= Dichter, de dicht: denso, espesso) para oferecer, não ao «povo», mas à «luz comum», a «edénica dádiva que o canto oculta». Os «Celestiais» serão simplesmente «os do céu», e os «sacerdotes» «oficiantes». E o andamento do verso não será «coleante», mas estocástico, e a sintaxe estará cheia de ângulos agudos, sem contemplações para com a lisura da desconversa deste tempo (do insuportável Geschwätz, como lhe chamaram Heidegger e Celan).
Assim o poeta me ajude.

Talvez se chegue mais perto ouvindo-lhe o ritmo na casa desta outra língua... (em duas partes – exigências do Blogger).



05 setembro, 2007


LIVROS QUE NÃO...?


Regresso e dou com este estranho passatempo que circula na blogosfera portuguesa: alguém se lembrou de querer saber quais foram os dez livros que não mudaram a minha vida! Curiosa e ociosa pergunta! Nenhum livro mudou ou deixou de mudar a minha vida. Não há livro, só por si, que faça tal coisa. E se houvesse, seriam certamente mais do que dez. O que acontece é que, desde os tempos do Cavaleiro Andante (que não era livro, mas acho que foi o meu primeiro objecto de leitura), muitos livros estão permanentemente a fazer a minha vida. Nem sei quantos. Todos os que li – e, naturalmente, os que não li. E continua a ser assim. Ponto final.

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